Entrevistas|z_Areazero
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7 de maio de 2018
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10:37

Ex-chefe da PM do Rio: ‘O Brasil tem uma tendência histórica de transformar conflitos policiais em guerra’

Por
Luís Gomes
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Ibis Pereira comandou a PM do Rio de Janeiro e defende a desmilitarização das polícias | Foto: Joana Berwanger/Sul21

Luís Eduardo Gomes 

“Não acabou, tem que acabar, eu quero o fim da Polícia Militar”. Um canto que todo mundo que acompanhou algum protesto ou ato de movimento social alvo de repressão policial já ouviu. É um pedido pelo fim da militarização da polícia e a unificação das instituições de repressão criminal sob um único controle civil. Contudo, para um dos principais defensores dessa desmilitarização, o coronel da reserva Ibis Pereira, ex-comandante da Polícia Militar do Rio de Janeiro, é uma manifestação equivocada, que só acaba afastando o policial militar da causa.

Levado ao PSOL por Marielle Franco, a vereadora carioca executada há quase dois meses sem que o crime tenha sido solucionado, Ibis avalia que a atuação das policiais militares brasileiros é resultado de uma perspectiva histórica de tratar conflitos policiais como guerra. “Isso está presente em Canudos, por exemplo. Canudos, na origem, é uma questão policial, que virou uma guerra. Isso é uma ilustração do que foi a segurança pública ao longo do tempo. Uma sociedade escravocrata, que, ao longo do século XIX, o grande medo era a insurreição dos negros”, diz Ibis, que esta semana participou de um debate sobre desmilitarização da polícia na Unisinos, em São Leopoldo.

Essa guerra, hoje, é voltada para as drogas e, dentro de um contexto de separação entre as forças de patrulhamento e de investigação, levada a cabo pela Polícia Militar. “Qual é a polícia que vai ser demandada a atuar nessa perspectiva? É a que está na rua, mas não investiga. Então, essa polícia vai responder essa demanda privilegiando o quê? O flagrante delito. E não é nos condomínios luxuosos da grande cidade onde você pede droga por telefone, porque ali você não passa da cancela sem uma ordem judicial”, diz o coronel.

Ibis é um defensor da despenalização total das drogas, mas diz que, ainda em um contexto de proibição, é preciso rever a atuação policial. Ele exemplifica isso citando um estudo realizado no Rio de Janeiro entre 2010 e 2015, que apontou que 5% das apreensões de drogas reuniam 80% do volume de entorpecentes apreendidos. “Aí, quando você vai ver onde acontece essas apreensões, é fora da favela. É aquele carregamento que está chegando, que é interceptado na estrada, que é fruto de uma investigação. Até você pegar uma carreta, várias passaram, mas você pega aquela. Ou seja, 95% das apreensões são de pequenas quantidades. Em 2016, no RJ, 53% das pessoas presas por tráfico de drogas, de acordo com essa pesquisa, foram presas com menos de 60g de droga”, aponta.

Contudo, além do fim da guerra às drogas, ele defende que é preciso, dentro de uma perspectiva progressista, também entender o policial como vítima desse conflito. “A gente precisa olhar para esses agentes como vitimizadores, evidentemente, mas também como vítimas da esquizofrenia que a gente tem chamado de política pública, dessas insanidades. A gente precisa fazer esse trabalho”, diz. “Eu creio que, nós que estamos no campo dos direitos humanos, talvez a gente não tenha ainda acordado para a necessidade de olhar para o policial sob o ponto de vista dessa vitimização que ele sofre”.

A seguir, confira a íntegra da entrevista.

Mas Ibis acredita que desmilitarização, se acontecer um dia, seria um processo que exigiria uma longa transição | Foto: Joana Berwanger/Sul21

Sul21: Como tu vês a questão da desmilitarização da Polícia Militar, ela é uma necessidade? Por que é importante?

