Entrevistas|z_Areazero
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27 de agosto de 2018
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11:03

‘Cedo ou tarde o aborto será aprovado na Argentina, todo mundo entendeu que não é um problema só das mulheres’

Por
Sul 21
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Assessor técnico do Congresso argentino há 29 anos, Hernãn Neyra esteve em Porto Alegre na semana passada | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Débora Fogliatto

Nos últimos meses, a Argentina se viu tomada pela “onda verde” que levou milhões às ruas das principais cidades movidas pela vontade de lutar pelos direitos das mulheres. A mobilização, que começou em 2015 com a criação da campanha Ni Una a Menos (Nenhuma a Menos), neste ano passou a defender a legalização do aborto no país. Com a escalada da demanda, em março, o presidente Mauricio Macri autorizou que o assunto fosse discutido no Congresso, onde foi aprovado na Câmara de Deputados e acabou rejeitado no Senado. Mesmo assim, as longas discussões feitas dentro e fora do âmbito parlamentar demonstram que a mudança é urgente, e que as argentinas não estão dispostas a desistir até que tenham o direito conquistado.

A aprovação na Câmara após um debate de mais de 20 horas no Plenário levou a comemorações no mundo inteiro, especialmente na América Latina, onde atualmente apenas Cuba e Uruguai permitem a interrupção voluntária da gravidez. No Brasil, atos foram marcados em diversas cidades para apoiar as hermanas e buscar reacender o debate no próprio país, buscando incentivar a discussão, especialmente no Supremo Tribunal Federal (STF). Aqui, a interrupção da gravidez é crime e pode ser punida com prisão para a mulher que a realizar, sendo permitida apenas em casos de risco de vida, estupro ou quando o feto é anencéfalo, este último permitido por decisão do STF em 2012.

Já na Argentina, são realizados entre 300 mil e 500 mil abortos clandestinos por ano. Segundo dados oficiais, complicações no procedimento são a principal causa de morte materna no país. As únicas situações em que a interrupção da gravidez é permitida é em casos de estupro ou quando há risco de vida para a mãe. O texto debatido propunha a legalização do aborto até a 14ª semana de gestação, período durante o qual seria possível realizar o procedimento em hospitais da rede pública do país. Por quase dois meses, o tema foi amplamente discutido na Câmara, com a presença de mais de 700 especialistas de diversas áreas que apresentaram suas visões sobre a questão, até se chegar no dia histórico da aprovação pela casa, por 129 votos a favor e 125 contra.

Na avaliação do professor e economista Hernán Neyra, assessor técnico da Câmara de Deputados argentina há quase 30 anos, grande parte dos deputados que votaram a favor realmente “ouviram as ruas”. Ele relata também a grande mobilização por parte de adolescentes e jovens adultos, que se informaram sobre o tema, participaram de atos, observando inclusive que alguns parlamentares foram influenciados diretamente por filhos e filhas dessa faixa etária. “Muitos deputados disseram ‘tenho uma filha de 15 anos e ela me disse para votar a favor’, então muito se falou nessa noite da ‘revolução das filhas’”, narra ele, que acompanhou de perto a tramitação do projeto na Câmara.

Neyra relatou que durante o debate dos deputados havia mais de um milhão de pessoas na porta da Câmara | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Já no Senado, a derrota era esperada, segundo Hernán, pois os senadores não são tão abertos às demandas do povo em geral. O resultado, porém, é considerado por ele um mero contratempo diante da força da mobilização popular. “Acredito que o interessante é que, no mesmo momento em que saíram os resultados da votação, todos sabíamos que o tema voltaria a ser tratado. Se não for agora, vai ser ano que vem ou no outro. Sem dúvidas, o tema se colocou na agenda política e se criou um coletivo como há tempos não se via, o tema está na agenda e não vai sair até que seja aprovado”, avalia.

Professor de Economia na Universidade de Buenos Aires e na Universidade Nacional de Moreno, Neyra rechaça quem utiliza argumentos econômicos para ser contra a legalização do aborto, apontando que os custos da interrupção da gravidez nas primeiras semanas é muito menor do que aquilo que é gasto pelos hospitais argentinos com mulheres que sofrem de infecções generalizadas devido a complicações em abortos clandestinos. “Por tudo que temos escutado, as mulheres que tomam essa decisão estão desesperadas, muitas vezes já são mães e não têm condições de criar mais filhos”, afirma.

