Entrevistas|z_Areazero
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19 de novembro de 2018
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09:50

‘Quando faz política de segurança baseada em ideologia, além de não ter resultado, você anda para trás’

Por
Luís Gomes
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Daniel Cerqueira é um dos principais pesquisadores do Brasil na área de segurança pública | Foto: Zeca Ribeiro / Câmara dos Deputados

Luís Eduardo Gomes

O que esperar da política de segurança pública do futuro governo Jair Bolsonaro (PLS)? Para Daniel Cerqueira, conselheiro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e um dos principais pesquisadores a respeito do assunto no País, não muito. Isso em um cenário positivo. Caso o presidente eleito vá além da retórica e coloque em prática suas bravatas de campanha, como a flexibilização do porte de armas e liberação para policiais matarem em serviço sem serem investigados, Cerqueira acredita que uma verdadeira tragédia irá ocorrer, com um aumento ainda mais significativo no número de homicídios.

No início de novembro, Cerqueira veio ao Rio Grande do Sul para ministrar a palestra de lançamento do curso de especialização Segurança Pública e Prevenção à Violência com Base em Evidências, que será oferecido no ano que vem pela Universidade Feevale, de Novo Hamburgo, para profissionais com diversas formações que se envolvem no combate à violência. Na ocasião, ele conversou com a reportagem do Sul21 por cerca uma hora em um hotel próximo ao aeroporto Salgado Filho.

Doutor em Economia, com sua tese intitulada ‘Causas e consequências do crime no Brasil’ tendo sido agraciada com dos dois principais prêmios do País na área, do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e da Associação Nacional dos Centros de Pós-Graduação em Economia (Anpec), diz que as melhores experiências nacionais e internacionais apontam que só há um caminho para a redução da violência no Brasil: a adoção de método científico para lidar com o diagnóstico e resolução dos problemas.

“A importância de você pensar em políticas de segurança pública baseadas em evidências, baseadas no método científico, é você utilizar recursos escassos para tentar ter maior efetividade. Quando você faz política na base da retórica vazia, na ideologia, além de você não ter resultado, você anda para trás. O exemplo clássico é exatamente da arma de fogo. Há várias evidências internacionais, na verdade é basicamente um consenso na academia científica nacional e internacional, que mais armas, mais crimes”, diz.

Na conversa, ele também aponta os motivos que levaram ao crescimento exponencial das facções criminosas no Brasil e os impactos que isso teve na violência. A seguir, confira a entrevista.

Sul21 – O presidente eleito, Jair Bolsonaro, teve como bandeira de campanha a flexibilização do porte armas, mas não sabemos muito bem como isso será feito. O que pode vir por aí nesse sentido?

Daniel Cerqueira: Dando um passo para trás, a importância de você pensar em políticas de segurança pública baseadas em evidências, baseadas no método científico, é você utilizar recursos escassos para tentar ter maior efetividade. Quando você faz política na base da retórica vazia, da ideologia, além de você não ter resultado, você anda para trás. O exemplo clássico é exatamente da arma de fogo. Há várias evidências internacionais, na verdade é basicamente um consenso na academia científica nacional e internacional, que mais armas, mais crimes. A cada 1% a mais de armas nas cidades, nós chegamos à conclusão de que aumenta a taxa de homicídios em 2%. Então, armas dentro de casa, ou porte de arma, na verdade significam aumentar ainda mais a nossa taxa de homicídios que já atingiu patamares inimagináveis.

Sul21 – Nesse ponto, o programa do Bolsonaro dizia basicamente o oposto disso. Estava escrito que existiria uma correlação apontando que quanto mais armas de fogo, menor o número de homicídios. O plano usou como exemplo o Uruguai, país com menor número de homicídios na América do Sul e o maior número de armas. A realidade é o inverso disso?

