Entrevistas|z_Areazero
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4 de junho de 2018
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10:20

‘É uma descrença total na democracia representativa’, diz Rosana Pinheiro-Machado sobre greve dos caminhoneiros

Por
Sul 21
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Rosana pesquisa eleitores de Jair Bolsonaro e o novo conservadorismo no Brasil | Foto: Joana Berwanger/Sul21

Fernanda Canofre

Alguns dias após o início da greve dos caminhoneiros que parou o Brasil neste maio de 2018, a cientista social e antropóloga Rosana Pinheiro-Machado e sua colega Lúcia Scalco, também da Antropologia, chegaram a um ponto de paralisação na BR-290, próximo a de Porto Alegre, para ouvir um grupo de manifestantes. Entre os 30 caminhoneiros concentrados no local, “metade autônomo, metade empregado”, de várias regiões do país, elas vislumbraram um pouco melhor o que foi o episódio e algumas das reivindicações contidas nele.

Encontraram quem discutia se foi golpe ou não foi golpe, quem odiava Jair Bolsonaro (PSL), um dos candidatos que mais tem pontuado em pesquisas de intenção de voto, quem admirava Ciro Gomes (PDT), apoiadores da intervenção militar e quem começou a discutir política somente quando parou na estrada.

Há pouco mais de um ano, a dupla de antropólogas se dedica a entender o que faz com que um candidato como Bolsonaro ganhe eleitorado no Brasil. Foi o boato nos grupos de WhatsApp, de que a greve dos caminhoneiros tinha uma forte mobilização de apoiadores dele, que as levou a ouvir o movimento. No local, porém, viram que não era bem isso. Os caminhoneiros mostraram um lado da população descrente na política institucional como um todo, uma nova faceta de quem cansou do sistema como ele é. Um deputado com mais de 20 anos de mandato na Câmara não traduziria o que eles esperam para o país.

Em um texto publicado no site de Rosana, no dia 28 de maio, onde relatam suas observações, as autoras contam: “Disseram que entenderam que eles são o motor do país e que nunca mais se esquecerão desses dias intensos: ‘Agora nós queremos virar heróis por tirar o presidente’.”

Mas, a greve acabou antes disso. Enquanto o governo de Michel Temer (MDB) se apressou em anunciar o fim dela, na sexta-feira 25 de maio, depois de reunião com representantes dos caminhoneiros, ligados a sindicatos e uniões, nas estradas, milhares deles seguiram por mais cinco dias para dizer que não estavam ali apenas pela redução do preço do combustível.

Rosana é professora na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), passou pela Universidade de Oxford e de São Paulo (USP), e pesquisa economia informal e ilegal, pobreza e modernidade, no Brasil e na China. Uma nova classe que ela chama de “precariado”. Ela conversou com o Sul21 sobre que lições ficam das quase duas semanas de queda-de-braço entre um enfraquecido governo e um grupo de trabalhadores sem liderança e com pautas fragmentadas.

“Estavam ali para baixar o diesel. Depois passaram a falar que “não era pelo diesel”. Ali criou um processo de politização intenso in loco” | Foto: Joana Berwanger/Sul21

Sul21: O que te levou a ir ouvir os caminhoneiros pessoalmente nesses dias de greve?

Rosana Pinheiro Machado: Eu e a Lúcia Scalco, minha colega antropóloga, viemos pesquisando há algum tempo, um ano mais ou menos, eleitores do Jair Bolsonaro (PSL). A gente começou a ver muitos pedidos de intervenção militar, muitos dizendo que o apoiavam e a gente decidiu ir até lá para ver se eram eleitores do Bolsonaro mesmo. Só que o grupo que a gente encontrou não era, muito pelo contrário. Mas, isso vinha dentro de um projeto maior de estudo, sobre eleitores do deputado, o novo conservadorismo, especialmente entre os jovens, no Brasil.

Sul21: Essas informações que vocês tinham mostravam que conteúdos de grupos de WhatsApp tinham “migrado” para o protesto?