Ibis Pereira: Primeiro, eu acho que é interessante pensar um pouco essa expressão. Quando a gente fala em militarização, como a gente tem no modelo policial brasileiro uma polícia que é militar, que se organiza sob um regime, um regulamento militar, essa palavra às vezes é mal entendida. Acho que tem duas questões com relação à militarização que o debate capturou bem. A primeira, é pensar uma polícia militarizada, uma polícia que aposta em ações desenhadas a partir de uma perspectiva bélica de confronto e isso fica muito evidente quando a gente fala na questão das drogas, que pelo menos há 40 anos tem sido o grande viés do confronto armado. Acreditar que vai resolver o problema das drogas com Direito Penal e com bala, com fuzil, empurrando a polícia pra dentro das favelas e da periferia brasileira. E outra questão é o modelo policial brasileiro. O modelo policial brasileiro é fragmentado, nos estados você tem uma polícia que é civil, que investiga e não patrulha, e uma polícia que é militar e que patrulha, mas não investiga, a não ser os crimes militares. Ela não pode fazer isso com os crimes comuns, como tráfico de drogas, por exemplo. Então, tem dois debates, um debate que tem relação com as políticas públicas que a gente tem desenhado e que tem um viés belicista, portanto militarizado – e o que está acontecendo no Rio de Janeiro ilustra bem essa questão com a intervenção militar, intervenção federal com um caráter militar -, e por outro lado esse arranjo das polícias brasileiras.

Sul21 – Me parece que existe uma certa confusão do movimento social quando ele vai para a rua e diz ‘não acabou, tem que acabar, eu quero o fim da política militar’…

Ibis: Essa rima é boa, mas a ideia é ruim. Por quê? Porque a realidade da segurança pública brasileira hoje é muito dolorosa. Em 2016, foram mais de 60 mil mortes, mortes violentas intencionais, que são quatro indicadores: homicídio doloso, lesão corporal seguida de morte, o latrocínio, que é o roubo e em sequência a morte, e as mortes decorrentes de posições e intervenções policiais, as mortes produzidas pela polícia. Somando tudo isso, em 2016, nós tínhamos mais de 60 mil mortes. Do final dos anos 70, a partir da redemocratização até hoje, esse números vêm aumentando, vem subindo assustadoramente. A gente não muda essa realidade sem arquitetura institucional, sem políticas públicas, mas a gente também não muda sem envolver as polícias nesse debate. Então, esse tipo de palavra de ordem parece que ela afasta a polícia, principalmente a Polícia Militar. Porque o policial militar se vê como a instituição. Quando você vai para a rua com esse tipo de palavra de ordem, ele se sente atacado, então toda possibilidade de diálogo que a gente poderia estabelecer com esse profissional, toda possibilidade de envolver as instituições policiais nessa discussão de uma nova possibilidade para a segurança pública no Brasil, ou novas instituições, a gente perde. Eu acho que devíamos repensar essa palavra de ordem porque ela não é boa. Ela pode ser uma boa rima, mas como possibilidade de estabelecer diálogo com as instituições policiais, sobretudo a Polícia Militar, ela definitivamente não contribui.

Sul21 – Por outro lado, tem pesquisas que mostram que grande parte dos policiais militares apoiariam o fim do policiamento militar no sentido da unificação do ciclo completo. Quais são as dificuldades e quais seriam as vantagens da unificação das forças militar e civil?

Ibis: Olha, hoje eu não sei se nós temos um apoio majoritário de policiais militares pela desmilitarização, no sentido de a polícia deixar de estar submetida a um estatuto militar. Há 5 anos foi feita uma pesquisa e se sinalizou nessa direção, mas, depois desse debate mais recente sobre a Previdência, eu não sei se a maioria dos policiais hoje estaria favorável à mudança desse estatuto. Considerando que os militares não seriam atingidos pela reforma da Previdência, me parece que muitos policiais que anteriormente poderiam defender um modelo civil talvez hoje não defendessem a mesma posição.

Tem uma questão que a gente não trava, mas que é até anterior a isso, é que o modelo que a gente tem hoje no Brasil, definido pela constituição de 1988, não fui institucionalizado. Pra gente entender os nossos dramas, eu acho que é fundamental começar essa discussão porque essa Constituição que nós temos é a primeira a ter um capítulo sobre segurança pública. Esse capítulo pretendia transformar todos esses atores, essas agências de criminalização, integrá-las num grande sistema, através do qual você pudesse fazer fluir uma política pública de segurança. Você não reduz indicador criminal se você não desdobrar ações no médio e no longo prazo. Como no Brasil a gente não tem sistema, as coisas avançam no curto prazo. Você consegue resultado no curto prazo, no médio e no longo você não consegue. Uma das razões pela quais não consegue é porque até hoje esse capítulo da Constituição que trata sobre segurança pública nunca foi regulamentado. Não foi regulamentado por absoluta omissão do legislador. Em 30 anos, nós tivemos um único projeto de lei que ficou desde 2012 parado na Câmara dos Deputados e que agora depois da intervenção, depois da morte da Marielle, de tudo isso, os nossos deputados e senadores voltaram a discutir. E até onde eu tenho acompanhado, o texto sofreu muitas alterações em relação à ideia inicial do que na época foi chamado de sistema único de segurança pública. Sem isso, tanto faz você ter uma Polícia Civil, uma Polícia Militar, não vai conseguir resultado algum no médio e longo prazo. Não vai. Você pode desmilitarizar a PM, ela pode ser uma polícia civil, se você não tiver um sistema, se você não for capaz de fazer com que essas instituições operem efetivamente em conjunto, você não consegue fazer fluir ações no médio e longo prazo e, portanto, você não consegue construir nada em segurança pública.