DC: É o inverso. Na verdade, esse programa de segurança pública segue uma coerência com todo o resto do programa de governo do Bolsonaro, que, na verdade, é baseado em meros enfeites. Quando você vai à ciência, à literatura científica, vai ver que não é nada disso. Na verdade, mais armas, mais crimes. Por que isso acontece? Existem basicamente quatro canais que explicam isso. O primeiro é que uma arma dentro de casa faz com que a chance de alguém ali naquele lar sofrer um homicídio ou suicídio aumente cinco vezes mais. Vários pesquisadores apontam isso em artigos publicados na academia, inclusive médica americana, em publicações famosas com mais de 100 anos de existência. Além de aumentar os homicídios e suicídios dentro de casa, aumentam também os acidentes domésticos letais envolvendo crianças. A arma dentro de casa conspira contra a segurança do próprio lar. Ela não é um elemento de segurança do lar, é um elemento de insegurança do lar. E, além disso, a arma também conspira contra a segurança pública. Por quê? Porque várias daquelas armas eventualmente vão ser roubadas ou extraviadas. Isso significa dizer que elas vão parar no mercado ilegal. A oferta de armas no mercado ilegal aumenta, fazendo com que o preço diminua, fazendo com que o criminoso mais desorganizado, aquele menino que vai assaltar ali na esquina, pegue o três oitão e termine cometendo o latrocínio.

Além disso, uma arma dentro de casa significa dizer que a pessoa com arma muitas vezes se sente empoderada e, diante de um conflito, o ser humano é conflituoso por natureza, vai resolver de que forma? Perde a cabeça e naquele momento é na base da bala. Estamos falando de briga de vizinhos, briga de bar, briga por política, estamos falando de feminicídio, questões passionais. Então, uma boa parte dos crimes letais que acontecem no Brasil não é cometida pelo criminoso contumaz, pelo bandido profissional, é cometida por aquele pai de família que perdeu a cabeça e matou o outro. Ou então, em alguns lugares em que a Secretaria de Segurança Pública conseguiu aferir as motivações dos homicídios, tem uma parte que não se conseguiu saber, mas, dos que se conseguiu saber, 30% tinham a ver com crimes interpessoais, briga de bar, de vizinho, homem matando mulher e por aí vai.

Além disso, tem um quarto ponto importante. A arma de fogo dentro do contexto urbano é um instrumento de ataque, não de defesa. Significa dizer que um cidadão armado, na hora que o bandido vai assaltar, existe o efeito surpresa. Há uma pesquisa do Ibccrim [Instituto Brasileiro de Ciências Criminais], lá de São Paulo, que demonstra que o cidadão armado, ao ser abordado num assalto, a chance de ele próprio ser assassinado aumenta em 54%. Então, nós estamos falando de evidências nacionais, teses de doutorados, da UFRJ, da FGV, da USP, que têm os mesmos resultados. É um consenso na literatura internacional. Então, o programa do Bolsonaro pinça um dado ou outro para, de forma falaciosa, mentirosa, falar que é o contrário, quando na verdade existe um consenso na academia científica internacional.

Sul21 – Outra questão que sempre aparece é a do Estatuto do Desarmamento, que entrou em vigor em 2003. A gente teve um crescimento de homicídios grande nesse período, superando o número de 60 mil no ano passado. Os defensores do porte de armas argumentam que, por causa desse aumento, o Estatuto foi ineficaz. Por outro lado, existem estudos que apontam que esse número seria maior se não houvesse a legislação. Quais são as evidências que a gente tem para dizer se o estatuto foi eficaz ou ineficaz?

DC: O primeiro ponto é que, se a gente for olhar a dinâmica dos homicídios no Brasil desde 1980 para cá, o que acontece? Em 1980, para cada 100 homicídios que aconteciam, algo como 30%, 30 e poucos por cento eram cometidos por arma de fogo, o que era um padrão chileno, um padrão uruguaio, de outros países vizinhos. Nós chegamos em 2003, no ano do Estatuto do Desarmamento, a 71%, 72% dos homicídios sendo cometidos por arma de fogo e estabilizou isso. Então, a gente vinha durante três décadas em uma verdadeira corrida armamentista no Brasil, aumentando enlouquecidamente o número de armas e de homicídios. E, a partir de 2003, essa corrida armamentista mais ou menos foi freada. O que aconteceu com o número de homicídios? Ele cai até 2007, até 2010 fica mais ou menos constante, e, nos últimos, anos aumenta de fato.

