Entrevistas|z_Areazero
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1 de outubro de 2018
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11:19

Precisamos de uma nova revolução agrícola e no sistema alimentar, diz diretor da FAO

Por
Luís Gomes
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Entrevista com Jamie Morrison, líder do Programa Estratégico de Sistemas Alimentares da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura | Foto: Joana Berwanger/Sul21

Luís Eduardo Gomes

O mundo precisa de uma nova revolução no modelo de produção agrícola e em seus sistemas alimentares. Essa é a avaliação de Jamie Morrison, líder do Programa Estratégico de Sistemas Alimentares da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), que esteve em Porto Alegre para participar da Conferência Internacional Agricultura em uma Sociedade Urbanizada (AgUrb), realizada na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) entre os dias 17 e 21 de setembro.

“Precisamos ver uma transformação significativa no sistema alimentar. Porque, se você olhar para a forma como esse sistema funciona no momento, há muitos resultados negativos, seja em termos de saúde para as pessoas, seja em termos de falta de inclusão e de oportunidades econômicas para os pobres, ou seja na maneira como utilizamos os recursos naturais e o meio ambiente”, diz Morrison.

O diretor da FAO avalia que a tecnologia pode ser melhor utilizada para garantir uma produção mais diversificada de alimentos dentro de um modelo de agroecologia e que proteja a biodiversidade. “A dificuldade é que a forma como os sistemas alimentares globais funcionam não incentiva os produtores a mudar, a não ser que eles próprios se conscientizem sobre os impactos do modelo atual de produção. Então, devemos trabalhar com consumidores para melhorar a compreensão deles sobre o que estão comprando e porquê”, afirma.

Ele cita um exemplo de mudança promovida pela conscientização de consumidores e pela adoção de tecnologias que viu durante visita a Chengdu, na China. Morrison descobriu que, a partir de problemas que apareceram em alguns alimentos, como leite em pó, surgiu um movimento de crescente utilização de aplicativos de entrega de comida que permitiam que o consumidor verificasse a origem dos alimentos. “Não apenas eram entregues em casa, mas eram entregues com um nível de rastreamento que os possibilitava saber qual era o produtor exato de origem. O que descobrimos é que não eram apenas as parcelas mais ricas da cidade que estavam aderindo, mas também famílias com crianças pequenas ou em que a mulher estava grávida ou lactante, que tinham uma preocupação particular sobre o tipo de alimento que ingeriam”, diz.

Morrison ainda fala de como a FAO tem observado o combate à fome no mundo. Confira a seguir a íntegra da entrevista.

Jamie Morrison conversou com a reportagem no Sul21 em setembro | Foto: Joana Berwanger/Sul21

Sul21 – Qual foi o tema central da sua apresentação em Porto Alegre?

Jamie Morrison: O objetivo do painel foi tentar explicar como os avanços nos sistemas alimentares afetariam a nossa habilidade de alcançar os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, dentro da Agenda 2030 das Nações Unidas. Frequentemente, quando pensamos em objetivos do desenvolvimento sustentável e sistemas alimentares, pensamos em objetivos de número 2, que é sobre eliminar a fome, aumentar os níveis de nutrição e produzir uma agricultura mais sustentável. Certamente, a partir de uma perspectiva da FAO, por exemplo, esse é um objetivo muito importante. Na última década, a ênfase foi mais em reduzir os níveis de subnutrição e de pessoas famintas. Houve um grande progresso nesse sentido, mas, ao longo dos últimos três anos, nós estamos vendo um aumento global nos níveis de pessoas desnutridas. A publicação State of Food Security [divulgada pela FAO em setembro] indica que há atualmente 821 milhões pessoas passando fome no mundo, o que é uma tendência preocupante.

Sul21 – Esse crescimento da fome é resultado de problemas econômicos ou de falhas na produção de alimentos?

JM: A razão principal foi a recessão econômica que atingiu o mundo na última década, mas também estamos vendo, e isso aparece na publicação, a relação de incidentes relacionados às mudanças climáticas, como secas, enchentes, ciclones e tornados. Isso contribuiu, em algumas partes do mundo, para o crescimento dos níveis de pessoas famintas, particularmente em países africanos, onde mudanças climáticas se combinam a conflitos armados. Mas, globalmente, a recessão econômica certamente teve um efeito. Na América Latina, por exemplo.

Sul21 – Os métodos tradicionais de agricultura têm impacto nas mudanças climáticas?