Coronel da reserva diz que polícias brasileiras sempre operaram voltadas para a guerra | Foto: Joana Berwanger/Sul21

Sul21 – Mas para isso não seria melhor ter um ciclo único?

Íbis: Olha, eu entendo que o melhor desenho para as polícias brasileiras seria de fato acompanhar a tendência mundial, que é um ciclo completo de polícia. Só que a gente tem um problema de ordem prática, na minha opinião. Você tem 60 mil pessoas assassinadas em 2016, você tem taxas de elucidação de inquérito que são muito baixas. De acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, menos de 10% das mortes violentas intencionais são apuradas, transformar o atual modelo num novo modelo com essa realidade de fundo não é fácil de fazer. Você pegar uma polícia que hoje é militar e não trabalha historicamente com investigação criminal e faz com que essa polícia passe a rodar no ciclo completo, isso é muito difícil de fazer. É fácil de falar, mas é difícil demais fazer. Por outro lado, transformar essa instituições, da noite pro dia, numa instituição civil, o que me parece que seria ideal, também é muito difícil porque, em muitos estados, as unidades sequer são preparadas pra isso. No meu estado, por exemplo, nós temos muitos quartéis da PM que datam do início do século XX. São quartéis militares porque a instituição, no início do século XX, era aquartelada. Essa não é uma transformação simples que a gente possa fazer de uma hora para a outra. Eu penso que o melhor para o Brasil hoje seria fazer o dever de casa que a gente não faz há trinta anos, regulamentar a Constituição com o que nós temos. A partir daí, reduzir os indicadores, principalmente a letalidade violenta, porque nós temos estudos que mostram que países onde a letalidade violenta é muito elevada, países onde a vida humana ou a morte é banalizada, são países em que os outros indicadores começam também a se elevar. Os roubos de rua começam a se elevar, se tornam mais violentos, as pessoas vão ficando mais agressivas, o medo vai tomando conta da cidade, com todos os desdobramentos que acontecem em função disso. Então, eu penso que o melhor para o País seria criar um sistema com o que nós temos, mas que esse desenho já, de alguma maneira, pudesse sinalizar a migração para um novo modelo, como uma espécie de transição, e nos próximos 20 ou 25 anos, talvez fosse preciso toda uma geração, a gente pudesse pensar numa unificação com ciclo completo e numa polícia de natureza civil, porque no mundo inteiro a polícia é de natureza civil.

Sul21: Por que a polícia brasileira é a que mais mata e a que mais morre no mundo?

Ibis: Primeiro, você tem historicamente no Brasil uma tendência a transformar conflitos policiais em guerra, essa perspectiva belicista é histórica no Brasil. Isso tem a ver com a nossa herança escravocrata, isso tem a ver com uma república que a gente nunca conseguiu fundar efetivamente, essa nossa república nunca foi inclusiva. É um grupo contra os outros, a perspectiva bélica está aí. A ditadura civil-militar, quando ela incorporou a Doutrina de Segurança Nacional e quando ela espraiou essa perspectiva para as instituições policiais, envolvendo os policiais nesse enfrentamento político como linha de frente, ela deu ares de ciência a essa nossa tragédia histórica.

Sul21: Esse militarismo.