O segundo ponto é que o fato do número de homicídios e de armas de fogo terem aumentado ou diminuído não prova nada para nenhum lado. Você poderia ter uma situação de que você vai observar mais armas em lugares com mais homicídios, ou mais armas e menos homicídios ou menos armas e mais homicídios e isso não quer dizer nada, é uma mera correlação. Por quê? Porque existem vários fatores causais que explicam a criminalidade. Se a gente for olhar para o Brasil nesse período, sobretudo a partir de meados da década de 2000 para cá, qual é o fato fundamental que aconteceu? Um crescimento exponencial das facções criminais que nascem dentro das prisões. Então, se até 2005 a gente tinha basicamente quatro ou cinco facções criminosas — PCC, Comando Vermelho [CV] Terceiro Comando e Amigos dos Amigos lá no Rio –, hoje nós temos 79 facções criminosas no Brasil.

Sul21 – Pelo menos, não é? Deve haver algumas ainda desconhecidas.

DC: Sim, 79 que a gente catalogou. Então, esse crescimento se deu exatamente na segunda metade dos anos 2000. Um terceiro ponto é que existem vários fatores que causam homicídios, a arma é um deles. Um controle responsável das armas de fogo não é o remédio para todos os males. ‘Agora vamos controlar e vai estar tudo resolvido’. Como num país com enorme desigualdade como Brasil, um país com facções criminosas, um país onde a lei não é cumprida, um país onde as crianças são abandonadas, então como é que a gente vai resolver simplesmente com controle? Chega a ser absurdo isso. Então, para a gente pensar cientificamente entre a relação causal entre armas de fogo e homicídios, a gente teria que controlar outros fatores que eventualmente causam homicídios e saber se há essa relação entre armas e homicídios.

“O consenso na academia científica nacional e internacional é de que mais armas é igual a mais homicídios”

Fazendo uma analogia, você imagina que os médicos e cientistas ficaram anos fazendo experimentos para descobrir que uma alimentação saudável, com frutas e verduras, faz diminuir as chances de a pessoa sofrer um infarto. Como você fez isso? Fez experimentos com grupo de controle e tratamento, pegou as pessoas que comiam alimentos saudáveis e não, e foi ver que as chances do primeiro grupo sofrer com infarto eram menores. Aí você imagina o Silva passando na rua, aquele cara que toda a vida comeu frutas e verduras, só que era um fumante inveterado. Um armamentista desse que visse o Silva sofrer um infarto e cair fulminado diria: ‘Olha, está vendo como comer verdura não adianta?’ É a mesma coisa que estamos falando aqui. Temos que controlar por outros fatores causais, é isso que a ciência procura fazer. Então, o consenso na academia científica nacional e internacional é de que mais armas é igual a mais homicídios.

Sul21 – Que medidas poderiam ser tomadas capazes de reduzir a violência em poucos anos?

DC: A gente fez um levantamento de boas experiências internacionais e nacionais que conseguiram reduzir homicídios num período relativamente curto de tempo, três, cinco, dez anos. Aí você pode pensar experiências como a de Nova York do Giuliani — política conhecida como Tolerância Zero nos anos 1990 –, você pode pensar em Ciudad Juarez, no México, na Colômbia em várias cidades, no Brasil também tem algumas cidades e estados que conseguiram diminuir homicídios. O que a gente percebeu que há de comum nessas histórias? Há seis ingredientes que são fundamentais e estavam presentes. Não sabemos se o mais importante é o ingrediente um, dois, três, quatro ou cinco, mas é mais ou menos como um coquetel anti-Aids. O paciente está com HIV e o médico lhe dá um coquetel. O paciente toma e melhora. Não é pelo comprimido a ou b, mas pela combinação. Que combinação é essa?