JM: Sim. Nem todo mundo concorda, mas acredito que é uma visão largamente compartilhada de que as ações dos humanos contribuíram para as mudanças climáticas. A agricultura é um componente disso, pela emissão de gases de efeito estufa, mas, também é um dos setores mais afetados pelas mudanças climáticas, dada a sua dependência de recursos naturais. Voltando ao tema da nutrição, eu mencionei que, por um lado, nós temos esses níveis crescentes de fome, mas penso que nossa abordagem precisa ser diferente agora. Não é apenas o caso de garantir que há comida suficiente no mundo e está nos lugares certos para alimentar a população global. Também estamos vendo, do outro lado da moeda, crescimentos muito preocupantes de pessoas com sobrepeso e obesidade e também de pessoas que sofrem com a falta de certos nutrientes e micronutrientes. Então, nós precisamos de uma abordagem com muito mais nuances sobre como desenvolvemos os nossos sistemas alimentares para não apenas produzirmos mais alimentos e fornecermos isso de maneira mais acessível e barata para pessoas que estão sofrendo pela falta de comida, mas também para oferecermos produtos mais saudáveis, interrompendo essa tendência de crescimento de sobrepeso e obesidade.

Sul21 –  Que mudanças nos métodos de produção deveriam ocorrer para alcançarmos essa abordagem mais equilibrada?

JM: Em termos de produção, já temos a tecnologia disponível para produzir alimento de maneira mais sustentável e de uma forma mais resiliente climaticamente. A dificuldade é como vamos incentivar produtores, sejam agricultores familiares ou a produção industrial em larga escala, a mudar. Como incentivar a adoção dessas novas tecnologias que respondem melhor às preocupações levantadas, garantir uma produção de alimentos mais diversificada, por exemplo, que sejam produzidos de maneira mais agroecológica e que haja mais biodiversidade. A dificuldade é que a forma como os sistemas alimentares globais funcionam não incentiva os produtores a mudar, a não ser que eles próprios se conscientizem sobre os impactos do modelo atual de produção. Então, devemos trabalhar com consumidores para melhorar a compreensão deles sobre o que estão comprando e porquê. Se aumentarmos a conscientização, os consumidores vão começar a ter comportamentos de compra diferentes, o que vai incentivar os agricultores a produzirem os tipos certos de alimentos, mais saudáveis. Mas também temos que trabalhar com o setor privado ao longo da cadeia de fornecimento de alimentos, seja de pequena escala, empreendimentos de médio porte, empreendimentos domésticos de processamento de alimentos, ou as multinacionais que operam em grande escala, que fornecem comida de forma mais processada ou ultra processada, que tendem a ter menos nutrientes. Mas isso é o que os consumidores demandam. Podemos conseguir a atenção deles sobre o tema, seja por meio de educação ou pela imposição de impostos para aumentar o preço desses produtos [ultra processados].

Sul21 – Qual forma de pressão terá mais impacto nessas transformações: de governos ou da opinião pública?

JM: Penso que deve haver uma combinação de ambas. Há alguns setores da sociedade em que os consumidores conseguem expressar a vontade de mudar para um novo padrão de dieta. Eles têm a oportunidade e o dinheiro para comprar os alimentos que hoje são mais caros, e podem expressar essa vontade de uma dieta diferente ao passo que tomam conhecimento das implicações para a própria saúde. Contudo, em muitas partes do mundo, as pessoas simplesmente não têm essa oportunidade, não têm a capacidade econômica de expressar a necessidade de um tipo diferente de dieta. Então, nós temos que trabalhar com governos também para criar um ambiente em que alimentos mais saudáveis sejam fornecidos de modo acessível para pessoas pobres, estejam elas em áreas rurais ou urbanas. Particularmente, aqueles que moram em favelas urbanas tendem a ter dificuldade de acesso a alimentos mais saudáveis, se comparado a pessoas em situação semelhante que moram em áreas rurais.

Morrison destaca que é preciso criar meios para melhorar a entrega de alimentos aos pobres urbanos | Foto: Joana Berwanger/Sul21

Sul21 – Quais são as barreiras econômicas para o enfrentamento da fome?

JM: É interessante olhar para o pobre urbano e o pobre rural separadamente. O pobre rural, frequentemente, sofre de falta de oportunidades econômicas viáveis. Muitos entre os trabalhadores mais pobres não têm acesso a ativos, o que significa que não podem investir em seus meios de subsistência. Se trabalham em áreas rurais, tende a ser na agricultura, que geralmente paga mal. É um trabalho físico duro. Se pudéssemos desenvolver as áreas rurais, usando a agricultura como fonte de crescimento, oferecendo oportunidades melhores a agricultores familiares para conectá-los aos mercados, os recursos gerados reverteriam para essas economias, ajudando os mais pobres entre os pobres a terem mais oportunidades, aumentando salários dentro do setor rural com a adição de valor para oportunidades conectadas com a agricultura. No setor urbano, há diferentes limitações. Não é apenas a respeito de ter a renda do trabalho em mãos, porque, em geral, há mais trabalho nas cidades, mas também sobre o local em que as pessoas moram. Em algumas favelas é difícil cozinhar, é difícil armazenar comida, então mesmo que as pessoas tenham acesso a frutas e vegetais, é difícil mantê-los frescos. Com frequência, descobrimos que os locais onde pessoas pobres trabalham são áreas das cidades que não têm comércios, então acabam tendo que comprar comida de vendedores de rua durante o dia, que pode ser um tipo de comida com menos nutrientes. Então, há uma série de diferentes constrangimentos que as pessoas pobres têm.

