Entrevistas
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16 de setembro de 2019
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09:28

‘A forma que vivemos permite ou não a existência de outras formas de vida?’, questiona pesquisadora

Por
Annie Castro
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A professora e pesquisadora Lorena Fleury atua nas áreas de sociologia ambiental e sociologia das mudanças climáticas. Foto: Giulia Cassol/Sul21
A professora e pesquisadora Lorena Fleury atua nas áreas de sociologia ambiental e sociologia das mudanças climáticas. Foto: Giulia Cassol/Sul21

Para estabelecer uma relação respeitosa com outras formas de vida da natureza, as sociedades que vivem um estilo de civilização urbano industrial, com modos de vida que demandam de muitos recursos bioenergéticos e de combustíveis fósseis, precisam refletir sobre como seus consumos de energia, de objetos e de alimentação impactam o meio ambiente e contribuem para a crise climática que o mundo vive atualmente. Porém, uma vez que poder escolher o que comer ou vestir ainda é um privilégio em um país como o Brasil, é importante que a preocupação não seja só individual, mas que as pessoas também atuem em uma esfera social, levando o debate sobre questões ambientais para os meios que frequentam e refletindo coletivamente sobre um modelo de desenvolvimento que seja respeitoso com todas formas de existência. A avaliação é de Lorena Fleury, bióloga,  professora do Departamento de Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e pesquisadora nas áreas de sociologia ambiental e de sociologia das mudanças climáticas.

Desde 2006, Lorena pesquisa sobre conflitos ambientais e sobre como as mudanças no meio ambiente afetam as sociedades. Quando estava no final do curso de Ciências Biológicas pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Lorena conheceu o Parque Nacional das Emas, unidade de conservação localizada no Cerrado. Ao descobrir a quantidade de comunidades que viviam no entorno do parque e como os conflitos socioambientais aconteciam no local, Lorena percebeu que não encontraria na biologia as respostas para as perguntas que tinha e que não poderia pensar em uma unidade de conservação sem considerar as pessoas que vivem nesses locais.

A partir dessas percepções, Lorena passou a trabalhar com a sociologia ambiental. Primeiro, cursou um Mestrado multidisciplinar em Desenvolvimento Rural na UFRGS, onde pesquisou justamente sobre o Parque Nacional das Emas e acabou utilizando muito mais embasamento sociológico para a produção do estudo. Depois, realizou um Doutorado em Sociologia, também na UFRGS, desenvolvendo uma tese sobre os conflito ambientais na Amazônia durante a construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte. Atualmente, Lorena, além de ser professora da UFRGS e pesquisadora, também integra o Programa de Pós-Graduação em Sociologia, o Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural da Universidade e o grupo de pesquisa TEMAS – Tecnologia, Meio Ambiente e Sociedade.

Desde 2014, Lorena passou também a se dedicar aos estudos dentro da sociologia das mudanças climáticas. “As consequências das mudanças climáticas transformam radicalmente as relações sociais também, porque, por exemplo, eventos climáticos extremos causam mudanças nos fluxos migratórios, na dinâmica de produção agrícola, podem causar desabastecimento. Há uma série de consequências que são eminentemente sociais”, explicou Lorena em entrevista com o Sul21, realizada na última quinta-feira (12).

Na ocasião, a professora e pesquisadora falou sobre temas como o cenário atual de desmantelamento das políticas ambientais no Brasil, o sucateamento da ciência e tecnologia no país, o negacionismo a respeito do aquecimento global, o movimento Jovens Pelo Clima, iniciado pela ativista ambiental Greta Thunberg, as reflexões e mudanças que a sociedade urbano industrial precisa adotar para diminuir seus impactos no meio ambiente, a ideia de desenvolvimento por meio do aproveitamento e degradação de recursos naturais e os conflitos socioambientais em torno da instalação da Mina Guaíba, no Rio Grande do Sul.

 

Foto: Giulia Cassol/Sul21

Sul21: Uma das suas áreas de atuação dentro da sociologia ambiental é a sociologia de mudanças climáticas. Você poderia explicar um pouco mais sobre o que esta área estuda?