Em primeiro lugar, não existe segurança pública se não houver total comprometimento do principal político local, seja ele presidente da República, governador ou prefeito. Tomando como referência os estados, porque estamos falando sobretudo das polícias militares e civis, não há como se pensar segurança pública se o governador não é o primeiro a estar comprometido com a vida das pessoas. Se o governador delega isso para o secretário, esquece todo o resto, está tudo perdido. Por quê? Primeiro que segurança não é um pacotaço que você lança de cima para baixo como o Plano Real, mas algo construído socialmente e que depende de pactuação e mobilização de vários atores. Quem pode coordenar esses atores? É a liderança política. Segundo, quando a gente está falando de estados, você tem um problema que é a briga secular, corporativista, entre policiais civis e militares. No dia a dia das polícias, ninguém está pensando muito em segurança pública não, estão pensando em garantir prerrogativas corporativas. Na hora que o governador vira as costas, o secretário não comanda nada. E não manda nada porque do lado da sala de todo governador tem uma portinha que é a Casa Militar, um oficial que está ligado com as assembleias legislativas. Esse cara passa por cima do secretário, que não manda nada. Terceiro, é que as experiências que dão certo envolvem um planejamento a partir de ações intersetoriais. Então, falar de segurança pública não é falar em atirar na ‘cabecinha’ do criminoso, é falar de um projeto mais amplo em que você, por exemplo, invista hoje para que a criança não seja o bandido de amanhã. É você, ao mesmo tempo, investir na polícia para que ela não seja a do confronto, mas da investigação, da inteligência, que tenha uma atuação junto com a comunidade. Ou seja, é uma política que envolve ações intersetoriais e o secretário da Segurança não manda no da Educação, no da Cultura. Quem pode ordenar a linha é o governador.

“Em primeiro lugar, não existe segurança pública se não houver total comprometimento do principal político local, seja ele presidente da República, governador ou prefeito”

O segundo ponto é que, nesses lugares que dão certo, eles fazem algo inimaginável pra gente. No Brasil, se imagina segurança pública como algo feito na base do achismo, naquela reunião de última hora. Teve uma chacina na esquina, você reúne governador, secretários, eles fazem aquela cara de importante e anunciam que vão botar uma ‘patrulinha’. Agora teve até uma inflação, botaram os tanques na rua. Aquele espetáculo midiático. Não se faz política, seja pública ou privada, na base do achismo, da improvisação, da retórica vazia. Se faz a partir do método científico. E como é esse método? Você precisa ter um diagnóstico para saber onde o problema está localizado, quais são as origens daqueles problemas sociais e também a dinâmica criminal, quem são os envolvidos ali. A partir disso, você faz um plano que vai envolver uma repressão qualificada, inteligência e investigação para tirar os criminosos contumazes daquela área e ao mesmo tempo fazer um planejamento de prevenção social. Você tem metas e acompanha se aquilo foi cumprido ou não, para depois avaliar se teve efeito. Os países desenvolvidos fazem isso. Mesmo no Brasil, alguns lugares fizeram isso. O que aconteceu? Conseguiram reduzir crimes. Nos lugares onde se ficou na base da bravata, as coisas só pioraram.

O terceiro ponto importante é que o ser humano é conflituoso, então é preciso disseminar espaços de solução de conflitos por meio da mediação. Aqui no Rio Grande do Sul, vocês têm uma onda magnifica que está contaminando, no bom sentido, o resto do Brasil que é a Justiça Restaurativa. É você colocar o diálogo no lugar da violência.

Além disso, você tem mais três coisas importantes. Um quarto ponto é o controle da arma de fogo. Um quinto ponto é repressão qualificada. Ou seja, não dá para a gente pensar que polícia é você botar ‘patrulinha’ na rua para dar visibilidade, porque com a ‘patrulinha’ você vai prender ‘pé de chinelo’, que é o cara que está na rua, o ‘aviãozinho’ que está com 10g de maconha, o cara que furtou e roubou um celular. Os grandes criminosos, o homicida contumaz, o chefe da quadrilha, ele é preso na rua? Não, é preso através de um trabalho de investigação e inteligência policial, na surdina, sem jornais, você vai e o cara é preso. É assim que funciona a segurança pública. Além disso, um sexto ponto fundamental para dar sustentabilidade temporal é você investir nas categorias de base. Não adianta simplesmente pensar na repressão qualificada, tirar os homicidas da área, a taxa de crime cai em um momento, mas, depois, com a produção de criminosos que vêm do abandono, da morte simbólica dessas crianças e jovens nas periferias, esses garotos vão ser os bandidos de amanhã, então tudo volta à estaca zero no futuro. Temos que investir na categoria de base para o futuro e na repressão para retirar os criminosos hoje. Nos lugares onde se fez isso, deu certo.

Daniel Cerqueira  destaca que pesquisas apontam que armar a população resulta em aumento da violência | Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Sul21 – O que explica o crescimento tão grande no número de facções em menos de uma década como o senhor apontou anteriormente?

