Entrevistas|z_Areazero
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9 de julho de 2018
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10:30

‘Quando a gente fala de democracia, a periferia nunca teve. Não conheço direitos humanos, ouvi falar’

Por
Luís Gomes
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Rapper Eduardo Taddeo fala sobre a “guerra não declarada” que vigora nas periferias brasileiras | Foto: Luís Eduardo Gomes/Sul21

Luís Eduardo Gomes 

“Aí bacana, sabe por que eu não tenho bens? Porque minha família nunca escravizou ninguém. Se eu fosse descendente de um colonizador arrombado, tinha marca de cerveja e hipermercado”, diz a letra que você não vai escutar nas rádios comerciais ou na Globo. É a letra da música Substância Venenosa do rapper Eduardo Taddeo, cujo refrão diz: “Minha letra carregada com substância venenosa, é pelo fim da hecatombe diária praticada por DEIC e ROTA. Minha letra carregada com substância venenosa, é pelo fim da prisão em massa, da indução à venda de droga”.

Entre 1989 e 2013, Eduardo foi um dos líderes, compositor e vocalista, do grupo Facção Central, caracterizado por letras com alto teor de protesto e político. Desde a saída do grupo, ele segue com a mesma pegada na carreira solo. Nos dias 29 e 30 de junho, esteve no Rio Grande do Sul para participar, em Porto Alegre e Charqueadas, dos eventos “Guerra não declarada”, organizado pelas entidades Embolamento Cultural e Mutirão Cultural em parceria com a Rede Emancipa, vinculada ao PSOL. Conversamos com ele no hotel em que estava hospedado durante a visita.

Eduardo não tem meias palavras. Fala abertamente de que foi o rap que tirou do caminho da violência e das drogas que já trilhava aos 11 anos. Com uma postura de esquerda, da busca pela igualdade, ele fala de uma posição da periferia e para a periferia, procurando se afastar de partidos políticos, sejam eles os porta-vozes da burguesia que critica em suas músicas ou não. “Quando a gente fala de democracia representativa, nós nunca tivemos. Quando a gente fala de redemocratização pós-ditadura, eu também não conheço. Não conheço direitos humanos, eu ouvi falar”, diz.

Eduardo acredita no poder de informação do rap, uma transformação que lhe levou a estudar e conhecer Marx, Malcolm X e Martin Luther King, mas ressalva que o grande desafio para a periferia hoje é a televisão, que faz com que o pobre acredite que o seu semelhante seja o inimigo. “O que nós precisamos compreender, é que a informação, a política, os direitos sociais, as liberdades individuais, no Brasil, é patrimônio, quem pode pagar tem, quem não pode vai ser silenciado pela polícia”, afirma.

Confira a seguir, a íntegra da entrevista.

Sul21 – Como tu vê essa guerra na periferia? Como tu definiria ela?

Eduardo Taddeo: Atuante. Para quem é da periferia, acontece o tempo todo. Extermina a juventude. É seletiva, extermina a classe mais pobre. Ao mesmo tempo, necessita da informação para a própria vítima compreender o que está acontecendo. O nosso trabalho é justamente fazer a denúncia, porque a manipulação é tão grande ao ponto da própria vítima não compreender que aquilo que acontece com ela não é normal, não é natural, é o estado terrorista atacando. O que ela chama de moradia não é moradia, o que ela chama de combate é a violência, segurança pública é um extermínio contra a própria etnia dela, contra a própria classe social.

Eu uso bastante São Paulo como exemplo, porque é onde a gente vive. Na periferia, muitas vezes aquilo que é dito na televisão tem muito mais credibilidade do que a situação fática, do que o fato em si. Se o âncora de determinado telejornal incitar você a acreditar que o seu inimigo é o próprio cara da periferia, você vai acreditar. Esse é um problema muito grande porque se hoje a gente for na periferia e perguntar quem é o inimigo padrão, quem é o inimigo que deve ser combatido, eles vão achar que é o menino negro da periferia, aquele que assalta, aquele que merecem que baixe a maioridade penal, aquele exige-se a prisão perpétua. Nosso trabalho é mostrar que essa guerra é atuante, que ataca a juventude pobre, que mata muito mais do que qualquer conflito armado ao redor do mundo.