Lorena Fleury: Esse é um tema ao qual eu venho me direcionando faz menos tempo. Desde 2006 eu tenho trabalhando com o tema dos conflitos ambientais, mas desde 2016 eu estou pesquisando a respeito das mudanças climáticas. O tema chegou a mim por meio da minha participação como membro da delegação brasileira da Conferência das Partes da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC), a COP 20, que aconteceu em Lima, no Peru. Lá, além de me dar conta da magnitude do evento, o que mais me chamou a atenção é que, de uma certa forma, o que acontece lá também é um tipo de conflito ambiental, mas em uma escala global.

Apesar de muitas vezes se falar que as mudanças climáticas seriam algo que atingisse a todos, o que vemos na prática é que elas têm um componente global, ou seja, as emissões que são provocadas por um país altamente industrializado podem causar a inundação de um país que não passou por um processo de industrialização, mas desencadeiam efeitos muito diferentes nas populações de diferentes países. Dentro disso, vemos antagonismos muito fortes de interesse. Existe toda uma disputa a respeito das responsabilidades de cada país, há também um atravessamento no que diz respeito às relações de desenvolvimento. Alguns países de alguma forma exigem um direito ao desenvolvimento, já que outros países já passaram por todo um processo de industrialização e eles ainda não; já outros falam que isso não é mais uma opção, que é preciso fazer alguma coisa coletivamente para deter as mudanças climáticas. Esses conflitos acontecem também em âmbito dos estados nacionais no Brasil, onde existem interesses muito antagônicos que estão sendo disputados a respeito das mudanças climáticas.

A partir da COP 20 eu comecei a me dedicar a estudar mais sobre o tema e me dei conta do quanto que as mudanças climáticas são de fato um tema de ciências sociais, porque, afinal de contas, elas se apresentam basicamente como uma chamada intervenção sobre como se dão nossas relações com isso que chamamos de natureza, ou seja, com a atmosfera, com as florestas, com o solo, etc. Para além disso, as consequências das mudanças climáticas transformam radicalmente as relações sociais também, porque, por exemplo, eventos climáticos extremos, como grandes secas ou grandes inundações, causam mudanças nos fluxos migratórios, na dinâmica de produção agrícola, podem causar desabastecimento. Há uma série de consequências que são eminentemente sociais. Então, precisamos pensar isso e agir em relação a isso também usando as ferramentas que as ciências sociais nos proporcionam e não apenas às ciências atmosféricas.

 

‘Precisamos pensar isso e agir em relação às mudanças climáticas também usando as ferramentas que as ciências sociais nos proporcionam’. Foto: Giulia Cassol/Sul21

Sul21: Você mencionou algumas das consequências sociais das mudanças climáticas. Mas, com bases nos seus estudos, qual o papel das sociedades nas mudanças climáticas e como as populações impactam o meio ambiente?

Lorena Fleury: Hoje já se tem falado que a época geológica que vivemos atualmente já não é mais o holoceno, que seria o período caracterizado pela presença dos seres humanos como nós conhecemos. Segundo essa discussão, agora estaríamos vivendo no antropoceno, que seria seria uma nova época geológica caracterizada pela atuação da espécie humana sob o planeta terra. Essa discussão diz respeito a constatação de que os seres humanos já tem uma capacidade de interferência no planeta terra tão grande que começaram a atuar como uma forma geológica, enquanto uma entidade da natureza.

Estamos vivendo em um planeta, em termos de biosfera, altamente transformado pela espécie humana. O que temos mais ou menos claro é que desde a revolução industrial existe uma série de indicadores biogeofísicos, como o aumentos da composição dos gases na atmosfera, e sociais, como urbanização, aumento populacional, consumo de energia elétrica, consumo de fontes de energia fósseis.

Trouxe tudo isso para o dizer o seguinte: vivemos claramente um certo estilo de civilização que é diretamente vinculado ao padrão urbano industrial de crescimento. Esse padrão é o que gera essa interferência tão extrema e tão acelerada no planeta terra, na biosfera. Essa interferência se manifesta de muitas formas diferentes, que vão desde a escala de consumo energético que esse padrão urbano industrial demanda até padrões de alimentação. Hoje temos uma expectativa de uma alimentação muito mais demandante em termos de consumo de recursos do que há poucas décadas atrás. Uma forma bem simplificada de colocar isso seria que esse padrão urbano industrial de crescimento é de grande impacto, causando tanto efeito que não não permite com que os outros fluxos na terra se reestabeleçam de modo a atender essa demanda.