DC: Acho que há dois processos aí que se retroalimentam. Primeiro, teve um aumento no consumo de drogas. A gente fez um trabalho em que pegamos cada pessoa que morreu no Brasil desde 1980 para cá e fomos olhar as causas. Pegamos uma a uma e vimos que aumentou substancialmente o número de pessoas que morreram por overdose de drogas ilícitas a partir de meados da década de 2000. O que acontece ali? É uma década de opulência econômica. Todas as cidades, de maior ou menor magnitude, tiveram aumento de renda. Cidades pequenas do interior onde o dinheiro não rolava, passou a circular. Aquele dinheiro circulando atrai as coisas boas que a economia de mercado possibilita, porém também atrai as coisas ruins. Eventualmente, vários mercados ilícitos que eram economicamente inviáveis, agora passam a ser viáveis. Aí você começa a ter o interesse em explorar aqueles mercados, você começa a ter as facções lá e começa a ter briga de facções.

Um segundo ponto é que as facções devem agradecer ao estado, que, de certa forma, ajudou a organizá-las. Como fez isso? Com uma política de crescimento exorbitante das prisões de baixa qualidade, o cara que está com 4g de maconha, o aviãzinho, o cara que roubou o celular. Nós aumentamos enlouquecidamente as prisões. Hoje, temos 720 mil detentos, com apenas metade das vagas [no sistema prisional]. Então, há muito tempo, e essa situação só piorou nos anos 2000, o estado não tem o controle dos presídios. Quem manda nos presídios são os faxinas, aquele bandidão que tem a chave da cadeia. Você bota meia dúzia de agentes penitenciários para tomar conta de um presídio, o cara tem que se render a um acordo, senão a coisa não funciona.

Além disso, tem o aumento da massa de mão de obra para as facções ocasionado pelo aumento das prisões de baixa qualidade. Fizemos uma pesquisa que apontou que 70% dos presos no Brasil são detidos em flagrante. Ou seja, a ‘patrulinha’ passou e pegou. São esses ‘pés de chinelo’.

“Você bota meia dúzia de agentes penitenciários para tomar conta de um presídio, o cara tem que se render a um acordo, senão a coisa não funciona”

Um terceiro ponto ainda é que, em meados da década de 2000, houve também um processo de exportação de presos de um estado para outro. Um estado tinha um preso que era perigoso e o governador queria se livrar dele, mandou para outro estado, que mandou o seu para um terceiro. Assim os presos fizeram turismo pelo Brasil e conseguiram alicerçar melhor suas redes criminais. Teve um quarto ponto que foi uma mudança de estratégia do PCC, que até meados da década era uma facção que tinha um forte teor ideológico, paz e liberdade, ‘vamos proteger o crime’, uma proteção até contra o estado, que era o primeiro a descumprir a lei. Depois, eles perceberam o seguinte: esse negócio de tráfico de drogas dá muito dinheiro. Começou a ter uma mudança geoeconômica para o tráfico de drogas em rede. Você começa a ter uma disputa geopolítica a partir do ano 2000 entre PCC e Comando Vermelho. Esse atrito irrompe em 2006 e gera a guerra entre as duas facções querendo ganhar espaço geopolítico. O que aconteceu? Em muitos lugares, organizações locais que não queriam ceder ao bairrismo do sudeste criaram as suas próprias facções, como aqui no Sul que você tem os Bala na Cara e os Anti-Bala, uma disputa altamente regional.

Sul21 – Como se lida com essas facções? Porque só prender não resolve, ao menos não do jeito como acontece hoje.

DC: Primeiro tem que ter uma reformulação na política criminal. É claro que, se um sujeito comete um crime, ele tem que ser punido. Não há dúvidas quanto a isso. Se um policial pega alguém cometendo um crime, tem que prender. Mas prender para levar à Justiça e a Justiça vai dar a punição, que não precisa ser mantê-lo dentro da prisão. Pode ser uma pena alternativa, pode levá-lo a um programa de Justiça Restaurativa, pode ser uma tornozeleira eletrônica. A questão é saber, dentro desses que foram apreendidos, quem tem que ficar preso.