Em visita a Porto Alegre na semana passada, ele ministrou a palestra Interrupción voluntária del embarazo en Argentina: discusiones y perspectivas, na Faculdade de Economia da UFRGS e conversou com o Sul21 sobre a trajetória da discussão no seu país e as perspectivas para o assunto daqui para a frente. Confira a entrevista completa:

Sul21 – Há quanto tempo se discute a questão do aborto na Argentina, como foi a trajetória até a chegada do projeto na Câmara de Deputados?

Hernán Neyra – Bem, o que foi distinto deste tema foi que não estava na agenda pública até março. Então apareceu muito rapidamente, em seis de março se apresentou um projeto, com a intenção de pedir um rápido tratamento para que começasse a ser debatido no dia oito de março, Dia da Mulher. Houve um chamativo para a imprensa e tudo mais, e não se tratou do assunto no dia oito, mas se conseguiu chamar a atenção das autoridades, da Câmara de Deputados, e nos próximos dias foi discutido, até que o próprio presidente do país disse que não tinha reparos a serem feitos, que o Congresso deveria tratar do assunto. A ex-presidenta [Cristina Kirchner], nos oito anos de mandato, havia dito que no seu mandato não seria discutido o aborto, então essa mudança de clima permitiu a abertura da discussão.

Sul21– Como foi a discussão do tema dentro da Câmara?

Hernán Neyra – Na Câmara se trabalhou em quatro comissões conjuntas: Comissão de Legislação Geral, de Legislação Penal, da Família, Mulher, Criança e Adolescente, e de Saúde Pública. E as quatro comissões se reuniram por dois meses, ouviram mais de 700 expositores, médicos, advogados, filósofos, homens, mulheres, pessoas do interior e do exterior, foi um tema que mobilizou muita gente e todo mundo foi respeitoso, foi notável a tolerância e a amplitude com que o tema foi tratado.

E em junho se tratou no Plenário, na “noite eterna” de 15 de junho em que quase todos os deputados se manifestaram, porque todos queriam falar sobre o tema, a favor e contra, e isso foi interessante até porque muita gente nem conhece a voz de seu deputado, debates acabam sendo técnicos, chatos, abstratos. E esse era um assunto muito concreto, que tocava muita gente diretamente. Então foi muito mobilizante, e o que foi notável, que não acontecia há muitos anos, foi que durante o debate dos deputados havia mais de um milhão de pessoas na porta [do Plenário]. Em uma cidade de 12 milhões, é muita gente. Isso mostrou que o tema valia a pena ser tratado, independente de como terminou, que havia se despertado essa necessidade.

Ato pela legalização do aborto na cidade argentina de Santa Fe, em julho de 2018 | Lara Va/ WikiCommons

Sul21 – Nesse contexto, a que o senhor atribui a decisão do Senado?

Hernán Neyra – Quando vai para o Senado, também curiosamente se decide dar um tratamento profundo, com mais de cem expositores, a maioria deles diferentes dos que foram na Câmara, também tratando da questão do direito, questões médicas, e também de forma muito respeitosa. E, no Senado, os números estavam mais definidos desde antes. Em termos gerais, todas as Câmaras de Deputados do mundo são mais abertas às expressões populares, é a “Casa do Povo”, enquanto os senadores tendem a ser mais fechados, reflexivos, conservadores, e lá não foi diferente. Então uma semana antes já se sabia que os resultados seriam 38 [contra] a 31 [a favor]. Mas de toda forma, acredito que o interessante é que no mesmo momento em que saíram os resultados da votação, todos sabíamos que o tema voltaria a ser tratado. Se não for agora, vai ser ano que vem ou no outro. Sem dúvidas, o tema se colocou na agenda política e se criou um coletivo como há tempos não se via, o tema está na agenda e não vai sair até que seja aprovado.

Sul21 – Quando se pode voltar a discutir isso, em termos legais?

Hernán Neyra – A legislação argentina não permite que o mesmo tema seja tratado duas vezes no mesmo ano, então um tema pode ser tratado apenas no ano seguinte. Então é questão de esperar um ano, não há problema, é um problema técnico, houve um impeditivo, mas se voltará a discutir com a mesma amplitude, tolerância, tranquilidade, porque se ouvem as ruas.