Ibis: Isso está presente em Canudos, por exemplo. Canudos, na origem, é uma questão policial, que virou uma guerra. Isso é uma ilustração do que foi a segurança pública ao longo do tempo. Uma sociedade escravocrata, que, ao longo do século XIX, o grande medo era a insurreição dos negros. Para boa parte do Brasil, essa insurreição das favelas ainda é um medo. Então, a Doutrina de Segurança Nacional deu ciência a essas nossas práticas ancestrais. Quando a gente está saindo da ditadura civil-militar, a gente abraça outra guerra. Tem um discurso célebre do Nixon [ex-presidente americano Richard Nixon], de março de 1971, onde ele, já sinalizando para a derrota iminente dos EUA no conflito no Vietnã, diz que o insucesso dos jovens americanos tinha uma relação com o efeito das drogas, que as drogas estavam corrompendo, o discurso moral que até hoje se usa para continuar penalizando. Então, você tinha polícias que estavam atuando nessa linha de frente do enfrentamento político da ditadura civil-militar, precedendo o emprego das forças armadas, dentro dessa perspectiva da guerra à subversão. Então, da guerra à subversão você passa à guerra ao crime. Quando a gente está saindo disso, a gente abraça outra guerra, às drogas, que está aí até hoje. Nessa perspectiva de você lidar com a questão a partir do confronto, em vez de você privilegiar a investigação criminal, você privilegia as grandes operações e aí é preciso entender como essa política de guerra às drogas se conjuga com o modelo policial brasileiro para produzir essa tragédia. Então, você não tem sistema, a Constituição até hoje não foi regulamentada, as instituições são capturadas pelas vontades. Se os dirigentes municipais, estaduais e federais estiverem alinhados, as coisas fluem. Se não estiverem, não fluem, porque não tem sistema. As instituições são ilhas. Nada as amarra.

Ibis defende a despenalização das drogas  | Foto: Joana Berwanger/Sul21

Sul21: Dependem só da vontade das pessoas.

Ibis: Por quê? Porque a Constituição até hoje não foi regulamentada. Esse é um ponto. Não tem política pública. Ora, tráfico de drogas e tráfico de armas são atribuições do governo central. Os estados não podem legislar nessa matéria. As polícias são estaduais. Você tem a Polícia Federal que tem suas atribuições de polícia judiciária da União, mas não está no dia-a-dia. Só que nos outros estados, você tem outro problema, que é ter uma polícia que não patrulha, só investiga e é civil, e outra militar, que patrulha, mas não investiga. Quando essa política fundada na guerra encontra o estado e as instituições policiais, qual é a polícia que vai ser demandada a atuar nessa perspectiva? É a que está na rua, mas não investiga. Então, essa polícia vai responder a essa demanda privilegiando o quê? O flagrante delito. Ela não investiga, ela não pode prender um traficante fora do espaço da favela, ela não pode fazer um inquérito durante 9 meses, que é mais ou menos o que a gente leva no RJ da primeira denúncia até a prisão, demandada para agir, ela vai agir onde? Onde ela não precise atuar a partir de uma investigação, privilegiando o flagrante. E onde é isso? Nos espaços de venda de drogas no varejo. E não é nos condomínios luxuosos da grande cidade onde você pede droga por telefone, porque ali você não passa da cancela sem uma ordem judicial. Agora, na periferia, na favela, ela não precisa. Então, essa polícia vai ser empurrada para agir nesses espaços. A gente chegou nesses indicadores alarmantes porque a gente tinha agências policiais operando numa perspectiva bélica, herança da ditadura-civil-militar. Nos anos 1970, essas polícias, que já estavam se redemocratizando ou passando por um período de redemocratização, passaram a operar dentro dessa mesma lógica, mas a partir de um novo inimigo, que é o traficante de drogas.

A gente pegou esse modelo, que a gente herdou, e continuou trabalhando com ele. Trinta anos depois, você não regulamentou a Constituição, as instituições continuam trabalhando como ilhas, a política de drogas continua sendo a da guerra, com essa fragmentação, se você levar em consideração que você tem uma baixa efetividade no controle de armas e munições que circulam no território nacional e vão armar as quadrilhas que trabalham no varejo de drogas e também as polícias, você tem um cenário de tragédia, que é o cenário que a gente vive.

Sul21: Tu acreditas que precisamos de uma mudança na legislação para sairmos do cenário de guerra às drogas? O que  defendes?

Ibis: Eu defendo a despenalização, porque eu sou abolicionista em matéria de Direito Penal. Eu acho que nós teremos uma sociedade mais livre quando a gente não tiver Direito Penal, não tiver cárcere. No limite, como utopia, eu acho que a gente deveria procurar o fim do cárcere, progressivamente a redução do Direito Penal para aquilo que realmente importa na vida. Quanto menos Direito Penal, melhor. Agora, no Rio de Janeiro, nós fizemos uma pesquisa muito interessante, entre 2010 e 2015, relacionando o número de apreensões de drogas e quantidade de drogas apreendidas. Cada registro de ocorrência, uma quantidade de drogas apreendida. Nesse período, 5% das apreensões de drogas responderam por 80% da massa de drogas apreendidas. Aí quando você vai ver onde acontecem essas apreensões, é fora da favela. É aquele carregamento que está chegando, que é interceptado na estrada, que é fruto de uma investigação. Até você pegar uma carreta, várias passaram, mas você pega aquela. Ou seja, 95% das apreensões são de pequenas quantidades. Em 2016, no RJ, 53% das pessoas presas por tráfico de drogas, de acordo com essa pesquisa, foram presas com menos de 60g de droga. Presas por tráfico de drogas, pequenas quantidades. Nós estamos voltando a máquina de repressão para a pequena quantidade por causa dessas omissões que eu estou falando. Eu sou favorável à despenalização ampla e absoluta de todas as drogas, mas o que eu estou dizendo é que, mesmo num contexto proibicionista, você poderia ter resultados mais racionais que esses que a gente tem. Bastava focar na investigação criminal. Em vez de privilegiar o confronto, de empurrar para o varejo essa polícia que é militar e não investiga, foca na investigação, investe na Polícia Civil para melhorar qualidade dos inquéritos.