Sul21 – E também evitar o excesso de prisões preventivas?

DC: Claro, tem que ter as audiências de custódia. Mas o fato é o seguinte, tem que ter punição, mas quem foi que disse que punição é colocar todo mundo na cadeia? Pode ter outros métodos.

Hoje, você tem três tipos de detentos. Aquela parcela que eventualmente poderia estar cumprindo uma pena alternativa, uma tornozeleira eletrônica ou algo do gênero. Nós fizemos uma conta e, desses 720 mil, aproximadamente 200 mil presos no Brasil ou foram presos por furto ou por estarem com no máximo 40g de entorpecente. Talvez uma parte desses 200 mil não devesse estar na cadeia, devesse ter outro tratamento. Por que o que vai acontecer? Dependendo do lugar no Brasil onde for preso, ele vai assinar um contrato de fidelidade eterna com as facções. No Rio de Janeiro, se um garoto for preso roubando um celular, o diretor do presídio vai perguntar para ele: ‘Vem cá, você é do Comando Vermelho, Terceiro Comando, qual é a sua facção?’ Se o menino falar que não é de nenhuma, o juiz vai perguntar onde ele mora. ‘No morro tal’. Como o morro é dominado pelo CV, o diretor, para proteger aquele garoto, vai botá-lo na galeria dessa facção, porque senão ele vai ser morto. Ao entrar naquela cela, o garoto assinou um contrato de fidelidade eterna ao CV. Para ele sair vivo dali e ser protegido, quando sair da prisão vai ter que cometer crimes para o CV. Então, é o estado arregimentando essa massa de mão de obra para as facções criminosas.

“Tem que ter punição, mas quem foi que disse que punição é colocar todo mundo na cadeia? Pode ter outros métodos”

Tem uma outra parte que deve estar presa, mas em condições de tentar se ressocializar. Dar condições de trabalho e de educação é difícil? É, mas tem que possibilitar essa alternativa porque, senão, aquele cara vai sair da prisão, e tem um fluxo muito grande de detentos que entram e saem, e vai voltar para a sociedade. O que vai acontecer? Ele vai ter emprego? Não vai. As relações sociais dele foram rompidas. O que sobrou para ele? Não é que o crime para ele vai valer a pena, será a única alternativa para ele. Então, a gente tem que criar alternativas diferentes.

E tem um terceiro conjunto que é composto pelos grandes criminosos. Esses têm que estar na segurança máxima, tem que ser isolados do sistema mesmo e ter jogo duro com esses caras para que eles não consigam comandar o crime de dentro das cadeias. Tem que separar o joio do trigo, misturar todos eles dentro daquele ambiente é a senha para essa tragédia que a gente vive no Brasil hoje.

Sul21 – Qual a perspectiva quanto ao enfrentamento ao crime organizado agora que temos, por um lado, o “super ministro” Sérgio Moro com essa atribuição e, por outro, o Bolsonaro dizendo que é para prender todo mundo?

DC: Imaginando que essa coisa absurda que o Bolsonaro fala passasse pelo Supremo, o que não vai passar obviamente porque é uma coisa que confronta a Constituição, mas supondo que de alguma maneira fosse em frente e, na verdade, o estado já descumpre a lei, então não é algo muito diferente do que já existe, o que vai acontecer? Esses caras vão sair muito piores do que entram. O grande motivo do crescimento das facções criminosas foi exatamente o descumprimento da lei pelo estado. Essas condições perniciosas da cadeia é que levaram à criação do CV no final da década de 1970 na Ilha Grande, no Rio de Janeiro. O professor William, em contato com os presos políticos, teve a ideia de organizar um grupo político e criminal para se proteger, porque havia muitos estupros dentro da cadeia, o estado descumpria as regras, tinha tortura e tudo mais. Então, as facções são, em certa medida, uma reação às vulnerabilidades que aquele cara que é um criminoso sofre pelo estado, que deveria ser o primeiro a cumprir a lei.

Eu não vejo isso mais no campo da retórica. Efetivamente, como é que eu penso a política de segurança pública no Brasil nessa época Bolsonaro? Acho que vai ser um tragédia, porque a questão das armas vai ser flexibilizada, o Estatuto do Desarmamento vai ser flexibilizado…

Sul21 – Como o senhor acha que isso vai acontecer?

