Entrevistas|z_Areazero
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4 de março de 2019
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10:27

“Homens tendem a ver corpo da mulher como demarcação de território. Relatos de relações abusivas vem cada vez mais cedo”

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Sul 21
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“Homens tendem a ver corpo da mulher como demarcação de território. Relatos de relações abusivas vem cada vez mais cedo”
“Homens tendem a ver corpo da mulher como demarcação de território. Relatos de relações abusivas vem cada vez mais cedo”
Ana Cristina Gehring é fisioterapeuta pélvica e especialista em ginecologia natural. Foto: Giovana Fleck/Sul21

Giovana Fleck

A sexualidade feminina dá lucro. Presente em diferentes mercados e explorada de diversas formas, os direitos sexuais e reprodutivos da mulher – que envolvem direito ao próprio corpo e a própria sexualidade, expressa como e com quem quiser – protagonizam não só uma disputa por reconhecimento, mas por rentabilidade.

Na indústria farmacêutica, o mercado de anticoncepcionais, já enorme, cresceu 8% nos últimos cinco anos. Hoje o mercado brasileiro é explorado por 15 empresas e possui vários tipos de produtos: oral, injetável, vaginal, via uterina e implante subcutâneo. Desses, o oral conta com a maior venda e variação, como monofásica, combinada, minipílulas, bifásica, trifásicas, mensal, pós-coito e antiandrogênica. A quantidade de mulheres que consome o produto no Brasil ainda é desconhecida, mas a estimativa feita nos Estados Unidos afirma que existem 78,5 milhões de consumidoras no mundo.

No Brasil, há 22 milhões de pessoas que assumem consumir pornografia – 76% são homens e 24% são mulheres. Os dados estão em um material produzido pelo Quantas Pesquisas e Estudos de Mercado a pedido do canal a cabo Sexy Hot para traçar um perfil de quem consome pornografia no país. Não existem informações públicas que contabilizem o lucro de sites e canais de televisão focados em pornografia. Porém, entrevista ao Metrópoles, o dono do site Brasileirinhas – maior produtor de pornô brasileiro – afirmou que o faturamento do site já se manteve na casa dos milhões. O sexo mostrado ali, violento e submisso, é chamado de “hardcore”. Causa rejeição a uma parcela significativa das mulheres do mundo real.

No sexto maior mercado da indústria de cosméticos no mundo, a Associação Brasileira da Indústria de Higiene Pessoal e Cosméticos (Abihpec) registrou um crescimento real de 1,5% a 2% no faturamento do setor em 2018. Segundo dados da Isaps (sigla em inglês para Sociedade internacional de cirurgias plásticas para fins estéticos), o Brasil é o segundo país com o maior número total de cirurgias plásticas com fins estéticos, logo após os Estados Unidos. De acordo com dados da Isaps, 86,2% das cirurgias plásticas no mundo são realizadas por mulheres. O aumento de seios continua sendo a cirurgia plástica mais realizada (15,8%) entre os 2,5 milhões de procedimentos por ano, seguidos da lipoaspiração (14%) e da cirurgia de pálpebra (12,9%).

“São reflexos do quanto somos cobradas sobre um padrão de corpo que não é real, dentro de uma sociedade que também requer da mulher que esteja em uma posição determinada. Enquanto se puder fazer dinheiro em cima disso, não vai deixar de acontecer”, diz Ana Cristina Gehring,  fisioterapeuta pélvica e especialista em ginecologia natural. Em seu consultório, recebe mulheres de todas as idades que buscam, além de tratamentos para questões relacionadas à sexualidade, autoconhecimento. Percebendo entre as pacientes as mesmas angústias e dúvidas, ela criou o blog Vagina Sem Neura e, também, um perfil no Instagram que têm funcionado como espaço seguro de trocas de informações sobre a saúde feminina. “Acabou sendo um espaço onde as mulheres se sentem à vontade, diferente das relações ao vivo”, garante ela, que afirma moderar comentários e usuários que demonstram posições agressivas. “Na maioria, homens”, afirma.

Masturbação, pompoarismo, fortalecimento da musculatura pélvica, dores, orgasmo, violência, aborto, imagem pessoal: o Vagina Sem Neura exercita uma linguagem acessível para desmistificar temas que fogem da relação comum de assuntos e estão presentes na realidade das mulheres. “Toda mulher conhece outra que já abortou. Toda mulher sente dor. Toda mulher conhece outra que já viveu um relacionamento abusivo. Não podemos esperar que a sociedade aprenda a não hipersexualizar o corpo da mulher. Enquanto lucrarem com isso, não vai acontecer.”

Confira a entrevista completa:

Sul21 – Por que é tão importante que as mulheres conversem sobre saúde íntima e autoconhecimento? 

Ana Cristina Gehring – É saúde em geral. Se espera que a mulher, algum dia, engravide e entre na menopausa. Durante todas essas etapas, a gente têm uma enorme variação hormonal que causa muita diferença no corpo da mulher. Geralmente, essas fases não são comentadas e causam mudanças gigantes. É importante que se fale para haja uma tranquilidade ao passar por esses processos, sabendo lidar com maior propriedade e estado preparadas.