Ibis Pereira foi levado ao PSOL por Marielle Franco | Foto: Joana Berwanger/Sul21

Sul21: Mas como se faz isso nesse ambiente que é todo fragmentado?

Ibis: Aí é uma questão de decisão política. Como é que eu vou enfrentar essa questão da droga? Com investigação criminal, tentando prender grandes quantidades, tentando desbaratar as quadrilhas que são responsáveis pelo comércio e pela distribuição de drogas. No meu Estado, e acredito que a realidade de vocês seja parecida, nós temos pelo menos quatro facções criminosas que se matam há 40 anos. Por quê? Porque até hoje o tráfico no varejo não se organizou, por isso os caras se matam, disputando território. No entanto, o abastecimento, a distribuição, a compra, isso está organizado.

Eu quero continuar acreditando no Direito Penal? Eu quero continuar apostando nisso? Tudo bem, agora é uma questão de decisão política como é que eu vou fazer essa repressão. Eu vou enfrentar como? Vou continuar apostando no varejo, no enfrentamento, na guerra às drogas, ou eu vou utilizar a polícia de uma maneira mais inteligente? Utilizar a polícia de uma maneira mais inteligente é investir na investigação criminal. Melhorar a qualidade dos nossos inquéritos, melhorar a legislação processual. A gente fala muito da legislação penal e fala pouco da processual, que justamente daria esse dinamismo à polícia judiciária. Isso é uma questão de decisão política.

Sul21 – Falando em decisão política. Como o senhor vê a intervenção federal no RJ?

Ibis: Eu creio que a intervenção federal no RJ tem menos a ver com segurança pública do que com política eleitoral. Eu tenho a convicção que se a Paraíso do Tuiuti, que fez um desfile histórico, não tivesse feito aquela crítica tão contundente ao presidente da República, nós não estaríamos falando em intervenção federal no RJ. Porque os números desse ano, efetivamente, não foram diferentes dos números dos últimos anos no Rio de Janeiro. O RJ é o Estado que vem passando por uma crise econômica e financeira sem precedentes, mas também uma crise política. Nós estamos com um ex-governador preso, com um ex-presidente da Assembleia Legislativa preso, com quase todos os conselheiros do Tribunal de Contas presos, só sobrou uma, isso é um estado que está vivendo uma crise política. E não tem política pública de segurança sem decisão política e não tem decisão política sem crise política. É claro, o RJ tem um problema histórico com relação à sua dinâmica criminal. Nos últimos 40 anos. Mas o cenário atual no Estado, sobretudo na cidade e na sua região metropolitana, tem se agudizado em função da crise política. Então, se a intervenção tivesse sido no governo do Estado, eu a entenderia mais. Agora, fazer uma intervenção exclusivamente na área de segurança pública me parece muito mais uma jogada de política eleitoral para, talvez, aumentar a popularidade do atual presidente do que propriamente uma ação substancialmente voltada para a questão da segurança pública.

Mas, além disso, é bom lembrar que, além da intervenção federal, o RJ vive desde agosto do ano passado a atuação das forças armadas sob o argumento da GLO [Garantia da Lei e da Ordem], são 10 mil homens. Nos últimos 10 anos, nós tivemos 67 empregos das Forças Armadas no Brasil em 17 estados sob o argumento da Lei e da Ordem. Isso é muito grave. Toda essa nossa indecisão ou falta de vontade política de fazer as alterações que precisam ser feitas na segurança pública no Brasil têm levado ao emprego das Forças Armadas que deveria ser extraordinário a ser ordinário. O que está acontecendo no RJ hoje significa que nós ultrapassamos um limite extremamente ruim. Se nós não fizermos as alterações que precisam ser feitas de uma maneira contundente, séria, profunda, dentro de alguns anos a gente não vai mais estar falando de intervenção, mas de estado de emergência ou de sítio. Vai ser o próximo passo, porque esse emprego rotineiro, ordinário das Forças Armadas significa que, em vez de fazer essas alterações que seriam necessárias, nós estamos trazendo órgãos ou agências que deveriam atuar suplementando a segurança pública, nós estamos trazendo essas forças para o centro da questão. Isso é muito ruim.