DC: Primeiro, eles vão tirar o [critério] de efetiva necessidade, vão diminuir a idade de 25 para 21 anos, de forma que vai ser uma ação burocrática para qualquer cidadão que quiser comprar arma de fogo, como era antes. A Mesbla vendia armas. Então, as pessoas vão ter acesso a arma de fogo e isso em si já vai ser uma tragédia.

Além disso, você tem essa política de endurecimento penal, que, no final das contas, como a gente não investiga e não prende os grandes criminosos, vai encher ainda mais as cadeias de presos de baixa qualidade, o que vai aumentar ainda mais os nossos problemas. Em terceiro lugar, a retórica do Bolsonaro da licença para o policial matar é terrível. Por quê? Porque segurança pública não é guerra, é paz. O estado deveria ser o primeiro e o principal instigador da paz. Quando se dá a licença para matar e não precisa nem haver uma investigação para saber em que condições aquele policial matou, o que vai acontecer? Temos várias implicações. Primeiro que essa retórica cria uma guerra, uma guerra que tem um local, as favelas e as periferias. Vai ter muita gente morta, vai ter medo, vai ter criminoso morto e policial morto. Você acaba com qualquer possibilidade de dar certo o trabalho de polícia, que precisa de uma colaboração com a comunidade, o que a gente chama de co-produção da segurança pública. Quando a polícia entra com tapa na cara e dando tiro na ‘cabecinha’, significa dizer que a comunidade vai ter ódio da polícia e a polícia vai ter ódio da comunidade, então nada feito. Segundo, quando se cria essa retórica da guerra e da licença para matar, o policial pode dar um tiro e matar o cara, ou não. Não é verdade? Então, ele vai pensar: ‘Quanto você me paga para eu não te matar?’ ‘Se eu posso te matar ou não, eu posso cobrar para não te matar’. Aí essa licença abre um mercado enorme para a corrupção policial. Quando há corrupção policial, significa dizer que todo o trabalho está perdido.

“‘Se eu posso te matar ou não, eu posso cobrar para não te matar’. Aí essa licença abre um mercado enorme para a corrupção policial”

Além disso, tem o terceiro ponto de que o criminoso não é burro. Quando ver que a polícia está vindo para matar, o que eles vão fazer? Vão aumentar a demanda por armas de maior potencial ofensivo. Quem é que vai morrer nessa história? O policial. Não é à toa que quando você compara o Brasil com os Estados Unido, que entre os países desenvolvidos é o mais violento do mundo, para cada cidadão que lá se suicida, 0,9 policial se suicida. No Brasil, para cada cidadão que se suicida, três policiais se suicidam. Então, essa retórica da guerra, essa vivenciação no dia a dia, ela opera morbidades psicológicas profundas. O policial brasileiro está doente, então se suicida. Além disso, o policial mata muito, sete vezes mais, proporcionalmente, do que nos EUA. Mas é assassinado 19 vezes mais do que lá. Essa retórica para matar, no final das contas, vai contra o policial, contra a sociedade e a favor da insegurança.

Sul21 – Muito do que o Bolsonaro está propondo já não era mais ou menos o que acontecia na prática no período da ditadura militar? Por exemplo, os assassinatos eram muito pouco investigados, a maioria das mortes pela polícia eram execuções, como mostrou o Caco Barcellos no livro Rota 66. Essas soluções fáceis não são um pouco do legado que a ditadura deixou e levou a esse crescimento de homicídios?

DC: Sem dúvida. Essa retórica, essas ideias já foram testadas e resultaram na tragédia em que nós vivemos. Mas tem uma diferença, mal ou bem. Isso que você falou é verdade, o Michel Misse, professor da UFRJ [Universidade Federal do Rio de Janeiro], fez uma pesquisa brilhante pegando todos os inquéritos com auto de resistência no Rio de Janeiro em um ano e mostrou que em aproximadamente 90% deles não há sequer investigação. É uma coisa protocolar. Então, isso já existe. E também já existe a possibilidade de o policial matar, ele tem essa prerrogativa. Existem técnicas policiais, protocolos internacionais, existe a lei para aferir se aquele uso da força está sendo feito de forma correta ou não. A sociedade tem que monitorar e tem que controlar esse uso da força pelo estado. Mas quando você diz, e aí é a grande diferença, ‘não precisa mais se preocupar com isso, agora a lei é essa’, muda de figura. Ainda que na prática já fosse assim, ainda existe um negócio chamado lei e eventualmente algumas pessoas se preocupam com isso. ‘E se eu der azar da lei me pegar?’ Outra coisa é não ter mais lei. Quando vale tudo, a coisa muda de figura. Nós estamos falando de incentivos econômicos.