Sul21 – Tu disse em entrevista anterior que todo final de semana tu homenageia em teus shows os mortos de uma chacina diferente e, por outro lado, quando ocorre isso na periferia a população “bate nas costas do policial e agradece”. O que explica isso?

Eduardo: O nosso problema é que você tem como veículo de comunicação de massa e mais ativo e intenso a televisão. As pessoas mais carentes só tem a televisão como fonte de informação, então você já tem uma informação direcionada, mal intencionada. É preciso vender o criminoso padrão, que aquele cara que mata com distintivo é a malha protetora da sociedade, que está trabalhando em prol da sociedade. É isso que você acaba tendo que mostrar, tentando ir contramão disso, reverter, porque é o que o povo vai acabar acreditando, porque ele não tem como se defender, não tem um contraditório. Normalmente, você não tem outra pessoa trazendo uma informação diferente daquela do meio televisivo, então ele acaba acreditando que é o inimigo dele.

Para Eduardo, o grande inimigo da periferia é a televisão e a desinformação | Foto: Luís Eduardo Gomes/Sul21

Sul21 – O que passa pela tua cabeça quando tu vê um menino de 14 anos morto pela polícia e a primeira reação de muita gente na internet é fazer uma montagem dele com uma arma para justificar?

Eduardo: Vamos colocar da seguinte forma, mesmo que em um dado momento ele tivesse segurado uma arma, quando a pessoa atira pelas costas, é uma execução. Então, nada justificaria. Mas, no Brasil, é isso. É o que eu falo, existe uma patrulha ideológica virtual que, quando ela não transforma a sua pauta, suas pautas, suas revoltas, em mimimi, vitimismo, quando fica algo muito flagrante como é o caso da vereadora Marielle Franco, no caso do menino com o uniforme da escola, eles tentam manchar a imagem, transformar em bandido, para legitimar. Falar: ‘Mereceu, era do crime’. Como se alguém desarmado que tomasse um tiro nas costas não fosse uma vítima de execução. É o discurso do bandido bom é bandido morto, da violência, e esse é um lado muito importante de falar, porque normalmente você não vê o cara da esquerda, o cara mais socialista, com o discurso do ódio. Ele não tem o discurso ‘vamos matar o inimigo, favelado bom é o que mata a polícia’. Você não vê esse tipo de coisa partindo da periferia, mas, ao mesmo tempo, você vê partindo do que foi mais informado, do que foi mais privilegiado, quem tem todos os recursos, todos os meios para pensar de outra maneira. Ele quer a polícia que mata, gosta da violência, acha correto estar dentro de um carro blindado.

Sul21 – Tu acha que é uma guerra que um lado só luta?

Eduardo: Sem dúvida nenhuma. Nós, quando pegamos armas, é para atirar em nós mesmos. A gente não tem nem noção de quem é o nosso inimigo. Acreditamos realmente que o que acontece com a gente é culpa nossa. Não tivemos tanta competência, não tivemos tanta vontade, poderia trabalhar mais. ‘Ah, eu saí da escola porque quis’. A gente não compreende que tem uma engrenagem e uma estrutura que quer te manter alienado, esbranquiçado, com o cérebro engessado. A gente não compreende isso. E também não consegue nem entender que não é uma luta de classes, é um ódio de classes. As provas estão aí. Não é por acaso que 72% das pessoas que moram nas favelas são negros. Não é por acaso que a mulher negra recebe 30% do salário de um branco na mesma função. Essas coisas não são por acaso. Você tem 51% da população brasileira sendo negra, mas no presídio é quase 70%. Dos 62 mil mortos, 71% é negro.

No apartheid sul-africano não mataram tantos negros. Na época das leis Jim Crow da segregação racial norte-americana não vitimaram tantos negros. E passa aqui batido dentro da ‘democracia racial’. ‘Ah, vivemos todos dentro do princípio da igualdade e dos direitos humanos’. E se fala dos direitos humanos para humanos direitos. Eu sempre pergunta: ‘Pô, mas a criança que tá lá na periferia, tomando tiro da polícia, que depois vão jogar para cima de alguém, que era normal, nem era traficante, que depois vão falar que era traficante, não era humano direito? Ele também não tinha direito nenhum. Eu não sou humano direito?’