Sul21 – A que o senhor atribui o fato dessa discussão ter tomado proporções tão grandes no país nesse momento?

Hernán Neyra –Isso não começou agora. Em 2015, o primeiro tema de agenda puramente feminino como problema das mulheres foi dos feminicídios, e aí se criou o coletivo Nenhuma a Menos, e isso colocou na agenda todos os temas das mulheres, que sempre estiveram escondidos. Então não é que aparece agora, é que começa a haver um coletivo de mulheres que impulsiona os temas. E isso é novo porque não estava na agenda pública, mas aparece rapidamente porque esse mesmo coletivo começa a impulsionar, pelas redes, jornais, veículos de comunicação.

“Eu tenho um filho de 13 anos e ele quis ir a uma marcha, nunca havia ido a um protesto antes. E eu me impressionei porque não era um tema dele” | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Sul21 – É possível perceber se a maioria da população apoia a legalização do aborto?

Hernán Neyra – Sem dúvidas. Eu me surpreendo… Eu tenho um filho de 13 anos, está entrando no Ensino Médio. E ele quis ir a uma marcha, nunca havia ido a um protesto antes. E eu me impressionei porque não era um tema dele, o direito sendo discutido não era dele. Isso é o que me parece que há de distinto, pessoas que estão lutando não só pelos seus direitos, mas sim porque reconhecem que há um problema de agenda do feminino, que era tabu. E o importante é que não são só as mulheres, há claramente um tema de agenda política, impulsionado como um problema político, e não feminino, setorial. Acredito que sem dúvidas cedo ou tarde vão aprova-lo, todo mundo entendeu que não é um problema só das mulheres.

Sul21 – Pode-se dizer que o governo Macri apoia a legalização? Por que autorizou que o tema fosse para o Congresso?

Hernán Neyra – O apoio à legalização é discutível. Não houve nenhum partido – tirando um que só tem três deputados – em que tenha havido unanimidade dentre os deputados. E aí é mais difícil dizer se o governo ou o partido governante apoiou. O presidente habilitou o tema, porém a vice-presidente, que é a presidente do Senado, festejou que não foi aprovado. Então o que acontece é que é difícil dizer que o governo… Veja, a maioria dos senadores do partido votou contra a aprovação do projeto. Então é discutível que o governo tenha impulsionado a discussão, mas sim o autorizou. Os motivos por tê-lo autorizado pode ser por questões políticas, eleitorais, mas eu desconheço, seria apenas uma formulação de hipóteses por minha parte.

Sul21 – Na Câmara, o senhor acredita que a aprovação se deu exatamente pelos deputados terem ouvido a população, ou eles realmente são menos conservadores?

Hernán Neyra – Os deputados escutaram as pessoas das ruas, isso se vê muito claramente nos discursos. Eu trabalho na Câmara há 29 anos, muito poucas vezes vi algo semelhante. E não apenas eu, saíram muitos deputados nas ruas para ver o que acontecia, porque não acreditavam em tamanha mobilização espontânea. Ninguém imaginava que ia chegar cada vez mais gente no dia da votação, foi incrível. Quando saíram nas ruas e viram isso efetivamente, muitos entenderam que era mesmo um reclame popular. Não havia postura política definida de nenhum partido, até porque o tema nunca havia entrado na agenda então nem havia sido tratado na campanha de ninguém. Então houve liberdade de voto, todos os partidos deixaram seus representantes fazer o que julgassem melhor, não havia uma forma de dizer “nosso acordo era tal”.

“A mescla entre escutar as pessoas nas ruas, escutar os filhos em casa e ter liberdade de ação foi o que gerou o resultado positivo”. Foto: Guilherme Santos/Sul21