Sul21: Então podemos dizer não vivemos mais um período em que o ser humano coexiste com a natureza, mas sim em que o ser humano tem um impacto direto nos ciclos naturais. Seria isso?

Lorena Fleury: Essa é uma forma de colocar. Porém, dentro disso temos uma série de aberturas que precisam ser feitas, como, por exemplo, de que ser humano estamos falando? Essa interferência está vinculado a um modelo urbano industrial, que podemos dizer que é mais ou menos hegemônico, mas que não é o único modo de vida. Existem hoje povos que estão presentes em todos os países e que não tem esse padrão de consumo. Por isso, eles vão estabelecer outras relações com os rios, com a floresta, com as árvores, com a atmosfera. Mesmo a ideia de natureza não é compartilhada entre todos os povos que habitam o planeta terra, existem muitas formas de se relacionar com essas entidades e com tudo isso que é não humano. Inclusive, muitas dessas formas podem nos ensinar bastante a respeito de como sair dessa crise ou de como enfrentar essa grande crise climática que estamos vivenciando.

Precisamos não fazer uma generalização de que a humanidade não convive mais com a natureza, porque são algumas formas de se viver em sociedade que são muito mais desastrosas com relação aos outros seres, enquanto outras são menos. O que temos são formas muito complexas de se estabelecer relações e, consequentemente, os efeitos dessas relações também são variáveis. O que sabemos é que esse padrão urbano industrial que trata a natureza como um objeto, como um recurso e que tem causado consequências que impedem que os outros seres possam continuar existindo.

Acho interessante olhar para esses diferentes modos de tratar elementos da natureza como um recurso a ser aproveitado. Um caso não abstrato disso é que eu fiz minha tese de Doutorado sobre o conflito em torno da construção da hidrelétrica de Belo Monte e a hidrelétrica começou a ser planejada várias décadas antes a partir do levantamento do potencial energético do rio Xingu. Qual a ideia que tem subjacente a isso? É que se um rio está só sendo um rio, ele está sendo desperdiçado. A ideia de que apenas quando serve para esse modelo urbano industrial é que um rio está sendo bem aproveitado. É tratar o rio muito enquanto um objeto, que deve ser, de certa forma, dominado, conquistado e colocado a serviço desse padrão urbano industrial.

Sul21: É possível pensar neste modelo de sociedade urbana e industrial existindo em harmonia com a natureza ou a sociedade precisaria repensar o seu modo atual de consumo de objetos, energia, roupas, alimentação, etc?

Lorena Fleury: Eu acho que essa ideia de harmonia com a natureza tem alguns pressupostos, por exemplo, de que existe uma natureza que seria uma coisa fora. Acho que talvez para pensarmos uma forma mais responsável de conviver com as outras espécies, com as coisas coisas que compõem o mundo, temos que primeiro não pensar como caixinhas separadas, como algo que está fora e com o qual a gente convive. A saída é pensarmos as relações que compomos no dia a dia com os seres que convivemos no mundo. Interessa que seja esse o padrão de questionamento: a forma que vivemos permite ou não a existência de outras formas de vida? Existem algumas formas de vida que não permitem a coexistência.

Se eu tenho padrões de consumo que são padrões extremamente altos, é claro que eu vou ter uma demanda energética que vai sempre fazer com que tenhamos que ter mais extração de fontes de energia, que vai destruir lugares para produzir energia. Está tudo conectado, mas eu acho que a questão é essa: quais as formas de vida que permitem que outras formas de vida também existam. Nesse ponto talvez eu ainda seja muito bióloga porque eu fico pensando em termos ecológicos, em qual a maneira de pensarmos a nossa sociedade vivendo em um modo que permita uma ecologia em que diferentes espécies possam conviver.

Sul21: Além dessa reflexão e mudança a respeito do modo de vida, de que outras formas as sociedades podem atuar para diminuir seus impactos no meio ambiente e também para tornar esses tópicos debates que atinjam mais pessoas?