Sul21 – Também há limitações quando falamos do fornecimento de alimentos de qualidade, da produção agroecológica, com as grandes corporações e produtores dominando o mercado da alimentação. Quais são as principais barreiras logísticas e como podem ser superadas?

JM: Especialmente quando falamos de alimentos mais nutritivos, eles tendem a ser mais perecíveis. Então, a logística de transportar alimento de áreas rurais para áreas urbanas pode ser problemática, especialmente quando há falta de armazenamento, há uma significante perda de alimentos ao longo da cadeia. Também é mais fácil para o varejo, particularmente o de larga escala, que atua em grandes conurbações, faz mais sentido economicamente e há um abastecimento mais confiável de alimentos por meio da importação do mercado global. Isso impacta não apenas nas oportunidades para os produtores locais, mas também afeta a composição da comida que acaba nas prateleiras dos supermercados. E, de novo, porque está sendo importado, a tendência é que esse alimento seja aquele com a maior validade, que tem mais conservantes, que tem níveis mais altos de açúcar e sal. Então, a logística é um grande problema. Acredito que começar a resolver alguns problemas logísticos que limitam o transporte de alimentos de áreas rurais para cidades é uma questão chave.

Sul21 – O mundo passou por uma grande urbanização ao longo do último século. No Brasil, o percentual de pessoas que moravam em cidades saltou de 31%, em 1940, para 84%, em 2010. As cidades não ficaram muito grandes para seus problemas? Não haveria uma necessidade de se incentivar a ocupação de pequenas e médias cidades próximas a áreas rurais? 

JM: Eu concordo completamente com o argumento sobre pequenas e médias cidades. Isso é crítico porque, frequentemente, quando falamos de urbanização, tratamos das mega cidades, como São Paulo, Rio de Janeiro e outras grandes cidades ao redor do mundo. O desafio de entregar alimentos para populações urbanas nessa situação é significante. Mas é diferente quando se trata de cidades menores, que tendem a ser, pela natureza de sua localização, muito mais integradas com os territórios rurais que as cercam. Então, penso que há oportunidades para desenvolver as cidades dentro dessas regiões, de cidades pequenas e médias e seus arredores. Primeiro, para fornecer oportunidades econômicas para manter as pessoas na região ou trazê-las de volta, porque poderiam ter um estilo de vida mais agradável nessa situação. Mas também porque oferece um mercado mais fácil para produtores locais de um país. É mais fácil abastecer cidades pequenas e médias. A escala da economia pode ser menor, é mais fácil para agricultores familiares acessarem esses mercados do que nas mega cidades, onde a logística, como dissemos, é problemática.

Sul21 – Quais são as principais mudanças que a tecnologia fará num futuro de curto ou médio prazo nos sistemas de alimentação? Quais são as mudanças que já estão ocorrendo que ainda não chegaram ao Brasil ou que, ao menos, não foram implementadas em larga escala e veremos acontecer nos próximos anos?

JM: Há uma variedade de tecnologias. Do nível da produção às cadeias do varejo. A nível de produção, estamos vendo avanços significativos em automação de certas atividades que anteriormente eram realizadas pelo homem. Elas tendem a ser mais associadas às ‘belt commodities’ – como cereais -, e não muito a frutas e vegetais,  em que é mais difícil automatizar as atividades de semeadura e colheita. Mas penso que algumas das inovações mais interessantes estão ocorrendo ao longo das cadeias de valor. Por exemplo, em termos de segurança alimentar, que é uma preocupação significativa para muitos consumidores agora. O que vemos, ao passo que o sistema alimentar se torna mais globalizado, é o crescimento de problemas relacionados à segurança alimentar. Uma das inovações, a da tecnologia de blockchain, oferece um jeito de rastrear o alimento desde a produção até o varejo, mantendo a certeza de que, a cada passo da cadeia, os requisitos de segurança são preenchidos.