Rosana: Sim. Primeiro, pela própria importância do WhatsApp mesmo. Eles passavam o dia inteiro olhando [mensagem], de onde vinha, qual era a notícia, qual era o ponto. Cada um tinha uma opinião diferente, a gente via que o movimento conseguia se amplificar pela notícia que chegava, mas eram opiniões muito diversas. Muito do que a gente chama na sociologia de protestos de viralização, que vem com uma heterogeneidade imensa, fruto desse processo de viralização das redes sociais.

“O que acho que tem relação com junho de 2013 é muito mais pelo fato de que as pessoas não entendem. São esses movimentos típicos do século XXI, ambíguos” | Foto: Joana Berwanger/Sul21

Sul21: No texto que tu escreveste, tu falas sobre a “política de acampamento” que vocês encontraram. Pode explicá-la um pouco melhor?

Rosana: Isso a gente achou bem interessante. São duas coisas. Uma é o aspecto de ocupação mesmo, que era muito parecido com o que a gente viu nas escolas ocupadas e ocupações [em geral], porque as pessoas ocupadas não conseguem sair, passam um ajudando ao outro, dando remédio, a tomar banho, cuidando da mercadoria. Nesse aspecto, é uma política de cotidiano de ocupação mesmo, de solidariedade. Outro aspecto que a gente achou muito bacana: lá, acho que dois caminhoneiros já eram politizados antes, posteriormente, [os outros] diziam “minha vida mudou”, passavam o dia inteiro discutindo se foi golpe ou não foi golpe, se votavam no Bolsonaro ou não, um dia dizia que o Ciro [Gomes, PDT] é inteligente e começavam a discutir, vários deles disseram que nunca tinham se interessado por política, que só estavam ali para ajudar os filhos, que tinham dois bebês em casa à espera, e que agora realmente tinham mudado. Acho que todos ali, na grande maioria, não se interessavam por política. Estavam ali para baixar o diesel. Depois passaram a falar que “não era pelo diesel”. Ali se criou um processo de politização intenso in loco. Isso a gente achou muito, muito fantástico. Nas nossas notas, é só isso que tem. Vinha um e falava que não se interessava por política, quando vê, eles estão ali, se tornando sujeitos políticos no próprio movimento. Isso é super importante, porque é muito o que se dizia de junho de 2013, que as pessoas iam para lá e não entendiam nada de política, que era uma esquerda que nunca foi para a rua. A gente dizia que política se faz no processo. Então, é um grupo que está passando por um processo de politização intenso.

Sul21: Tem semelhanças com 2013? Pela fragmentação de reivindicações, pela falta de “lideranças”? É possível traçar isso já?

Rosana: Essa é uma pergunta bem difícil. Eu acho que são movimentos bem diferentes, mas tem características que não são só de junho de 2013. 2013 começa com grupos de esquerda anarquistas, em todo o Brasil. Em Porto Alegre, começa antes de junho e tinha uma linha política clara, que era desses movimentos, especialmente o movimento popular da Copa, o Bloco de Lutas, depois ele se amplifica. Mas, começou com uma pauta específica, até com uma linha ideológica específica, que depois começa a mudar. Esse movimento [da greve], ao contrário, ele já começa com uma dispersão ideológica muito grande. O que acho que tem relação com junho de 2013 é muito mais pelo fato de que as pessoas não entendem. São esses movimentos típicos do século XXI, que tendem a ter uma ambiguidade porque são movimentos de uma classe precarizada, muitas vezes que não é sindicalizada, o que é claro do precariado, desse estilo de vida mais precário. Isso faz com que, também por não ter uma definição clara e porque é ramificado por redes sociais, eles tenham uma ambiguidade que pode ir para tudo que é lado. Acho que é mais nesse sentido também. Concordo que o fato de não ter uma liderança clara faz com que muitos grupos e muitas pautas entrem, e aí a direita tende a crescer e tomar espaço, porque é mais organizada, porque o Brasil, de alguma maneira, é um país conservador. A esquerda sempre recua, quando vê que não está dentro do que ela sabe lidar. É muito mais trabalhoso fazer trabalho de base ou tentar disputar esses grupos, porque são sujeitos extremamente ambíguos. Eu estou conversando com os caminhoneiros desde a quarta-feira (23), fui para Santa Maria e voltei e parei em dois pontos, e todo mundo reclama de questões estruturais do governo Michel Temer (MDB). Quer dizer, existe uma revolta popular, contra esse governo, contra austeridade, que acaba sendo canalizada por uma pauta muito mais à direita, porque é quem está chegando e tentando espalhar, via WhatsApp, que o que precisa é autoridade.