Sul21: Que medidas poderiam ser tomadas, numa perspectiva realista dentro do contexto político atual, num sentido contrário à militarização da segurança pública?

Ibis: A primeira questão é repensar a política de drogas. E insisto num ponto, apesar de eu ser favorável à despenalização, mesmo num contexto proibicionista, é possível melhorar. Por exemplo, a gente pode discutir um critério objetivo para fazer a distinção entre usuário e traficante. Esse é um debate que já está acontecendo no STF. Não dá para a gente continuar prendendo por tráfico de drogas pessoas com 60g de substância entorpecente como acontece no RJ, e tenho certeza que acontece aqui também. Essa legislação de drogas que permite você dizer quem é usuário e quem é traficante pelo lugar em que a pessoa é presa precisa ser repensada. Se as pessoas não quiserem mudar o lugar, que pelo menos se adote um critério objetivo. Isso eu acho que a gente pode discutir. Com o perfil do Congresso Nacional que a gente tem, e não há nada que me autorize a pensar que com as eleições desse ano nós vamos ter um perfil mais progressista, acredito que não, talvez esse debate sobre a despenalização seja difícil de acontecer, mas tornar esse enfrentamento mais racional eu acho que é possível. E a partir daí, como eu disse, é focar na investigação criminal, o que significa fortalecer a Polícia Civil nos estados. É fundamental aumentar as taxas de elucidação de inquéritos para que a temperatura diminua. Muitas mortes com baixa taxa de apuração faz com que o medo fique muito em alta, e o medo é um péssimo conselheiro, inclusive para a política. Então, o caminho estaria em melhorar a legislação processual, tornando a investigação mais ágil, dotando a polícia civil e as perícias criminais dos estados com mais recursos e com mais elementos para melhorar a qualidade dos inquéritos.

Sul21: Em vez de só investir em tanques e armas, apostar na estrutura de investigação.

Ibis: Por outro lado, eu acho que é fundamental que o Estado brasileiro enfrente o desafio de reduzir a letalidade policial das suas instituições policiais. Eu acredito que, nesses anos todos de guerra às drogas, nós envolvemos as nossas polícias nessa forma de atuação e, por conta de todas as outras questões que eu falei, a gente tem hoje instituições policiais com alto índice de letalidade. E com isso nós temos polícias adoecidas. Policiais que sofrem e fazem sofrer. Com isso, as polícias brasileiras deixam de fazer parte da solução e passam a fazer parte do problema. Então, é preciso reverter. O estado precisa enfrentar o desafio de reduzir esse indicador de letalidade violenta. Diminuir a letalidade das polícias vai diminuir a mortalidade dos policiais. Eu não tenho dúvidas que policiais morrem por causa da maneira que são empregados. Eles são vítimas, claro, de quem aperto o gatilho, mas também são vítimas da política por trás desse gatilho.

Sul21: Por que as polícias se afastaram tanto no Brasil da questão dos direitos humanos? Os policiais não deveriam ser os garantidores dos Direitos Humanos, que também são os direitos dos próprios policiais?

Ibis: Eu acho que por parte dos formuladores ou das pessoas que militam na área de DH talvez tenha faltado um discurso em que o policial se reconheça, não como um algoz, mas como um protagonista dos direitos humanos. Como alguém que exista efetivamente compromissado com a defesa dos direitos humanos. Eu acho que, no campo progressista, para nós da esquerda, muitas vezes nós não temos conseguido formular um discurso que envolva a polícia nisso.

Sul21: O senhor acha necessário isso?