Morrison destaca que tecnologias como o blockchain podem ajudar os consumidores na hora de comprar alimentos | Foto: Joana Berwanger/Sul21

Su21 – Como poderia ser explicado o uso de blockchain em sistemas agrícolas?

JM: Basicamente, oferece o mecanismo para registrar transações. Então, se você tem uma transação entre duas pessoas, você sabe automaticamente pela tecnologia todas as transações anteriores relacionadas. Oferece uma forma de rastreamento e de garantia de que a pessoa mais distante na cadeia preencheu os requisitos necessários. A tecnologia provê todo o histórico de informações. Esse é apenas um exemplo, não sou um especialista em blockchain, mas acompanho o trabalho que vem sendo realizado na China por algumas das maiores empresas de entrega de comida baseadas na internet. Lá isso é muito importante agora.

Sul21 – Quais são os melhores exemplos que o senhor está vendo em termos de diferentes métodos de produção, de políticas, de práticas para combater a fome? Poderia nos dar algum exemplo?

JM: Há diferentes exemplos de diferentes aspectos. Um exemplo interessante que se relaciona com a segurança alimentar eu conheci há alguns anos na cidade de Chengdu, na China. Lá houve uma grande mudança na direção da entrega de comida. Um grande número de empresas baseadas em aplicativos surgiu, o que permitiu que os consumidores pedissem o que desejavam em termos de produtos agrícolas. Não apenas eram entregues em casa, mas eram entregues com um nível de rastreamento que os possibilitava saber qual era o produtor exato de origem. O que descobrimos é que não eram apenas as parcelas mais ricas da cidade que estavam aderindo, mas também famílias com crianças pequenas ou em que a mulher estava grávida ou lactante, que tinham uma preocupação particular sobre o tipo de alimento que ingeriam. Na China, havia ocorrido alguns problemas relacionados ao leite em pó e a outros produtos, então houve um aumento da conscientização no país e se criou a oportunidade para esse tipo de empresa. Isso transformou o sistema alimentar em termos de como a comida é entregue e como as pessoas se relacionam com os alimentos. Houve um movimento em particular pró produção orgânica que também permitia que as pessoas visitassem propriedades agrícolas nos finais de semana para ver como eram os métodos de produção, como era a terra de onde vinham seus alimentos. A um nível educacional, é muito importante, particularmente para as crianças, ver de onde a comida vem. Então, é um exemplo muito positivo que surgiu como resposta a um problema.

Sul21 – E no caso do combate à fome?

JM: O exemplo que nós usamos é o Brasil, onde o nosso diretor-geral, José Graziano da Silva, como ministro teve um papel importante no programa Fome Zero. Então, há bons exemplos ao redor do mundo que combinam mudanças de políticas e legislação junto com a extensão aos produtores, a conexão de agricultores com o mercado por meio da compra de alimentos para merendas ou outros mecanismos de aquisições públicas, que oferecem alguma forma de mercado garantido para agricultores familiares. O Brasil e outras partes do mundo mostraram que isso é possível. Infelizmente, há ainda bolsões que são vulneráveis a choques econômicos e climáticos. É aí que nós precisamos trabalhar a resiliência às mudanças globais ou a outros tipos de choque.

Sul21 – No último século, nós tivemos a Revolução Verde, que teve um grande impacto no crescimento econômico do mundo. É possível ocorrer uma nova revolução agrícola para um modelo mais sustentável, mas que também traga crescimento econômico? É possível combinar sustentabilidade e crescimento econômico nessa nova revolução?

JM: Eu acho que deve acontecer, chamemos isso de revolução ou transformação. Precisamos ver uma transformação significativa no sistema alimentar. Por que, se você olhar para a forma como esse sistema funciona no momento, há muitos resultados negativos, seja em termos de saúde para as pessoas – nós mencionamos desnutrição, sobrepeso e obesidade -, seja em termos de falta de inclusão e de oportunidades econômicas para os pobres, ou seja na maneira como utilizamos os recursos naturais e o meio ambiente. As coisas não podem continuar assim. Mesmo que nós não tenhamos nenhum crescimento maior a nível populacional, a forma como o sistema alimentar está entregando a comida para a população atual não está funcionando, então precisamos ter uma mudança radical para que os sistemas evoluam para produzir resultados mais positivos. É um desafio, porque alguns desses resultados que nós desejamos alcançar não são necessariamente complementares, mas conflitantes. Aumentar as oportunidades econômicas pode significar aumentar a eficiência, mas, ao mesmo tempo, pode resultar de forma negativa no uso de recursos naturais ou contra dietas mais saudáveis. Mas é preciso criarmos um sistema que possa entregar uma combinação de resultados mais positivos, mais sustentáveis, no futuro.


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