“Isso, na verdade, é uma revolta anti-sistêmica, que várias pessoas já vem comentando que pós-crise de 2008 há uma sensação anti-sistêmica e ela é direcionada para ambos os lados. Na verdade, é uma descrença total na democracia representativa” | Foto: Joana Berwanger/Sul21

Sul21: Alguns caminhoneiros, que seguiram com a paralisação, falaram em entrevistas que isso não é uma greve, é um movimento. Tem como ter uma ideia do que eles queriam?

Rosana: É difícil, mas acho que essa é uma tendência que está se espalhando, dizer que é um movimento, que nem é mais para baixar o combustível, mas para derrubar o presidente. Acho que a pauta da carga tributária começou a crescer [na segunda semana], mas também não é muito clara. Muitos diziam que é um movimento para salvar o Brasil e para ser “Fora, Temer”. É muito ambíguo. Acho que também tem um preconceito com a palavra greve, porque eles associam à noção de “vagabundo”. “Não é que a gente não queira trabalhar, o fato é que a gente quer mudar o país”. Acho que, como nesses grupos de WhatsApp chegam muitas pautas diferentes, acaba tendo essa ambiguidade. Mas, de modo geral, é um movimento que começou especificamente para baixar o preço do combustível, contra uma política específica da Petrobras, que acaba ganhando amplitude e outras pautas, conforme os grupos vão se aproximando e vai tendo adesão popular.

Sul21: E a questão da intervenção militar, por que ela tem tanto apelo entre essas pessoas? Já que estamos falando em ambiguidade, como fica a pauta diante do decreto de Temer autorizando as Forças Armadas a desobstruírem rodovias e agirem contra os grevistas?

Rosana: Isso é bem contraditório, até escrevi sobre. Tanto no Morro [da Cruz, onde ela desenvolve trabalho de pesquisa], quanto com as pessoas que eu tenho falado, com os caminhoneiros, a gente pergunta o que é intervenção militar e eles dizem “ah, não sei”. Muitos disseram que não sabiam, [mas] apoiavam 100%. É impressionante. Até, no início, não via isso e briguei um pouco dizendo que era difuso. Depois, a gente viu que era praticamente todo mundo pedindo intervenção. Nós desafiamos alguns perguntando, eles diziam que não sabiam o que era, eu respondia “mas a intervenção militar do Temer é contra vocês”, eles disseram “mas tudo bem, se botar contra a gente, vai resolver o problema”. A ideia é de que precisa de ordem, que o país está desgovernado e precisa de rumo. Isso, na verdade, é uma revolta anti-sistêmica, que várias pessoas já vem comentando, pós-crise de 2008 há uma sensação anti-sistêmica e ela é direcionada para ambos os lados. Na verdade, é uma descrença total na democracia representativa. O Jacques Ranciére chama de “ódio à democracia”. Essa ideia de que a democracia não deu certo, que nossas vidas falharam. O tempo todo, a gente perguntava, eles falavam “trabalho a semana toda, não tenho dinheiro para fazer um churrasquinho, porque a carne aumentou, supermercado aumentou” e começam a listar como a vida deles piorou, enquanto lá para cima só roubam. Acho que tem muito de uma revolta contra o sistema, generalizada, que acaba sendo canalizada por intervenção militar, mas que na verdade é uma descrença na democracia. O que nós, intelectuais de esquerda, acreditamos, é que esse modelo de democracia representativa, de fato, fracassou, porque o Estado tem sido capturado pelas grandes corporações, pelos interesses das grandes empresas. Por isso que uma parte de nós fica reivindicando que a pauta da corrupção tem que ser tratada. Lá no acampamento, a pauta dos impostos começou a crescer, mas até ontem, o pessoal falava mais em corrupção do que dos impostos. A discussão ia muito para “tiraram a Dilma, mas os outros ladrões continuam lá, o Temer é mais ladrão ainda”. É uma revolta anti-sistêmica.