Lorena Fleury: Acho que existem três esferas de atuação que são muito importantes e não excludentes, ou seja, é interessante que a gente consiga articular todas elas. A primeira é uma dimensão individual, que é essa do consumo e do estilo de vista mesmo. Acho que não temos como negligenciar que nosso estilo de vida tem sim consequências para a sociedade como um todo e para o meio ambiente. Então, precisamos pensar justamente em termos de pegada ecológica, como você havia falado antes. Se as pessoas vão comprar roupas a cada estação em uma loja dessas de grande cadeias, essas roupas tem todo um ciclo para que aquela blusa chegue até a gente que é extremamente demandante de energia, de recursos, de trabalhos em condições precárias. Se faz parte do meu estilo de vida fazer essas compras cotidianamente claro que eu tenho que saber que estou causando consequências negativas e estou contribuindo para essa crise climática. Essa concepção passa por consumo de roupas, de meios de uso pessoal, de alimentação. Precisamos pensar qual o percurso de algo fez para chegar até mim. E claro que existem consequências muito diferentes se, por exemplo, eu comprar muita carne num supermercado para um consumo exagerado e cotidiano ou comprar em uma feira agroecológica.

Tem essa dimensão do consumo que é importante, mas ela não pode ser desvinculada de uma reflexão mais ampla que é justamente dessas perspectivas de desenvolvimento. Até porque refletir sobre consumo é algo que diz respeito a uma parcela muito privilegiada da sociedade. Quem que pode fazer escolhas alimentares? Estamos falando de um país em que a maior parte da população não pode se dar esse luxo, porque temos uma quantidade enorme de pessoas vivendo abaixo da linha da pobreza. É uma dimensão importante para quem pode fazer essas escolhas que considerem seus efeitos para a vida na terra como um todo, mas sozinha claro que isso não resolve.

Então tem toda essa reflexão e intervenção a respeito dos modelos de desenvolvimento, de refletir sobre que tipo de desenvolvimento é desejável, sobre quais são os interesses sobre o que é melhor para o país, por exemplo, exportar energia ou manter a nossa biodiversidade, nossa variedade de formas de vida humanas e não humanas que nos dão repertório muito mais amplo para lidar seja com as alterações climáticas, seja com conhecimentos que não temos. Temos que ter essa reflexão e atual no sentido dessa dimensão a respeito das expectativas de desenvolvimento.

E para que a gente possa atuar nessa esfera temos que nos organizar coletivamente também. Então é parte fundamental que a gente atue e existem diversas formas de atuação coletiva, tem gente que atua na escola, em sindicatos da categoria que trabalha, em uma organização não governamental, nos movimentos sociais. Mas atuar coletivamente no sentido de incluir entre as bandeiras dessas diferentes formas de associação coletiva também a bandeira ambiental e climática. Precisamos atuar nesses três níveis para que possamos de fato ter uma ação correspondente à gravidade da crise climática que estamos vivendo.

Para a pesquisadora, a sociedade urbano industrial precisa refletir sobre as definições que tem sobre desenvolvimento. Foto: Giulia Cassol/Sul21

Sul21: Podemos observar justamente esse aumento da preocupação das pessoas com suas pegadas ecológicas, ou seja, com o quanto é necessário do meio ambiente para manter seus modos de vida. Vimos esse debate crescer recentemente com a situação da Amazônia, que vive atualmente o recorde de queimadas, mas também já observamos isso há algum tempo com os Jovens pelo Clima, motivados pela ativista Greta Thunberg, por exemplo. Para você, o que vem gerando essa maior preocupação da sociedade com as mudanças climáticas e com o impacto que suas ações têm no meio ambiente?

Lorena Fleury: Eu acho movimentos como esse que a Greta Thunberg está puxando agora um dos movimentos mais originais e mais interessantes dos últimos tempos. Essas discussões do limite do crescimento infinito existem desde o início dos anos 1970 e ganharam muita força a partir dos anos 1990, quando começaram a discussão sobre desenvolvimento sustentável. Se a gente for ver o conceito de desenvolvimento sustentável, ele traz em si uma expectativa de uma solidariedade intergeracional, de que possamos viver de uma forma a não comprometer as gerações futuras. No entanto, isso nunca foi levado muito a sério. Por mais que se fale de desenvolvimento sustentável, não tem mudanças significativas nessa lógica de crescimento infinito. Essa solidariedade intergeracional é o que essa mobilização dos estudantes no mundo todo, com o protagonismo da Greta, tem exigido. O argumento que esses jovens falam é: ‘que mundo vocês vão deixar pros seus filhos? Que mundo vocês vão deixar para as próximas gerações?’. Eu acho que isso é uma chamada de atenção que é bastante poderosa e mobilizadora, que é capaz de fazer com que as pessoas falem ‘desse jeito não dá pra continuar’.

