Entrevistas|z_Areazero
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16 de abril de 2018
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10:42

Luiz Faria: empresariado é doutrinado pelo setor financeiro para defender interesses contrários aos seus

Por
Luís Gomes
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Luiz Faria também discorda das soluções de austeridade e redução do estado propostas pelos governos Temer e Sartori. Foto: Guilherme Santos/Sul21

Luís Eduardo Gomes

Se o leitor acompanhar as notícias da economia apenas pelos discursos do presidente Michel Temer (MDB) e do ex-ministro da Fazenda Henrique Meirelles (MDB), pode vir a acreditar que o Brasil já superou a crise econômica e se prepara para, nesse e nos próximos anos, retomar o caminho do crescimento. A avaliação do professor de Economia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Luiz Augusto Faria é menos otimista.

Durante uma longa conversa em sua casa com a reportagem do Sul21, com pouco de economês e muitos exemplos práticos, o professor fez uma avaliação de que o crescimento de 1% do Produto Interno Bruto (PIB), registrado em 2017, foi uma anormalidade decorrente do forte crescimento da safra agrícola, algo que não deve se repetir neste ano. E, previu, com base na indústria e no setor de serviços sem estímulos, em um desemprego ainda alto e com a renda das famílias em declínio, um crescimento estagnado ou de quase zero para esse e o próximo ano. “Esse ano está precificado em quase zero, porque tinha uma expectativa de que deu uma melhoradinha no final do ano passado, chegou a 1%, mas, na verdade, esse 1% foi só a safra agrícola. A indústria e os serviços foi negativo ou zero”, diz.

Luiz Faria também discorda das soluções de austeridade e redução do estado propostas pelos governos Temer e Sartori (MDB), e defendidas em espaços como o Fórum da Liberdade — evento realizado na última semana com patrocínio de empresas como Gerdau e RBS e que reuniu a “nata” do pensamento liberal nacional –, que pregam a redução total da participação do estado na economia, uma agenda de privatizações e, inclusive, a substituição de serviços públicos de saúde e educação por um sistema de cupons. Para ele, esse tipo de pensamento é um equívoco histórico. Um conto de fadas, para citar o economista americano Paul Krugman.

“Desde o início do mercantilismo, o capitalismo é dirigido pelo estado, que vai na frente. O Infante Dom Henrique criou a Escola de Sagres e a partir dali o Império Português virou um império comercial-capitalista. Mas foi o estado que puxou tudo. Isabel e Fernando de Castela unificaram e organizaram a Espanha, fizeram um poderoso estado e a Espanha virou um império comercial-capitalista. Os holandeses fizeram a mesma coisa e os ingleses também. Desde o Henrique VIII, Elizabeth I e tal construíram um estado e depois o país se tornou um império capitalista-comercial. Nos EUA foi a mesma coisa. Até a guerra da secessão, o estado americano era frágil, o capitalismo não deslanchava. Aí, depois da guerra, a união ficou poderosa, tinha um exército, tinha uma enorme dívida, tinha uma grande capacidade de investimento, aí o capitalismo americano deslanchou”.

Para o professor, essa fascinação pelo estado mínimo, mesmo em casos que contraria os interesses do empresariado local, é o resultado de décadas de “doutrinação” e “colonização” do setor da iniciativa privada brasileira pelo setor financeiro. “Até o cara lá do arroz, da soja, é a favor de privatização. Aí de repente diz: ‘Opa, mas eu preciso de crédito do Banco do Brasil para a minha safra’. Aí ele quer o Banco do Brasil, mas no outro dia estava lá, numa reunião, discursando pelo estado mínimo”.

A seguir, confira a íntegra da conversa.

Professor avalia que a política econômica do governo Temer como um “desastre” | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Sul21 – Como o senhor avalia esses praticamente dois anos de política econômica do governo Temer?

Luiz Faria: A política do Temer é o desastre que ele anunciou. O Brasil começou uma recessão em 2014. Em 2015, infelizmente, a Dilma adotou uma política equivocada. Por um cálculo político dela, mesmo sabendo que aquilo estava errado, porque é uma boa economista, decidiu contemporizar com a oposição que queria austeridade, corte de gastos, para logo em seguida quem sabe reverter. Um pouco imaginando o que o Lula tinha feito lá no começo do primeiro mandato dele, em 2003. Eu faço uma contenção de gastos e tal, o empresariado fica feliz, me acha austero, crível, e aí depois eu emendo numa política de desenvolvimento. Acho que ela pensou isso, só que não deu certo, porque depois emendou uma crise política que acabou no episódio do impeachment. Na verdade, do ponto de vista político, ela acabou se enfraquecendo quando pensava que ia se fortalecer. Ela decepcionou a base que a tinha eleito em 2014 e, do outro lado, o empresariado não estava mais comprando a ideia de continuar com ela.