Sul21 – Por quais motivos tu avalia que não se comenta sobre esses aspectos do ciclo de vida da mulher?

Ana Cristina Gehring – Infelizmente, tudo que envolve o corpo é tabu. Eu vejo pela época em que a minha mãe engravidou. Ela me teve há 30 anos. Quando ela engravidou de mim, não podia ir para a igreja. Eles moravam no interior, era outra construção. Achavam que ela estava com o diabo no corpo, que deveria ficar em quarentena. A mesma coisa durante a menstruação. Quando menstruava, também era excluída da igreja.

O sangue nunca é visto como saúde. Na menopausa, a mulher é vista como improdutiva. Ela já não serve para muita coisa, aos olhos da sociedade. Não pode reproduzir, esta velha.

Sul21 – Existe também um caráter de impureza associado à menstruação, como se fosse algo sujo. 

Ana Cristina Gehring – Na Índia, especialmente em zonas rurais, fora dos grandes centros, ainda se vê a menstruação como algo a ser escondido e impuro. Meninas em idade de colégio deixam de ir à aula. Como absorvente, usam panos que encontram na rua. Na madrugada, elas os enterram. Fazem isso para que ninguém enxergue a menstruação. Além do estigma social, isso cria um problema de salubridade. Com a chuva, esses panos ficam expostos e se acumulam. 

Sul21 – Na tua experiência clinica, as tuas pacientes trazem esses estigmas sobre o próprio corpo? 

Ana Cristina Gehring  Totalmente, parece que estamos falando de outro mundo quando se fala em nojo e até um certo pavor de menstruação. Mas é o mais frequente. Não se pode conversar sobre isso, no geral. 

Sul21 – Quais são as maiores preocupações que elas trazem? 

Ana Cristina Gehring – Começa pelo fato de que a maioria das mulheres nunca recebeu uma instrução real sobre como lidar com o próprio corpo. 

A maior parte das mulheres menstrua e têm vergonha de contar para a mãe, então passa por esse processo sozinha. Começa a lidar com isso sozinha. Isso é o mais comum. 

Existem também os casos de meninas que são repreendidas pelas mães, por acreditarem que as filhas começaram a menstruar muito cedo. É visto como algo ruim, tratado como um tabu dentro da família. Eu vejo uma maioria entre as mulheres com estigmas da infância que criam nojo e barreiras com o próprio corpo. Com isso, vem menstruações mais dolorosas, um stress muito grande em relação aos ciclos naturais. Muitas desenvolvem endometriose ou miomas. E tudo se relaciona com estas emoções internalizasse no nosso corpo. Não é simplesmente porque o corpo não está funcionando como deveria.

Sul21 – Alem da menstruação, a vida sexual das mulheres também é impactada por esses estigmas. Em um dos posts do teu blog, tu descreves como um grande número te procura, com frequência, por não conseguir ter um orgasmo durante a relação sexual. Foi por conta dessas barreiras que tu decidiste criar o Vagina Sem Neura? 

Ana Cristina Gehring – A maior parte das mulheres relata que nunca teve um orgasmo durante a relação sexual ou não sente prazer suficiente. Geralmente, na maioria dos casos, depois de um ano e meio de relação quando o corpo já não produz mais tanta ocitocina – que é um dos hormônios liberados na relação – o sexo deixa de acontecer por prazer. 

Acontece para agradar o parceiro, por um sentido de obrigação. 

Sul21 – Pra ti, o que isso diz sobre a construção do papel da mulher na sociedade? 

Ana Cristina Gehring – Por exemplo, muitos homens não aceitam que a mulher se masturbe durante a relação sexual. Não permitem que ela use um vibrador ou um estimulador clitoriano… 

Muitas das minhas pacientes relatam sentirem dores na relação. E um dos maiores medos do parceiro passa a ser a mulher reabilitada. Eles se sentem is seguros, acham que ela vai procurar outra pessoa por estar mais tranquila com a própria sexualidade. 

Sexualidade está ligada com o poder de tomada de decisão, com criatividade, com vontade. É, literalmente, estar disposta pra conquistar o que quiser. E isso assusta. Assusta porque vai além da relação sexual em si. É autoconhecimento e autoconfiança. 

E, hoje em dia, as relações ainda são vistas como fálicas. A penetração ainda tem muito protagonismo. Mas existem tantas fases e processos pra explorar. 

Acompanhei vários relatos de mulheres que passaram a se esquivar dos beijos de língua dos parceiros pois sabiam que se beijassem, eles iam querer penetração. 

Nem sempre é isso que se quer. É o abraço, o beijo, o toque. Isso também estimula os hormônios de proximidade. Mas existe essa característica de isolamento, de privação dentro do próprio relacionamento. 

Sul21 – Todas essas situações consideram relacionamentos heterossexuais. Há, de fato, uma diferença grande entre a iniciação sexual do homem e da mulher. A educação sexual seria um caminho para diminuir essas barreiras?