Ibis: Eu acho fundamental. Por isso, voltando aquela questão do início, quando a gente vai para a rua dizer ‘não acabou, tem que acabar, eu quero o fim da Polícia Militar’, isso não ajuda, cria mais problemas do que solução. Talvez o problema esteja com a gente, nós não conseguimos formular um discurso em que o policial se sinta contemplado, sinta que nós da esquerda, e da esquerda marxista, que é o campo no qual eu me encontro, que nós nos preocupamos com eles. Por que tem todo esse debate dentro do marxismo, a questão é revolucionar os meios de produção e a polícia, de alguma maneira, é um instrumento de dominação. Porque nós temos essa compreensão, eu acredito que a gente nunca tenha se preocupado em capturar esses agentes e, com isso, eles se tornam presa fácil desse discurso de que ‘bandido bom é bandido morto’, desse discurso autoritário, e que, de alguma maneira, fala para eles. Eles reconhecem que pelo menos tem alguém em determinado campo que está ‘preocupado comigo’. Então, a gente precisa olhar para esses agentes como vitimizadores, evidentemente, mas também como vítimas da esquizofrenia que a gente tem chamado de política pública, dessas insanidades. A gente precisa fazer esse trabalho. Porque a gente não consegue formular um discurso no qual o policial se reconheça, a gente tem perdido essa possibilidade de envolver esses agentes num debate sobre mudança e reforma nas instituições.

Sul21: Em geral, quando a esquerda se preocupa com o policial, é na questão do servidor público, de salário e condições de trabalho. Tu achas que ela tem que sair um pouco dessa questão de tratar o policial só como uma categoria a mais do serviço público e também fazer um trabalho de conscientização para melhorar a atuação das polícias?

Ibis: Sem dúvida, no sentido da humanidade. As polícias brasileiras vêm passando desde a ditadura civil-militar, durante o processo de redemocratização e até hoje, por um processo de desumanização, de embrutecimento, porque a guerra embrutece como desenvolvimento natural. Ou você enlouquece ou você se embrutece. O embrutecimento é uma condição para você sobreviver. No RJ, nós fizemos um estudo muito interessante sobre o suicídio, mostrando como parte significativa da tropa, policiais com até 8, 10 anos de serviço, já tinham comportamentos que apontavam ideação de suicídio, tentativa de suicídio, em função desse contato com a violência. A violência adoece, fere a subjetividade, embrutece. Você lidar com a violência do cotidiano, com a guerra, e ser empurrado para isso, diminui a tua humanidade. Então, eu creio que, nós que estamos no campo dos direitos humanos, talvez a gente não tenha ainda acordado para a necessidade de olhar para o policial sob o ponto de vista dessa vitimização que ele sofre.

Sul21: Quem fazia isso não era justamente a Marielle Franco?

Ibis: Eu entrei no PSOL só por causa dela, ela que me levou para o partido. Quando eu estava chefiando o gabinete da Polícia Militar, eu tinha um contato muito próximo, porque ela trabalhava na comissão de Direitos Humanos da Alerj e fazia esse trabalho de acolhimento dos policiais. Eu procurava, juntamente com ela, aproximar familiares de policiais mortos, tanto em serviço como fora, da comissão, que fazia um trabalho muito interessante no sentido de amparo das viúvas, agilizando a liberação de pensões por morte de policiais. A Marielle tinha esse zelo com a dimensão humana da polícia, que é um trabalho que a gente precisa fazer, que não passa apenas pela reforma dos regulamentos e de toda essa parte legislativa que organiza as instituições, mas da perspectiva mesmo de acolhimento desse policial, de ele se sentir objeto da nossa preocupação, do nosso cuidado. E a Marielle fazia um trabalho prático disso, ele tinha uma dimensão concreta desse cuidado, que era o trabalho da Comissão de DH. É claro que, no meu Estado, essa cultura do ‘bandido bom é bandido morto’ é uma cultura que vem se arrastando pelo menos desde o final dos anos 1970, é uma questão que está muito enraizada dentro de alguns setores da polícia e da própria sociedade. Não é uma coisa que a gente vá vencer tão facilmente. Mas ela tinha um trabalho e a comissão tem um trabalho muito interessante nesse sentido, que eu acho que poderia ser replicado em outros estados também.

Ibis avalia que Caso Amarildo é um dos símbolos do fracasso das UPPs | Foto: Joana Berwanger/Sul21

Sul21: Tu achas que precisa haver bancadas de segurança pública no Congresso, nas assembleias e até nas câmaras municipais voltadas para uma perspectiva mais humanista de segurança pública?

Ibis: É a única saída. Não há nenhuma outra saída, em nenhum lugar do mundo, que não seja por essa perspectiva. Em última análise, a segurança pública começa com o respeito à dignidade das pessoas, com a promoção da dignidade das pessoas. O que significa isso de concreto? Isso é segurança social. Quanto mais você investir na melhoria das condições de vida das pessoas, quanto mais você investir na construção de um ethos comum, onde as pessoas se encontrem efetivamente como membros de uma mesma cidade e possam desfrutar desse comum com mais intensidade, mais os nossos indicadores melhoram. A gente não vai precisar ficar colocando tanque nas ruas da cidade ou multiplicando os efetivos das polícias. Em última análise, eu acho que os nossos indicadores criminais traduzem um déficit de humanidade. Significa que a gente não conseguiu avançar na promoção da dignidade humana efetivamente. Então, quando mais de 70% das vítimas de letalidade violenta no Brasil são pobres, moradores da periferia e negros, isso não é acaso, isso é história, é uma república que a gente não conseguiu fundar até hoje.