Dentre as falas dos deputados no dia da votação, muitos discursos foram técnicos, filosóficos, e muitos vieram de casa. Ou seja, muitos deputados disseram “tenho uma filhas e 15 anos e ela me disse para votar a favor”, então muito se falou nessa noite da “revolução das filhas”. Porque foi de fato, em muitos casos os deputados explicaram que votaram por suas filhas. E isso é algo também interessante, que se fale de um coletivo que não realmente existe, os “filhos de deputados”, mas essas meninas e meninos entenderam claramente isso como uma questão de direito. Isso que é tão distinto, a mescla entre escutar as pessoas nas ruas, os filhos em casa e ter liberdade de ação foi o que gerou o resultado positivo. Claro que lembrando sempre que foi muito parelho, até porque isso sempre foi tabu. Nunca ninguém falou, não se escutava ninguém dizendo que havia abortado ou que era contra o aborto. Um deputado contou que tinha um filho com síndrome de down e para ele a ideia de permitir o aborto era permitir que alguém ‘matasse’ alguém como seu filho. Há uma infinidade de argumentos e era a primeira vez que se escutaram todos juntos. Isso que foi assombroso desse debate, todos sentiam isso como algo pessoal.

Sul21 – Aqui no Brasil, há muitos políticos religiosos, que se oporiam à legalização do aborto caso houvesse uma tentativa de tratar do tema no Congresso. Aconteceu algo do tipo na Argentina ou isso não é uma questão?

Hernán Neyra – Nos debates se via quem era mais religioso, mas na Argentina não se sai dizendo “sou religioso” ou “não sou religioso”. Mas de toda maneira, nas ruas havia duas cores que identificavam o favor e o contra, o verde era a favor e o azul era contra, que era capitaneado pela Igreja Católica e Evangélica, essencialmente. Foi uma questão, em muitos casos, muito religiosa. Mas o centro da discussão não foi a religião, embora claro que a formação religiosa, como qualquer formação, te dá uma maneira de ver o mundo. Então se há um legislador cuja forma de ver o mundo se baseia em religião, ele o vê assim, é simplesmente como vemos o mundo. Acredito que também por isso foi muito respeitoso, ninguém usou o tema religioso como um motivo na votação. O debate foi feito em torno da questão específica do aborto, do sim ou não, com a postura dos que estavam a favor do aborto não porque queriam que mulheres abortassem. Para os casos de estupro ou perigo para a saúde da mulher, já é permitido desde 1920, há quase cem anos. Então os religiosos acabaram querendo condicionar em algum sentido a discussão para “estamos discutindo aborto”, quando na verdade não é essa a discussão, é de legislação, de direitos.

Sul21 – O senhor é economista. É possível dizer que a discussão do aborto também tem um viés econômico?

Hernán Neyra – Sim. Parte do meu trabalho foi estudar outros debates sobre o assunto, estudei em profundidade o debate no México, onde se discutiu o aborto em 2009. Tiveram discussões parecidas e era interessante encontrar os mesmos argumentos em diversos setores. Um deles, quando não se tem mais argumentos contrários, é dizer ‘com os meus impostos, não’. E soa muito bem, mas a questão é que não tem como haver um direcionamento do imposto. Mas porque o Estado proíbe [o aborto], é evidente que não se pode chegar a uma estatística sobre isso, não tem como saber os números. Mas com o aborto clandestino, o que acontece é que as mulheres chegam ao hospital sangrando, ou com uma infecção generalizada, sempre dizendo que foi um acidente. Há entre 300 mil e 500 mil abortos por ano na Argentina, evidentemente não há esse tipo de estatística oficial, mas olhando clínica por clínica, cidade por cidade, começa-se a se tomar consciência de que há um problema de saúde pública, quando começa a se gerar algum tipo de registro informal.

E quando se calcula qual pode ser o custo dessa prática clandestina, pensando na quantidade de mulheres que chega ao hospital com uma infecção generalizada, que é algo caríssimo de se tratar, que exige dias de internação, e comparar com o custo de fazer um aborto cedo, antes das nove semanas, o custo é infinitamente inferior, porque não tem internação. Então o mito do custo é exatamente isso, apenas um mito. É preciso haver a consciência de que há formas econômicas, aliada à discussão de porque a mulher chega a isso, de que ninguém quer, ninguém recomenda, que é uma situação traumática. Por tudo que temos escutado, as mulheres que tomam essa decisão estão desesperadas, muitas vezes já são mães e não têm condições de criar mais filhos. Semana passada mesmo morreu uma mulher em Buenos Aires devido a um aborto clandestino que era mãe de duas crianças. Evidentemente não é uma decisão que as pessoas tomem com leviandade, é um problema muito sério e o econômico não deveria ser desculpa para a proibição.


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