É legal falar também, que parece que, quando se fala em direitos humanos, você quer que aquele que cometeu um crime seja absolvido. Não, você não quer a tortura. Quer que se mantenha o direito a vida, a dignidade humana, é isso. E parece que existe uma Secretaria de Direitos Humanos que atende a favela. Eu nunca vi ninguém lá. Da maneira que é colocado na mídia, parece que os defensores dos direitos humanos estão lá o tempo todo. A polícia chegou e eles estão lá. Eu nunca vi, mano. Eu só vejo a polícia matando, enquadrando, te desrespeitando, gente passando fome, eu nunca vi ninguém dos direitos humanos perguntando: ‘você quer uma cesta básica?’ Na mídia aparece de vez em quando e aí a mídia deturpa, distorce e venda a ideia: ‘Ó, quando morre um moleque no crime, aparece os direitos humanos’.

Eu nunca vi, sinceramente, e olha que já passei fome, já fui pro crime, já pedi esmola, enterrei minha mãe num caixão lacrado, meu primo morreu com 25 tiros do BOE. Ele roubou um carro, é verdade, só que o carro, eu vi, todo fechado, filmado, não dava nem pra ver quem tava dentro e um monte de tiros por trás. Execução. Não tinha ninguém dos direitos humanos. Então, é toda uma institucionalização da violência contra o pobre em todos os sentidos, intelectual, física, psíquica. E, pro bem do opressor, a própria vítima não se deu conta, porque ela precisa disso, outro favelado falando: ‘É nosso por direito’.

A universidade é nossa por direito, não a paga, que a gente se lasca para pagar, não, a pública. Quando a gente fala de cota, para mim a cota correta é 90% pra favelado e 10% pra playboyzada. Eu não entendo a lógica de você na periferia, que é quem paga mais imposto proporcionalmente, 30%, quase 40% da sua renda é para imposto, enquanto aquele que tem uma fortuna paga 20%, e aí eu não entendo você financiando o estudo daquele que vai te dar ordem. Daquele que vai aumentar o racismo, daquele vai perpetuar a exclusão, eu não vejo sentido. Essa é a guerra, a guerra não declarada, porque muito gente relaciona a guerra apenas com o ato de ferimento, não, ela atua em todos os sentidos.

Sul21 – Como tu vê o conservadorismo na periferia? É um produto da televisão, é produzido pelas igrejas, como tu vê isso?

Eduardo: São vários fatores, a comunicação é um deles, a igreja também é outro. É uma área muito propensa para o milagre que nunca vai acontecer. Você busca o milagre na Igreja e vai acabar acreditando. A gente está falando de gente pobre, que estudou pouco, uma parte é expulsa do sistema educacional no começo do estudo, a maioria no ensino fundamental. Então, quando você está falando de pessoas, na sua grande maioria semi-analfabetas e analfabetas funcionais que não conseguem de repente ler um estudo e interpretar, surge esse fenômeno de convencimento fácil. E nós aprendemos que a verdade vem da língua do inimigo, do opressor. A gente aprendeu a ouvir uma verdade de uma vertente só, não tem contraditório. Então, de repente vem uma boca fascista e diz: ‘ó, o que acontece é um combate à criminalidade, ao tráfico de drogas, as perdas humanas são necessárias, não existe racismo’. Quando você toca no assunto é vitimismo, é mimimi, etc.

Então, essa pessoa mais carente, menos politizada e informada, vai acabar acreditando. E aí o discurso da direita de ‘bandido bom é bandido morto’, onde ele vai se encaixar? Naquela pessoa que está assistindo ao telejornal e de repente vem o âncora falando que roubou o celular de pobre, roubou no ponto de ônibus, então vai criando uma revolta de nós contra nós mesmos. Se você foi vítima de assalto no ponto de ônibus no momento em que você ia trabalhar, não vai fazer uma análise macro do sistema, das questões sociais, da história, do porque aquele menino está na criminalidade. Você vai ter o reflexivo instintivo, ele me roubou e eu quero o mal dele. E aí de repente vem alguém dentro desse pensamento e fortalece essa ideia. ‘Ó, vota em mim porque bandido bom é bandido morto. Eu vou matar, essa ideia policialesca, de confronto, comigo vai ser pior, eu vou ampliar, comigo vai ser pior ainda. Direitos humanos para humanos direitos’. Esse tipo de conversa, e acaba se perpetuando, é até natural.