Ao meu ver isso é muito motivado por uma constatação de uma crise climática mesmo. Temos visto transformações ambientais tão aceleradas e tão intensas. Cada vez mais temos a possibilidade de constatar as consequências dessas transformações de uma forma muito drástica e com cenários cada vez mais curtos. Muitas vezes as pessoas pensam que as mudanças climáticas são uma coisa para o futuro, algo para acontecer daqui a 100 anos, mas já temos tido eventos climáticos extremos mais frequentemente, sejam furacões, sejam mais períodos de seca ou de inundação. Os registros todos tem nos mostrado que a cada ano batemos recorde de ser o ano mais quente, isso está sendo percebido por todos esses indicadores que são produzidos pelo aparato técnico científico, mas também pelas sensações que as pessoas estão tendo, as vivências que tem acontecido. Todo mundo está percebendo que, de fato, estamos tendo mudanças importantes em termos ambientais globais e que isso é urgente.

Sul21: Ao mesmo tempo em que há essa maior preocupação, vemos também muitos discursos de pessoas com grande influência, inclusive de presidentes de diversos países, que negam as mudanças climáticas. Para você, a que se deve esse negacionismo a respeito da crise climática e dos impactos da sociedade no meio ambiente?

Lorena Fleury: Por um lado, temos uma confusão de termos, sobretudo no Brasil. Por exemplo, se você pegar um dia que está mais fresquinho, muitas pessoas confundem tempo com clima e dizem ‘cadê o aquecimento global?’. Então, por um lado tem um certo desconhecimento do que sejam de fato os processos climáticos. Muitas vezes as pessoas também confundem escalas, porque não estamos falando de um período de tempo muito curto, estamos falando de um processo de longo prazo, no qual vemos todos os indicadores de maneira crescente em um sentido de um aquecimento global na média global. Não significa que todos os lugares vão ficar mais quentes, alguns podem ficar até mais frios, mas na média global temos um aquecimento.

Há esse desconhecimento, mas é claro que não é só isso, também temos muitas disputas de interesse. Existem em grupos que não querem mudar seus padrões de exploração de recursos e, como enfrentar as mudanças climáticas significaria enfrentar isso, eles se recusam a aceitar. Temos casos que são até bastante conhecidos de grandes indústrias petroleiras financiando pesquisas para esses estudos afirmarem que não existe aquecimento global. Há muito do interesse econômico mesmo.

Depois há também um processo mais amplo de disputa de credibilidade e nessa disputa ocorre uma deslegitimação da ciência. Então, há um discurso anti científico muito grande que tem ganhado força em alguns setores da sociedade. Essas pessoas falam que tudo que a ciência tem como uma constatação ou tudo que é amplamente compartilhado dentro da comunidade de cientistas está errado. Também existem pessoas que acreditam que há algum interesse obscuro por trás do que a ciência afirma, o que é uma lógica meio paranóide, como se sempre tivesse alguma conspiração internacional que fizesse com que todo mundo quisesse acreditar que a terra não é plana, por exemplo. Temos uma crise de representação muito ampla em que um dos efeitos é descredibilizar a ciência e tudo que a ciência vem constatando.

Para Lorena, há um interesse econômico por trás do negacionismo das mudanças climáticas. Foto: Giulia Cassol/Sul21

Sul21: Você mencionou a descredibilização da ciência. Isso é algo que vemos crescer cada vez mais aqui no Brasil, ao mesmo tempo em que há também um desmonte das políticas ambientais por parte do presidente Jair Bolsonaro (PSL) e do ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles. De que modos todo esse desmonte científico e ambiental pode impactar a sociedade brasileira e também o meio ambiente em um âmbito global?

Lorena Fleury: A situação que a gente tem visto hoje é de uma gravidade que é raríssima. Acho que há muitas décadas não se via um ataque ao ambiente tão incisivo e tão radical como temos visto agora. De uma forma bem ampla estamos em um contexto nacional que é um muito curioso e difícil de entender, porque temos quase que anti ministérios. É a educação atuando contra a educação, há todos esses cortes para desmontar a ciência e a tecnologia e no caso do meio ambiente temos um anti ministro, porque todas as ações e falas são no sentido de descredibilizar os programas de preservação ambiental, de combate ao desmatamento e os profissionais que atuam na área de fiscalização. Há um desmantelamento das políticas ambientais.