“Na verdade, é muito heterogêneo, as pessoas estão pedindo para acabar corrupção, baixar combustível e tirar o Temer” | Foto: Joana Berwanger/Sul21

Sul21: Alguns políticos de direita estão falando sobre uma apropriação do movimento da greve, com intenções “partidárias” e políticas.

Rosana: Eu não vi isso em nenhum momento. Eu não vi nenhum grupo disputando, na verdade, para ser bem honesta, tanto na direita, quanto na esquerda. Acho que a questão da intervenção militar é muito mais uma questão pulverizada e difícil de analisar, teria que fazer um bom estudo de rede para responder isso de forma acurada, mas a esquerda majoritária petista, aparentemente, está contra os movimentos. Contra ou com muito medo, chamando de pautas golpistas. Então, o que sobra da esquerda para estar lá fazendo trabalho de base? Nada. O PSOL tentou, foi lá um ou dois vereadores, a esquerda não-petista não tem base para se apropriar do movimento. Não creio, não tem isso em lugar nenhum e não teria como fazer isso sem que o PT entre junto. Mas também não vejo diretamente a direita fazer isso. Vi algo que me deixou completamente desnorteada, que foi o MBL, a Rachel Sheherazade, dizendo que apoiam [a greve] e grupos mais conservadores ainda chamando eles de comunistas. Realmente, é um pouco isso. As pessoas ficam tentando enquadrar o tempo todo, se está infiltrado para esquerda ou direita, não conseguem olhar exatamente para o que eles estão pedindo. Na verdade, é muito heterogêneo, as pessoas estão pedindo para acabar com a corrupção, baixar combustível e tirar o Temer.

Sul21: No texto, tu também contas que encontrou caminhoneiros dizendo que “odiavam” Bolsonaro. Isso tem a ver com o sentimento anti-sistema, por ele ser um deputado? 

Rosana: É, acho isso bem interessante, porque eles diziam que ele se vende como um político anti-sistema, como um Donald Trump, anti-establishment. O que a gente percebe lá, a gente visitou um grupo de 30 pessoas, cada um de um lugar do Brasil, não tinha unanimidade, mas diziam “é outro político oportunista, está querendo se aproveitar da gente pra fazer voto”. Foi super surpreendente. O relato foi bem interessante pra gente, porque eu venho dando aulas sobre esses movimentos desde 2013, foi bom para continuar pensando a política do precariado, mas para a nossa pesquisa não (risos), eles odeiam [Bolsonaro]. Foi um dado interessante também. A gente foi lá para conversar com pessoas que o apoiavam, de coração aberto, pensando “vamos entender”.

Sul21: Foi uma surpresa diante do que tu já vinhas observando até então?

Rosana: Foi uma surpresa porque o que eu recebia era de movimentos que estavam pró-Bolsonaro. Isso se espalha, os grupos a favor dele vão lá e tiram fotos. Mas era intervenção militar 100%.

Sul21: Há quanto tempo tu vens estudando esse eleitorado? Tem como traçar um perfil? Alguns textos teus apontam a inserção de Bolsonaro na periferia.

Rosana: Um ano. Não, a gente está estudando juventude. Nas escolas de periferia, um terço dos estudantes, da turma de meninos, são pró-Bolsonaro.

Sul21: Qual o apelo que ele tem para essas pessoas?