Eduardo diz que teve a opção de ter espaço na grande mídia, mas optou por não seguir esse caminho | Foto: Luís Eduardo Gomes/Sul21

Sul21 – O rap/hip hop é uma grande força de transmissão de informação hoje. Tuas letras são uma espécie de contraditório aos meios de comunicação. Ao mesmo tempo que a gente vê muita música comercial vinda da periferia, tu vê uma barreira comercial que impede a tua música de chegar nos meios de comunicação de massa?

Eduardo: Eeu não diria um rap deturpado porque, em primeiro lugar, liberdade de expressão, cada um escreve aquilo que acha adequado. Quando eu me interessei pelo rap, é porque ele justamente te oferecia a oportunidade de usar a tua linguagem, falar daquilo que você via, daquilo que você vivia. Até então não tinha na nossa música, pelo menos na nossa música de periferia. Então, ele me proporcionou isso, o poder de usar a nossa linguagem, ser um veículo de comunicação até de massa entre nós e colocar elementos que até então não eram abordados.

Falar sobre o Malcolm X, sobre Martin Luther King, Zumbi dos Palmares, falar de auto-estima, fazer um menino usar uma camiseta 100% negro dentro de uma sociedade racista, onde normalmente você tem vergonha dos seus traços afros. Então, o rap te oferecia tudo isso. No meu caso, a abrangência é muito grande, por mais que eu não esteja, por opção, dentro da mídia tradicional. Também tem outro lado, a partir do momento em que você aceita determinado convite, a credibilidade do seu rap, aquela força que você tinha para formar um novo pensamento e até mudar uma vida começa a se perder. A gente sabe que, quando a gente fala de ideologia e televisão, já tem um contrassenso, não tem concordância.

Quando você fala de criminalização da pobreza, se fosse colocar na Band agora, vai ter um telejornal criminalizando a pobreza. Se você falar de racismo, um dos maiores problemas do Brasil, você vai assistir a novela da Globo em Salvador e a maioria do elenco é branco, então ela é racista. A partir do momento que você está dentro de uma emissora como essa, você está fazendo parte. De qualquer forma, você está fortalecendo a ideologia dela. Ela está mostrando que ‘mesmo esse cara do rap que fala contra mim, quando eu convidei, ele está aqui’. Então, esse é o dilema, ir numa televisão e perder a credibilidade. Até muita gente me pergunta, ‘você fala com bastante gente, tem até um nível muito grande para se tornar um política’.

Eu falo: ‘pô, se eu fizesse uma candidatura independente, se eu pudesse me tornar candidato sem me filiar a nenhum partido com uma ideologia que eu discordo, era até viável’. Agora, você está dentro de uma engrenagem em que você vai receber um salário e não fazer mudança, é melhor seguir no nosso trabalho de formiguinha que a gente vai convencendo um aqui e ali. Como eu disse ontem na palestra [Eduardo participou de um evento em Charqueadas na sexta-feira, 29, e a entrevista foi realizada no sábado], eu vivo de depoimento. Eu vou lá numa Fundação Casa, que é o reformatório para menores de São Paulo, falo o que eu penso e, de repente, num show aparece um menino que me fala: ‘Ó, sai e tô trabalhando’. É disso que a gente vive, conquistando novos caminhos, salvando vidas. O pagamento acaba sendo esse.

Então, essa abrangência maior, essa visibilidade maior do veículo de comunicação, eu não sei se no meu caso traria o retorno que eu tenho hoje. Se a gente falar financeiramente, claro, estando exposto na mídia, você vai ligar para qualquer prefeitura, oferecer seu show e eles vão pagar, porque você é nome famoso. Agora, eu não sei se, na hora do discurso, da militância, de você apontar o dedo que o seu inimigo está na televisão, teu inimigo comanda a indústria, está na política, se ia ter muita credibilidade. Não que com isso eu esteja querendo dizer que o cara que vai na televisão esteja errado. É liberdade de expressão, não sou dono da verdade.

Sul21 – O grande do poder da sociedade de consumo é que ela se apropria de tudo. Tem uma estética que é contraditória e daqui a pouco já está no comercial. Como fazer o rap nesse cenário em que daqui a pouco a estética está na TV, mas não a mensagem?