Um dos meus projetos atuais de pesquisa é sobre o Plano Nacional de Adaptação Às Mudanças do Clima. É muito impressionante vermos como tudo isso que foi formulado desde os anos 2000 até 2016 e todo um protagonismo do Brasil na atuação nessa área foi encerrado, extinto ou descredibilizado. No caso do desmatamento, todo esse protagonismo que o Brasil tinha na questão climática ruiu. O que é preocupante disso é que destruir é muito fácil, construir de novo é muito demorado. Não sabemos quando vai se sair da fase da destruição para se poder retomar a construção e, uma vez que a construção é muito mais lenta, as consequências dessa destruição são muito graves tanto para preservação dos biomas, como Amazônia e o Cerrado, quanto para as estruturas institucionais que depois não se refazem tão facilmente e até mesmo para as relações com os outros países e para a credibilidade do Brasil que acaba repercutindo na economia.

Isso tudo é muito grande, ainda mais se somarmos tudo isso ao fato de que as pesquisas estão sendo praticamente asfixiadas no Brasil, já que aqui no país o sistema de pesquisa é totalmente dependente e vinculado às universidades, principalmente às universidades públicas. Quem faz pesquisa no Brasil são as universidades públicas a partir dos recursos de financiamentos, dos recursos de projetos de professores e, sobretudo, pelo sistema de pós-graduação, com estudantes de iniciação científica, mestrado e doutorado. Se não tivermos bolsas de pesquisa, não tem como manter esses estudantes fazendo suas pesquisas. Se a gente perde esse tipo de pesquisa, iremos desmantelar todo o sistema de ciência e tecnologia de um país.

Sul21: Uma das perguntas que eu gostaria de lhe fazer é sobre a sua dissertação a respeito da instalação da Usina de Belo Monte. Quais foram todos os conflitos socioambientais que você percebeu na região enquanto desenvolvia sua pesquisa?

Lorena Fleury: O caso de Belo Monte é extremamente emblemático na questão de conflitos ambientais justamente porque é como tivéssemos todos os elementos que compõem um conflito ambiental. Por um lado, temos esse desejo de apropriação do rio para fins que são fins totalmente deslocados do lugar. A principal justificativa para a construção de Belo Monte era aumentar o abastecimento de energia para o sistema interligado nacional, ou seja, uma energia que é feita para o sistema energético brasileiro, não para as pessoas que viviam ali. Quem concebeu Belo Monte foram pessoas que não estavam ali na região para atender demandas e que também são de fora da região.

A concepção de um desenvolvimento por meio da apropriação dos recursos naturais que orientava a construção da hidrelétrica. Só que essa concepção atropelou várias outras concepções sobre o que é desenvolvimento, porque ali na volta grande do Xingu existem muitos agricultores familiares que plantavam, e alguns ainda plantam, vários cultivos. Para essas pessoas, desenvolvimento era produzir alimentos com fartura. Com a construção da hidrelétrica, esses moradores precisariam ser removidas e levadas para outros lugares e, com isso, poderia perder seus meios de produções. Existem também vários povos indígenas no entorno, de três grandes troncos linguísticos, que organizam o que existe no mundo a partir de categorias muito diferentes da que o estado brasileiro organiza. Temos pessoas ribeirinhas que tem toda uma relação com o rio de pertencimento, em que o rio define o modo de vida deles, a alimentação, o trabalho. Além disso, existem articulações de movimentos sociais e ONGs. Então, todas essas existências são abaladas pela proposição da existência da hidrelétrica.

Há também uma relação muito ambivalente entre Estado e iniciativa privada, porque existem interesses de grandes empresas que querem se apropriar daquela região e se associaram ao Estado nesse projeto. Com argumento de que construir Belo Monte era imprescindível para a soberania do estado brasileiro não foi pensado se o estudo de impacto ambiental, que estava cheio de falhas, era viável. Essa expectativa de um interesse nacional se sobrepôs aos interesses dos povos e das comunidades que viviem ali e que nem foram consultadas pelo estudo de impacto ambiental. Inclusive, atualmente está em curso uma solicitação para que seja retirado o licenciamento de Belo Monte de tão falho que foi esse processo. A hidrelétrica de Belo Monte não foi viável socioambientalmente.