Rosana: São muitos. Primeiro, acho que é o símbolo, o mito. A primeira coisa, a coisa da juventude periférica, “gangue”, “bonde” , uma certa necessidade juvenil de se apropriar de alguma coisa. Depois tem aquele frustração das ocupações, de todo mundo sendo feminista, LGBT e esses meninos, que são mais machistas, que não gostam disso, se veem acuados e veem no Bolsonaro uma marca para se colocar contra isso. Eles destacam que o Bolsonaro é muito “jovem”, acham ele um cara mega inteligente, esperto nas redes sociais. Mas, a principal questão, é a violência. Todos jovens assaltados, todos têm seu celular roubado e veem ali um desespero para tratar a questão da violência. Essas camadas são as que mais sofrem a violência urbana, dos dois lados. Ao mesmo tempo que tem todo um apelo de classe média, que diz que as pessoas na periferia estão morrendo, eles estão morrendo dos dois lados, não só da polícia. Essas pessoas vivem para ter um celular, principalmente os jovens, e eles têm os celulares roubados sistematicamente. A gente fala em celular, parece uma coisa pequena, mas muitas vezes é a única coisa que eles conseguiram ter e que amam. A sensação de violência, de impotência, que vem alguém e te tira a única coisa que tu tem. É muito difícil.

“Esse discurso populista, contra os direitos humanos, é muito fácil e pega no que é de mais afetivo da pessoa, que é se sentir ameaçado numa sociedade violenta” | Foto: Joana Berwanger/Sul21

Sul21: Ou seja, Bolsonaro encontrou uma maneira de se comunicar com uma parcela do eleitorado que nem discutia política antes? Onde a esquerda está perdendo terreno? Talvez em rotular todo eleitor de Bolsonaro como “fascista”?

Rosana: Primeiro lugar isso, concordo. Isso é um erro tremendo. Alguns grupos mais velhos, quando a gente conversa, passo mal quando saio porque são de fascismo no nível mais escroto que eu já vi. Um dia, saí com coração acelerado, porque era tanta violência no discurso contra feminismo, contra qualquer pauta mais ou menos progressista. Mas, entre os jovens, a gente vê que muitos deles são extremamente contestadores, com quem a gente conseguia dialogar muito, que não eram nada desse aspecto fascistóide. Claro que, muitos deles, são meninos que estão se tornando machistas, mas não é diferente do machismo que sempre existiu na cultura em geral. A segunda coisa, é que [a esquerda] só sabe fazer trabalho de campo de um jeito tradicional, dentro do modus operandi petista, que era de sindicato, depois via Orçamento Participativo, depois instituições, numa época em que as pessoas não querem mais instituições, que a participação se dá via esses modos mais pulverizados. A terceira questão é a maneira como a esquerda fala de segurança pública para essa população. Ela fala de um debate que, para mim, é fundamental, que é um debate que eu acredito, que é o encarceramento em massa. Só que se você quer dizer isso para a periferia, tem que fazer o debate mesmo. Não é falar na Folha de São Paulo, na Piauí ou mesmo no Facebook. Se você fala para a pessoa que está sendo assaltada, que pensa a partir da lógica da impunidade, ela não vai entender. O que a gente via eram meninos super contestadores, falando da desigualdade, que era tudo para os bancos, um discurso muitas vezes progressista, mas ao mesmo tempo, falando em impunidade. Há uma leitura de que direitos humanos só defende bandido.

Sul21: Mas muitos deles não têm essa questão da violência policial na sua realidade?

Rosana: Tem, e muitos deles têm pessoas que foram presas, irmãos que foram presos por uma merreca, vendendo maconha e estão no Presídio Central. Quer dizer, é muito contraditório. Mantendo o discurso “nós contra eles”. Esse discurso populista, contra os direitos humanos, é muito fácil e pega no que é de mais afetivo da pessoa, que é se sentir ameaçado numa sociedade violenta.

Sul21: E somos uma sociedade muito violenta.

Rosana: A gente vive uma crise de violência urbana. Principalmente em Porto Alegre, quem é mais assaltado é quem está na parada de ônibus, voltando do trabalho. É óbvio que a pessoa que está cansada, voltando às 22h para casa, sendo assaltado, vai ficar revoltada. Quem já foi assaltado com uma arma na cabeça sabe. Ninguém fala disso objetivamente, de que esse medo é de todo mundo.

“Acho que as pessoas vão se lembrar de uma crise econômica muito profunda e de um movimento, não só contra combustível, mas anti-establishment” | Foto: Joana Berwanger/Sul21

Sul21: Como tu achas que essas pautas vão se traduzir nas eleições de outubro?