Eduardo: É natural, tentar tirar a legitimidade de quem tem o discurso que vai contra suas intenções. Você acaba não atendendo o interesse do inimigo. Meu, eu acho que a maior preocupação quando eu estou escrevendo uma música ou um livro é tentar transmitir a verdade. É o que eu sempre falo, ‘irmão, dentro dos erros e acertos tem aqui a minha visão, meu coração e a minha ideologia’. É manter essa ideologia atuante, seja na música, seja na palestra, na literatura, e não pensar no mercado. O que a gente faz não está dentro do mercado. Até meu livro, quando eu escrevi, tem um escritor que é o meu parceiro, o Ferréz, escritor do Capão Pecado, como ele é de editora, eu falei: ‘Ó, Ferréz, como eu faço um livro para o mercado editorial?’ Ele falou: ‘A capa é assim, a quantidade de paginas…’, ele foi explicando. Eu falei, ‘beleza, agora eu vou na contramão de tudo isso para as pessoas da periferia entenderem a autenticidade e a intenção’.

E, outra coisa, é o que eu sempre falo nas músicas e nas palestras. Se você precisa de audiência, quem vai te dar? O pessoal da periferia. Se você é industrial, comerciante, precisa vender um produto, quem vai comprar? O pessoal da periferia. O voto, nós que damos também. Quando a gente fala de riqueza, nós representamos 160 milhões, ninguém gera mais riqueza e consome mais produtos do que as pessoas da periferia. Então, tudo gira em torno de nós. É que o eu sempre tento dizer, nós temos que estar na posição de controle da sociedade para chegar nessa sociedade justa e igualitária. Para resumir é isso, você procurar manter a ideologia, escrever o que está na coração e não se preocupa com o mercado, porque há muito tempo está fora do mercado. Quando você se negou a ir em determinados programas, você já estava fora. Quando você fala não para uma Record, para uma Globo.

Sul21 – E surgiram convites?

Eduardo: Já, no mesmo dia que era para eu estar no Jô, se não me engano eu estava num centro comunitário em São Mateus, um bairro periférico da zona leste de São Paulo, e aí eu falei para os caras: ‘me convidaram para estar no Jô para falar de periferia e para favelado’. E eu não sei se eu sou ignorante, sei lá, mas eu acho que para falar com favelado eu tenho que estar na favela, não é na Rede Globo. Então, eu disse não. Nem penso muito nisso. A partir do momento que eu não vou, outras pessoas não vão, vão surgir as pessoas que vão. Eles acabam se contentando. É o que eu falei, nós temos a credibilidade do discurso, que, da nossa forma, fez a diferença, salvou muita gente. Eu fui um que foi salvo. Já falei para o Thaíde várias vezes: ‘meu, imagina se eu não escuto aquela ‘o meu nome é Thaíde’, entendeu, já tinha ido para o crime há muito tempo’. Então, é isso, é manter a legitimidade, aquilo que você pensa, porque é raro a gente poder manter o que pensa e colocar em prática.

Sul21 – Tu acredita na transformação da vida da periferia pela política?

Eduardo: É necessário se politizar porque a gente vive e respira a política. Eu sempre deixo claro que, quando a polícia invade uma casa, quando atira, quando mata, ela está fazendo política, a política do extermínio e do silenciamento. Existe uma classe de privilegiados e para continuar assim ela tem que usar a violência como uma forma de silenciamento, e é o que ela faz. Então, se a gente não conhecer política, nós vamos ser dominados por quem conhece, por quem pratica. A política está em todos os lugares, quando a gente fala de sobrevivência, é política, quando a gente fala de guerra, é política. Só que a gente tem que observar a política, absorver o que é correto e entender que, até então no Brasil, o que aconteceu foi uma deturpação da política. Quando a gente fala de democracia representativa, nós nunca tivemos. Quando a gente fala de redemocratização pós-ditadura, eu também não conheço. Não conheço direitos humanos, eu ouvi falar.

Eu estudo a Constituição, é maravilhosa. Eu faço Direito. Vejo os livros, a teoria é bonita, é muito bem escrita, o legislador escreve bem, só que a prática não existe para nós. Então, o que nós precisamos compreender, é que a informação, a política, os direitos sociais, as liberdades individuais, no Brasil, é patrimônio, quem pode pagar tem, quem não pode vai ser silenciado pela polícia. Então, se você não participar politicamente, ativamente, não se organizar, não montar as suas frentes, não ir para o fronte, vai ser vítima o tempo todo. Nós não vamos passar de número e estatística. Então, todo o trabalho é para fazer esse número e estatística se manifestar, falar, mostrar que tem vida. Quando a gente fala do Atlas da Violência, 62 mil mortos, não são apenas mortos, tem pessoas ali, tem vidas, parentes que perderam, tem pessoas que vão morrer e nunca vão ter a Justiça, casos que não serão apurados. É disso tudo que nós estamos falando, tudo passa pela política.