Ana Cristina Gehring – Considerando que não se comenta, não se fala – se bloqueia – só desmistificar o assunto já seria um ganho imenso. Na escola, se fala em prevenção de doenças sexualmente transmissíveis e sobre gravidez. É sempre colocando um pavor geral nas pessoas. Nisso, já acontece uma privação da vida sexual plena e leve – já existe uma carga negativa. Realmente, todo mundo tem que se cuidar. Mas não precisa ter medo da sexualidade.

Sul21 – Dentro da escola, o que seria uma boa aula de educação sexual?

Ana Cristina Gehring – Do jeito que está, não está bom. Vejo que a introdução do assunto nas escolas precisa mudar. Não precisa ser promíscuo. Homens tendem a ver o corpo da mulher como demarcação de território. “Quantas eu transei. Quantas eu consegui tirar a virgindade.” É interessante ver que essas ideias permanecem de forma indiferente, com instrução ou não. Mais do que ensinar sobre o sexo, acho que precisamos construir um modelo de diálogo que quebre essas ideias sobre posse e território, completamente irreais. 

Sul21 – E o quanto isso não mostra um lado violento…

Ana Cristina Gehring – Extremamente violento. Percebo que, entre pacientes adolescentes, entre 15 e 16 anos, relatos de relações violentas e abusivas vêm cada vez mais cedo. 

Sempre recebo mulheres que foram vítimas de alguma situação de abuso. Sempre. É naturalizado, o horrível é que é o comum. Semanalmente atendo um caso novo.

Sul21 – Tu enxergas alguma perspectiva de trabalhar a violência contra as mulheres enquanto sociedade? 

Ana Cristina Gehring – Acho que deve haver uma mudança de narrativa. Mesmo que devagar, acho que só conseguimos isso com informação, trabalhando a forma de ensinar. Abrindo espaços. 

Mas é difícil. Crescemos vendo a Banheira do Gugu, as Panicats…

Hoje, as redes sociais são só corpo. É só sexualização. As mulheres querem se libertar mas estão sucetíveis a esse entorno de estigmas. No final do dia, somos instruídas a mostrar a sexualidade do corpo. O quanto essa beleza fabricada é importante. É difícil lutar contra isso. 

Sul21 – Existe um meio de quebrar essa lógica já tão consolidada de sexualização no cotidiano? 

Ana Cristina Gehring – Não, pelo simples motivo de que vende. Se a foto, o programa te televisão, o vídeo, a publicidade não tivesse essa conotação, não venderia. Isso não vai acabar. 

Existe uma identificação ou um desejo por aquela imagem. 

Existe uma diretora de filmes adultos, Érika Lust, que tenta desenvolver um trabalho mais focado nas mulheres. Filmes para mulheres. Acaba sendo algo bem menos agressivo, mais realista. Exemplos assim fogem à regra, mas ainda são poucos. 

Sul21 – O mercado da pornografia talvez seja o exemplo mais extremo da sexualização e de todas essas fantasias criadas em torno das mulheres. Como tu diria que é a relação da mulher com o pornô? 

Ana Cristina Gehring – As mulheres olhando um pornô já imaginam a dor. Não se enxerga o prazer através daquilo. Mas faz sentido. Pro cérebro masculino, que se estimula com testosterona e se identifica com a violência, aquilo faz sentido. Aquela agressividade é um parque de diversões. Acho que prazer e dor se aproximam muito ali. 

Pornô lésbico, para o homem, é fetiche. Pornô gay, não é aceito. Duas mulheres juntas pode, é sexy. E tem que ser duas mulheres “bonitas”. Dois homens não. São construções esquisitas. 

Sul21 – Tu acredita que essa discussão poderia ser incluída no processo de formação sexual, talvez dentro de aulas sobre educação sexual? 

Ana Cristina Gehring – É difícil. Por mais que o colégio ensine, como fica dentro de casa? Como fica na igreja? Nos espaços onde essa pessoa frequenta? Deve existir uma mudança geral. A começar pelo poder público. A descriminalização do aborto, por exemplo. Quem decide sobre isso? Uma maioria de homens. A mulher não legisla sobre o próprio corpo. A realidade é que o aborto segue sendo feito, por homens, para mulheres que podem pagar. Quem não pode, corre riscos. Isso é o mais cruel nessa dinâmica. O homem ganha dinheiro, mantém a lógica. Eles não fazem pelas mulheres, fazem pelo dinheiro. 

Dados do próprio Sistema Único de Saúde mostram que mulheres que abortam no Brasil são, na maioria, casadas, mães e religiosas. Geralmente não é a menina irresponsável de 14 anos. É uma questão muito mais socioeconômica, mas por ser algo da natureza feminina, há um preconceito enorme entorno. 

São mulheres que se relacionam com parceiros que se negam abusar preservativo. Mulheres que, muitas vezes, tomam doses grandes de hormônios como anticoncepcional. É cruel, existe um ciclo na indústria que lucra com toda a sexualidade feminina. Fomos ensinadas que existe um certo e um errado, e esse certo faz com que, estruturalmente, muitos homens acabem ganhando dinheiro e um domínio ideológico dos nossos corpos. 


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