Rosana: O que eu já vi do Guilherme Boulos (PSOL) e da Manuela D’Ávila (PCdoB) – pensando à esquerda, porque o Ciro Gomes não consegui ver proposta ainda para a segurança pública e o PT a gente não sabe nada – aparentemente os dois estão tentando trazer de maneira mais palatável o discurso da segurança pública, mas eles significam 1,5% [da intenção de votos]. Então, enquanto não tem um candidato do PT definido ou uma grande chapa mais para centro-esquerda, a gente não consegue saber qual vai ser o debate. Agora, com certeza, essas questões todas que estão dividindo a sociedade vão estar pautando o debate. Agora como e com quais posições que vão ser tomadas a gente não sabe ainda.

Sul21: Quais tu achas que serão as pautas que ficarão desse momento, quando a gente lembrar de 2018?

Rosana: Eu diria que é essa sensação de que o país foi completamente parado, se dando conta de um setor que é negligenciado, mas que o país não existe sem ele, de como hoje as pessoas conseguem se mobilizar de ponta a ponta sem identificar uma liderança. Acho que as pessoas vão se lembrar de uma crise econômica muito profunda e de um movimento, não só contra combustível, mas anti-establishment. É uma luta que começa a reivindicar pelo combustível, mas coloca medo em toda a classe política. Acho que o principal é que a gente chegou num ponto, como 2013 (e não gosto de fazer comparações com 2013), em que toda a classe política está com medo. A gente está próximo de eleições e todo mundo com um pouco de pânico, para onde isso vai.

Sul21: Os políticos quase desapareceram nesses últimos dias. 

Rosana: Todo mundo, estão todos com medo e não sabem o que fazer. É uma força que põe em xeque a classe política, que de alguma maneira é o que a gente vai lembrar e é o que a gente lembra de 2013, de parar o país e colocar toda essa classe em pânico, num pedido de socorro porque a sociedade está em crise.

“Não é só uma questão mesquinha, econômica, mas da moralidade da vida cotidiana das pessoas” | Foto: Joana Berwanger/Sul21

Sul21: Numa outra comparação com 2013, há uma hostilidade muito forte em relação à imprensa. Também é uma forma de contestação do sistema?

Rosana: Por um lado, eu voltei a defender uma imprensa mais estabelecida porque a gente consegue ter, pelo menos, controle da informação. A gente consegue ver a linha editorial, a fonte da informação, a apuração. Por outro lado, também vi muito essa parte do anti-establishment. Quando estava voltando de Santa Maria, alguns diziam “Você não é da Globo né? Se for vai apanhar”, brincando. Ao mesmo tempo, estavam muito receptivos quando a gente dizia que não era de veículo nenhum, que só queríamos contar as histórias deles. Eles tinham muito medo que fosse distorcido, [numa narrativa] anti-caminhoneiros. Aí estão as duas coisas, de que está se falando muita mentira, que eles são isso e aquilo, porque eles não querem ser rotulados, como apoiadores disso ou daquilo, de algum partido. Eles estão com muita raiva, especificamente da Rede Globo, que está dizendo que é locaute. Me pediam o telefone do Reinaldo Azevedo, que falou mal deles. Tem essa coisa de anti-mídia, mas principalmente porque eles veem como Globo e a Globo está indo para cima contra. Alguns dizem “tem interesse, claro, do meu patrão, mas estou aqui por mim”. Todos estão se vendo como heróis que estão parando o país, num estado revolucionário, porque estão mudando as vidas deles no processo.

Sul21: Por que esse movimento conseguiu tanto apoio da sociedade?

Rosana: Eu acho que por causa da crise econômica, escuto a toda a hora as pessoas dizendo que é um absurdo pagar R$ 5 por uma manteiga. Não é só uma questão mesquinha, econômica, mas da moralidade da vida cotidiana das pessoas. Elas pensam: eu não consigo viver bem, as coisas só aumentam, meu salário é uma bosta, a classe política é toda corrompida e todo dia há um novo escândalo de corrupção. As pessoas se deram conta que é por preço, mas por algo que afeta a vida de todo mundo. A narrativa da crise, de que as coisas estão muito caras e ninguém está vivendo bem.


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