Sul21 – Pessoas vão ganhar se essas políticas forem implementadas para além da retórica. Quem ganha com elas?

DC: Olha, não tenha dúvida que a indústria armamentista vai ganhar, já tem até empresas querendo entrar aqui no Brasil. Aliás, é a indústria que financia vários deputados há anos lá no Congresso. As empresas de segurança privada vão lucrar à beça nesse processo. Se você for olhar a história, desde 1980 para cá, da escalada de homicídios no Brasil, a indústria que mais cresceu foi a da segurança privada. Por acaso, quem é que comanda boa parte dessas empresas? Muitas vezes são policiais, ex-policiais, militares. Esses vão ganhar também. Além disso, quem mais ganha? Ganham os mercadores do medo no Congresso, os mercadores do medo nas políticas locais. Você veja que houve um verdadeiro tsunami do Bolsonaro pelo Brasil afora. Tsunami que foi puxado por essa bandeira, porque as pessoas estão com muito medo, é natural, e o medo é um péssimo conselheiro. Quando o Bolsonaro traz essa mensagem de que ‘bandido bom é bandido morto’, as pessoas não sabem muito bem se aquilo funciona ou não, mas é uma boia para um náufrago e elas se seguram. Então, ganham políticos maldosos, os mercadores do medo, a elite armamentista, a indústria da segurança privada, muita gente ganha.

Sul21 – E o senhor acha que realmente vai aumentar o número de homicídios?

DC: Não tenha dúvida disso. Vai ocorrer uma tragédia no Brasil nos próximos anos e, ainda que daqui a quatro anos a gente consiga voltar a uma racionalidade no País, o estrago já vai ter sido feito, porque várias novas armas vão estar em circulação. Uma arma de fogo tem uma vida útil muita longa. Várias armas que hoje estão matando as pessoas nas ruas são pistolas e revólveres produzidos na década de 80.

Sul21 – Já tivemos algum exemplo semelhante no mundo de liberação drástica do porte de armas de uma hora para outra combinada com incentivo à violência policial? Se fala das Filipinas, dá para fazer algum tipo de comparação?

DC: Olha, as Filipinas também são um caso à parte, onde o número de mortos está aumentando loucamente. Agora, se a gente for olhar historicamente, houve um processo civilizatório, que incute a ideia de um contrato social, de empatia e a ideia de que conflitos serão resolvidos pela lei, com o monopólio da força pelo estado. Ao longo do tempo, como as ideias iluministas e civilizatórias foram vingando, as pessoas e os países foram cada vez mais abrindo mão dessa possibilidade de o cidadão se armar. Então, as políticas geralmente têm sido no sentido de controlar cada vez mais a arma de fogo. Os EUA são um caso a parte, porque as leis sobre arma de fogo são estaduais. Tem alguns estados que têm um controle maior, tem outros que são mais flexíveis e lenientes, e muitas vezes há alguma mudança em um ou outro estado, mas não há, nos EUA, um sentido geral de estar aumentando ou diminuindo o controle. Nos outros países sim, como no Japão. Já que gostam de comparar com países desenvolvidos, no Brasil são 45 mil pessoas mortas por arma de fogo por ano. Sabe quantas pessoas morreram por arma de fogo no Japão em 2017? Vinte e duas pessoas. Vinte e duas pessoas. Lá ninguém tem arma. A maior parte da polícia não tem arma, os caras resolvem tudo na base do caratê, na mão e eventualmente você tem policiais que têm armas. Na Inglaterra, a política também foi de cada vez mais controle da arma de fogo. Na Austrália também. Você vê que, em todos esses países que foram controlando cada vez mais as armas de fogo, houve um efeito de diminuição de homicídios, documentado por vários estudos científicos internacionais.


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