Sul21 – Como a periferia pode ocupar a política?

Eduardo: Primeiro, se informando, se interessando, compreendendo quem é o inimigo e tendo a vontade de participar, ouvindo aqueles que trazem a verdade. O primeiro ponto é você olhar para a televisão como um mal. Não que eu esteja colocando aqui que a gente precisa não assistir a televisão, você pode curtir o seu time, se divertir, o que não pode é acreditar que é só isso. Aí nós estamos dentro do caminho do pão e circo. ‘Ó, se diverte e passa fome’. Então, o caminho é buscar a informação. Eu mesmo estava perdido, até que o rap surgiu na minha vida de uma forma inusitada, através de um cunhado meu, que roubou um gravador. No gravador tinha uma fita K-7, onde tinha a música do Thaíde, que era a “Corpo fechado’. Aí eu me torno rapper.

Sul21 – Tu tinha quantos anos?

Eduardo: Eu devia ter 11, 12 anos, e aí eu começo da minha forma, sem nenhum direcionamento, sem nenhuma orientação, entendendo que era necessário estar dentro de um mecanismo de transformação, mas buscando informação. Eu queria aprender, queria ser obsessivo por informação, ler Marx, Marighella, Lamarca, Martin Luther King, enfim, buscar essas referências que, normalmente, não vai ter na escola. Eu cheguei a deixar a escola com 12 anos e a minha mãe achou até bom, porque assim eu iria trabalhar.

Sul21 – O que seria da tua vida sem o rap?

Eduardo: Não é nem fazendo uma fala dramática, mas bem realista, porque sinceramente o que eu tinha era isso, um menino que acabou de sair da escola, que a mãe acreditava que ia trabalhar, mas não ia trabalhar, eu só não queria mais ir na escola porque não tinha nada convidativo para mim e eu também não enxergava o valor da educação. Os meus valores eram estar na rua. Eu via o cara que roubava, que tinhas as coisas e queria ser igual. Me apresentaram uma sociedade de consumo e falaram ‘é legal consumir’, e eu era mais um sem nenhum tipo de informação para me defender. Eu não tinha outra orientação. Todo mundo à minha volta roubava, pensando no crime, não tinha ninguém ali que venceu através do diploma, nunca tinha tido essa referência.

Então, quando o rap entrou na minha vida, mudou tudo isso. Se eu fizer uma espécie de projeção, prognóstico do que seria, fatalmente eu teria roubado. Roubado mais ainda, não teria parado. Ele entra numa hora que eu já tô subindo com os caras para roubar, eu levo as armas, tô usando drogas, eu tava nesse caminho. Ele vem e me dá a oportunidade de entender que não era só essa a alternativa, tinha a alternativa artística, que é o que infelizmente acontece na periferia. Ou joga bola, ou canta. No meu caso, se fosse a música convencional, teria ido para o crime, porque cantar, eu não canto nada, canto rap. Então, a projeção seria a pior possível, porque se a gente pensar em alguém que cometeu o crime e se regenera…Eu não diria nem se regenera porque você não é nem criminoso, você é empurrado. Tem aquele discurso que o meio social que você vive não influi, não influi para quem não tá lá, para quem é teórico, para quem escreve a respeito. Vive no barraco, vive no cortiço passando fome, vendo a tua mãe pedindo esmola, eu mesmo pedi esmola para caramba pro meu irmão ter uma cadeira de rodas. A cada dez, uma pessoa me dava, mas ainda falava: ‘tem que trabalhar’, e ainda me insultava. Isso vai te revoltando.

Então, sinceramente, sem o rap, eu fatalmente seria do crime e, levando em consideração o sistema carcerário, que não regenera ninguém, que quer pessoas dentro do sistema prisional, o preso custa R$ 2 mil, o menor infrator R$ 10 mil, quanto mais a casa estiver cheia, mais lucro. É a indústria da desgraça, da violência. Então, levando em consideração, eu acho que não estaria nem por aqui, já teria até morrido.