‘Todo um protagonismo do Brasil na atuação nas políticas ambientas foi encerrado, extinto ou descredibilizado’, afirma Lorena. Foto: Giulia Cassol/Sul21

Sul21: Trazendo para um nível mais estadual, tem acontecido aqui no Rio Grande do Sul o debate a respeito da instalação da Mina Guaíba. Quais são os possíveis impactos ambientais e sociais desse projeto para as comunidades que serão afetadas pela construção da mina?

Lorena Fleury: Essa é uma questão bem importante. Eu faço parte de um grupo de pesquisa aqui na Universidade que chama Temas (Tecnologia, Meio Ambiente e Sociedade). Quando a gente ficou sabendo desse projeto de construção, fomos convidados a discutir esse projeto da Mina Guaíba e nosso primeiro passo foi analisar o estudo de impacto ambiental apresentado pelo empreendedor, que no caso é a Copelmi, para o órgão licenciador estadual, que é a Fepam. No nosso grupo nós lemos e analisamos esse estudo e, ao mesmo tempo, fizemos saídas de campo para conhecer o lugar onde está prevista a implementação da mina e para conversar com as pessoas a fim de entender como funciona a vida delas ali em termos socioambientais e socioeconômicos. Nós identificamos uma série de falhas nesse licenciamento e, a partir desse estudo, construímos um parecer contrário ao licenciamento ambiental. Passamos a integrar também o Comitê de Combate à Mega mineração no Rio Grande do Sul.

Esses empreendimentos precisam ser analisados quanto a viabilidade socioambiental e sejam discutidos com a população. Nesses dois aspectos são completamente falhos no caso da Mina Guaíba. Então, protocolamos esse parecer junto à Fepam, que é um documento de mais de vinte páginas em que analisamos ponto por ponto quais são as falhas desse estudo de impacto ambiental e contrapomos com o que que vemos no lugar hoje. A instalação da Mina retiraria mais de uma centena de famílias que vivem na região, uma área de produção de arroz orgânico que se tornaria inviabilizada, teríamos uma série de consequências ambientais, como ruídos, partículas na atmosfera, barulho, entre outros. Há também uma série de efeitos muito intensos em toda a teia urbana que é a região metropolitana de Porto Alegre. Um empreendimento desses satura o sistema de saúde nos municípios locais, sempre tem um fluxo migratório de pessoas que vêm para trabalhar e não necessariamente são contratados. São pessoas que passam a vir a morar no lugar e podem não ter condições de habitação ou renda adequadas.

Também nos contrapomos muito porque, de novo, há todo um discurso de desenvolvimento. Só que se olharmos os dados dos municípios que têm empreendimentos de mineração, inclusive de carvão e também realizada por esse mesmo empreendedor, todos os indicadores são muito aquém da média do estado do Rio Grande do Sul. Mesmo se entendermos desenvolvimento como crescimento econômico, por exemplo, uma mina como essa não traz crescimento, não traz esse desenvolvimento.

Sul21: E dentro desse acompanhamento vocês estão realizando algum projeto voltado para essas comunidades que serão afetadas?

Lorena Fleury: Sim. Fizemos entrevistas com as famílias e realizamos grupos focais para conversar com essas famílias e compreender como que é o dia a dia delas ali, quais são as formas delas de se relacionarem com o lugar. As famílias que moram tanto no loteamento Guaíba quanto no Assentamento Apolônio de Carvalho sempre têm hortas em casa, têm árvores frutíferas, muitas cultivam galinhas. Sendo removidas, essas famílias perderiam tudo isso. Então, também fizemos esses grupos para entender o quanto que isso é importante para elas e temos mantido contato.

Além disso, outra coisa muito importante é que na área atingida pelo empreendimento existem duas aldeias indígenas, que não foram incluídas no licenciamento, o que é uma coisa que é uma completa violação de direitos. Também temos feito pesquisas de campo junto com essas comunidades indígenas para dar o suporte para que elas sejam consideradas e, sobretudo, para que elas tenham seus direitos garantidos, inclusive de continuar a viver no lugar em que elas vivem.


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