Sul21: É um produto.

Ibis: É um produto de um problema que é ancestral, que a gente não consegue resolver. A Constituição deveria ter criado condições para esse estado democrático de direito, para essa sociedade livre, justa e solidária, isso não aconteceu efetivamente. Quando essa Constituição foi criada, a gente tinha um terço dos presos que o Brasil têm hoje. Hoje nós temos uma das maiores populações carcerárias do planeta, apesar de a gente se considerar um estado democrático de direito. Tem alguma coisa errada com isso. Nós não conseguimos efetivamente fundar esse estado democrático de direito, essa república inaugurada em 88 não andou no que significa a promoção dessa dignidade, isso explica os nossos indicadores criminais, eles são o resultado desse nosso fracasso de origem.

Sul21: O senhor foi comandante da PM do RJ. O que fez para tentar mudar esse quadro? Quais são as dificuldades? 

Ibis: Primeiro, o que a gente estava comentando aqui. Nos estados, você pode avançar em muitos aspectos, mas enquanto o eixo fundamental da política de segurança que a gente tem for o confronto, for a guerra às drogas, enquanto a gente não conseguir minimamente ter um controle maior de armas e munições, que circulam no território dos estados, o conflito vai estar colocado, com todos os desdobramentos e consequências que isso têm. Isso adoece os policiais. No meu estado, por exemplo, nós tivermos uma apreensão impressionante de armas de guerra. Há alguns meses, nós apreendemos 60 fuzis dentro do aeroporto internacional, que é uma área sob o controle da União federal. Então, os estados, muito embora possam avançar em alguns aspectos, ainda estão submetidos a políticas que na verdade dependem do governo central.

Sul21: Ainda sobre o Rio, por que as UPPs fracassaram?

Ibis: Porque elas nunca foram política pública. Nem isso foi. Eu comandei, em 2012, a academia que forma os oficiais do Rio. Em 2012, nós já tínhamos quatro anos de UPP e não tínhamos um único manual para trabalhar em sala de aula. Como você reproduz um modelo sem manualizar as coisas? O programa de polícia de proximidade foi publicado em março de 2015, quando nós já tínhamos 38 UPPs. Aconteceu com as UPPs, o que acontece com a Segurança Pública no Brasil, a gente criou, mas não institucionalizou. Então, a UPP ficou como ideia gravitando na cabeça de algumas pessoas, mas não ganhou substância, não ganhou realidade. A gente não criou estrutura para ela. Como você forma sem materializar a ideia? Ficou como ideia, como discurso, enquanto isso o programa foi se multiplicando. Porque aí, é inevitável dizer, a gente entrou naquele calendário de grandes eventos, o programa foi incorporado por um discurso político, recebeu financiamento. O programa começou a dar sinais de fragilidade pelo menos desde 2012, quando, três meses depois da ocupação do Alemão, Exército passou o controle do território para a PM, nós tivemos os primeiros policiais mortos naquela região e o programa não sofreu nenhum tipo de mudança de rumo. No ano seguinte, em 2013, nós tivemos o caso Amarildo, o programa também não sofreu nenhum tipo de mudança.

Sul21 – E deveria?

Ibis: Óbvio. O caso Amarildo, na minha opinião, foi o caso mais grave que envolveu as polícias brasileiras depois da redemocratização. No entanto, ele não mereceu sequer um pedido de desculpas do estado do Rio de Janeiro. Então, o programa cresceu demais com baixa institucionalidade. Ele nunca foi sequer uma política de governo, porque se fosse, eu não digo nem uma política de estado, as pessoas teriam se preocupado em minimamente institucionalizar, em criar um decreto, em transformar aquela experiência num manual para você levar essa prática para o âmbito da formação, do treinamento. Você faria uma reforma, ainda que nos limites possíveis, das instituições policiais. Para você ter uma ideia, no meu estado, toda a legislação que organiza a PM é anterior a 1988. Então, você pega essa polícia, com todas essas questões que a gente vem discutindo aqui, coloca ela dentro de um território, não muda a política de drogas, não reforma minimamente as instituições policiais e não institucionaliza da maneira adequada a política, o resultado não poderia ser outro além do progressivo definhar da experiência.


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