Eduardo tem como referências políticas figuras como Martin Luther King, Malcolm X, Zumbi dos Palmares e Karl Marx | Foto: Luís Eduardo Gomes/Sul21

Sul21 – Quando tu fala tuas referências, são figuras vinculadas ao pensamento de esquerda. Ao mesmo tempo, tu refuta os partidos tradicionais de esquerda. Como tu vê a esquerda brasileira e como ela deveria ser para ti?

Eduardo: A esquerda, como a grande maioria dos partidos, tem um discurso teórico muito bonito. O problema é que na prática você não vê isso acontecendo. Nós tivemos um exemplo dum presidente da República que era um metalúrgico, um homem do povo, que eu torci, porque você sabe o tamanho do preconceito contra um nordestino, contra um semi-analfabeto, torci bastante. Só que aí você compreende que a engrenagem é de troca de favores. A política do fisiologismo. Você me ajuda e eu te ajudo. Eu apoio o seu projeto, você apoia o meu. Infelizmente, é a deturpação da política, que deveria ser representativa, para representar o povo, reverter o imposto pago em melhorias sociais, e na prática nem um partido fez isso.

Eu me coloco como um cidadão comum, de periferia, eu não vejo esse avanço chegando, porque eu não considero evolução comprar um celular ou financiar um carro. Para mim, progresso está ligado a crescimento intelectual, profissional, é acesso à educação transformadora. É tu colocar o teu filho dentro de uma escola pública e ele, pelo menos, ter acesso ao conteúdo que vai cair na prova do Enem para ele entrar num ProUni, para ele entrar num SISU, o que a gente sabe que não acontece. A maioria das pessoas que estão dentro duma prova dessas, a primeira surpresa é, ‘Porra, não caiu nada do que eu estudei’. Porque a intenção é essa. E aí, na prática, você não vê aquilo que é prometido, então você começa a ver que a política no Brasil é balcão de negócios, cabide de emprego. Obviamente, não dá para você generalizar, dizer que todas as pessoas são corruptas. Devem ter as pessoas boas. Mas, na prática, eu não vi nada.

Quando eu comecei a cantar rap, o meu propósito era falar a verdade, então não posso falar que aquilo partido vai salvar. Não, proposta boa todo mundo tem, o Lula quando era oposição tinha inúmeras propostas boas, o problema é que na prática faltou. Que houve alguma evolução, claro que houve. Eu estou na periferia, nunca ninguém me deu nada, você me dá um cartão magnético do Bolsa Família que tem R$ 100, R$ 200, obviamente que você me ajudou de alguma forma, só que eu vou me sentir agradecido com o resquício, com a migalha, se eu não entender o quanto você me devia. Acho que é isso, independente do partido que chegou ao poder, nenhum chegou nem perto.

Sul21 – Faltou uma política de emancipação?

Eduardo: Na verdade, eu acho que falta vontade política. Nós recebemos 6%,7% de aumento do salário mínimo. Recebemos uma vaga ou outra no ProUni. Melhorou um pouco porque a gente teve um aumento nas cotas, mas a gente continuou ainda na situação de pedinte, não teve uma revolução. Eu, como uma pessoa de periferia, e imagino que o público que me ouve e leu os meus livros, espera que se o Eduardo um dia esteja numa posição de poder, dentro de um gabinete ou palácio de um governo, que exista uma revolução, porque eu falei disso o tempo todo. Então, para mim, não é questão de ser contra a política ou contra a esquerda. Meu discurso é de esquerda, porque é um discurso social. Você quer igualdade social, o simples, o básico, que o político não enriqueça, que ele mantenha o patrimônio dele, que o salário dele não seja exorbitante, você quer que ele não tenha um monte de benefícios. Eu sempre faço essa reflexão, se você recebe auxílio-moradia, auxílio-terno, auxílio-combustível, auxílio do auxílio, seu salário serve para quê? Não faz sentido.

Sul21 – Por outro lado, te assusta esse cenário atual em um dos líderes das pesquisas fala coisas como jogar uma bomba na Rocinha, esterilizar os pobres, te assusta isso?

Eduardo: O cenário é dramático, porque o maior problema disso não é nem o discurso. Eu considero o Bolsonaro uma aberração e ele fala o que o Trump falava, é a política do confronto, do vamos atacar, criminalizar os menos favorecidos. O discurso em si não me assusta, o que me assusta é ver que várias pessoas que são as vítimas aderindo ao discurso. Quando ele compara um afrodescendente a um animal, quando ele se refere ao quilombola que pesa várias arrobas, ele está falando de 51%, 52% da população brasileira. Por si só, essa população não poderia votar nunca. Quando ele fala que no Carandiru morreram 11, mas deveriam morrer muito mais, ele está falando da população carente como um todo, então essa população deveria perceber. Ele deveria ser levado para o estado natural dele, que seria uma piada, não deveria nem ter intenção de voto.

E o caso do Lula é esse, uma pessoa que está presa, não vou nem entrar no mérito se cometeu ou não crime, mas, sem dúvida nenhuma, foi uma perseguição judiciária, uma justiça partidária na aceleração do processo. Eu faço Direito, não tenho doutorado e etc, mas pelo pouco que eu estudo e pelo pouco que a vida me ensinou, um dos maiores problemas na Justiça brasileira é a morosidade, a demora, mas no caso do Lula é tempo recorde. Então, existe uma perseguição, e quanto tem uma perseguição te preocupa, porque você fala: ‘Pô, eu não tô vendo a tripartição dos poderes, eu não tô vendo um judiciário isento, um executivo isento, acho que eles atuam juntos, estão trabalhando em conluio para prejudicar’.

Sul21 – Tu estás em qual semestre?

Eduardo: Fui para o quinto.

Sul21 – Lá em São Paulo?

Eduardo: Sim. Isso é legal. Eu não sou palestrante, eu escrevi um livro. Um parceiro meu falou para escrever um livro e eu acabei escrevendo. Através do livro, você é convidado para falar sobre alguns problemas sociais e acabou se tornando, eu não diria uma palestra, mas um bate-papo. O legal é que quando você está escrevendo, você não se sente tão capacitado. ‘Pô, eu preciso de uma formação acadêmica. Um escritor é bacharelado, tem diploma, passa na OAB, quer outro tipo de informação que eu não tenho’. E, quando você está dentro da academia, o que mais te surpreende é isso, você descobre a riqueza do que você tinha, que a experiência, a vivência, é muito maior do que qualquer livro. Que aquele cara que está ali no plenário, que está julgando, ele é um teórico, ele leu a respeito, não viveu.

Se a gente falar de legitimidade e meritocracia, ele não tem mérito nenhum para estar me julgando, nem conhece a minha vida. Mérito então, nenhum, porque a gente compete num pé de desigualdade absurdo, abismal. Aí você descobre, ‘que louco’, a informação de rua, aqueles caras de boné, roupa larga, que todo mundo criminaliza, persegue, olha como analfabeto, como ignorante, música de burro para burro, e ela é revolucionária.

O que eu aprendi, o que formou meu caráter, o que me transformou em cidadão, foi ouvir as músicas dos favelados, com erro de português, com palavrão. Aí eu chego aqui numa academia, vem o professor, puta dum currículo, passou por várias universidades, e aí esse cara está tentando transformar um monte de pessoas que moram na periferia, porque a minha faculdade, por mais que ela seja próxima a Interlagos, atende ao público em sua maioria carente, em pessoas que odeiam o seu próprio povo, transformar o nós e eles, para fazer a desvinculação. ‘Ah, o cara morreu lá’, ‘ele mereceu’, ‘não era um dos nossos’, ‘morreu porque era bandido’, ‘tinha passagem’.

Sul21 – Isso tu vê na própria faculdade?

Eduardo: O quê? Porra…Se você não entrar com uma mente blindada numa faculdade de Direito, em um semestre você já tá odiando favelado. A polícia está matando e você batendo palma. E aí você está indo junto levar o bolo no dia da reconstituição. ‘Matou quem?’. ‘Menino de 11 anos’. ‘Beleza, toma o bolo, bato palmas, heróis da sociedade’. É isso que é complicado, porque você tem disciplinas que são legais, que passam por filosofia, penal, civil. É legal, é muita informação. E ao mesmo você tempo você vê uma intenção de transformar você num homem bom, que no Brasil é o racista, o elitizado, que odeia pobre, odeia o favelado. Ele acaba tentando entrar na sua mente para odiar o seu próprio povo e achar que o que acontece é normal.


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