Sul21 – A gente tem algumas narrativas concorrentes sobre o que causou a crise econômica. A narrativa predominante atualmente, do mercado, é do excesso de gastos do governo, que teria crescido descontroladamente. Enquanto outras narrativas vão falar que a causa está na desvalorização da moeda, na queda dos valores das commodities no mercado internacional. Como tu avalia as causa da crise?

LF: Na verdade, não foi nem uma, nem a outra. O gasto não aumentou, ele vinha crescendo moderadamente e acompanhando o PIB, que vinha crescendo também. Não tem um disparar de nenhum tipo de gasto público no período. Ao contrário até, já no final do primeiro mandato ainda, a Dilma, sentindo a desaceleração da economia e que a curva de receita do governo estava apontando que o PIB estava desacelerando, além de outros indicadores da indústria, do emprego, etc., ela deu uma certa segurada no gasto. O que causou a desaceleração? Na minha maneira de ver, foi principalmente uma coisa: o empresariado puxou o freio do investimento. Todo o ciclo de crescimento, Lula 1, Lula 2 e Dilma 1, enquanto estava tudo bem, foi puxado pelo investimento. Do Estado, com as obras públicas, transposição do Rio São Francisco, as novas hidrelétricas, enfim. Pelo consumo popular, aumento do salário, Bolsa Família e outros programas sociais de distribuição de renda. Isso estava puxando o crescimento, mas era o investimento que tinha uma taxa superior à média e que puxava o resto da economia. Esse investimento vai cair no final do primeiro governo da Dilma.

Sul21 – Por que cai esse investimento?

LF: Quando o crescimento do salário real começa a ultrapassar o crescimento da produtividade, isso quer dizer que a taxa de lucro média dos empresários está sendo reduzida. E aí os empresários enxergam isso e dizem: ‘Opa, a taxa de lucro que eu vou ganhar no próximo mês vai ser menor que a do mês passado’. Então, ele puxa o freio do gasto e começa a reduzir o seu investimento porque a expectativa é de que a rentabilidade vai cair e eles só investem mais quando a rentabilidade é crescente. Quando a rentabilidade é declinante, o empresariado tende a reduzir investimento. Segundo, claro que o problema do déficit público é um sinal para o empresariado, que é muito conservador, crê no monetarismo mais crasso, que é uma ideologia do século XIX, mas até hoje eles acreditam nessa bobagem. O que aconteceu? Não foi porque a despesa do governo aumentou, mas o governo, para compensar o empresariado, reduziu alguns impostos. Lembra que houve uma série de desonerações para indústria automobilística, sobre a folha de pagamentos, isso, isso e aquilo. Então, além do PIB estar desacelerando, o governo mesmo renunciou algumas receitas que ele teria normalmente. Isso que causou um aumento do déficit, além de que a taxa de juros continuava alta, que é a maior despesa do governo.

Sul21 – Em 2014, ano em que já se anunciava que uma crise vinha pela frente, o déficit fiscal foi de R$ 17,12 bi. Em 2015, quando durante todo o ano houve pacotes-bomba, com a crise política já contaminando a economia, o déficit foi de R$ 115 bi. Em 2016, ano da troca de governo, foi para R$ 154 bi. Em 2017, um ano inteiro de aplicação das medidas econômicas do Temer, foi de R$ 124 bi. Mas a previsão para esse ano já é de R$ 159 bi. Se a desconfiança do mercado estava elevadíssima no início de 2015, como agora, com R$ 159 bi de projeção de déficit, parece que está tudo normal?

LF: Porque o empresariado tem o governo que ele escolheu. Eles não conseguiram eleger o Aécio [Neves] (PSDB) em 2014, mas, com o golpe de 2016 botaram alguém que apresentou antes um programa dos sonhos deles [Ponte para o Futuro].

Sul21 – Por que é o programa dos sonhos? Por que medidas como a reforma trabalhista ajudam a recuperar a taxa de lucro médio?

LF: Exatamente, é um programa voltado exclusivamente para recuperar a taxa de lucro do empresariado. E recuperar a taxa de lucro do pior jeito, que é comprimindo salário e remuneração dos trabalhadores.

Sul21 – Dá para dizer então que o que puxa essa confiança ou desconfiança do mercado é mais a remuneração do lucro do empresariado do que o déficit propriamente dito, uma vez que o déficit segue galopante desde a troca de governo?

LF: Com certeza. A expectativa de rentabilidade é o que fala pela confiança ou desconfiança do empresariado. É isso que preside a decisão. A empresa vai fazer um investimento se ela tem a expectativa de que o lucro vai ser bom. Se não, ela não faz.

Sul21 – O governo fala que estamos em um momento de retomada da economia. O Henrique Meirelles está fazendo campanha dizendo que recuperou a economia.

LF: Isso é uma mentira. A economia está no fundo do poço. Ela só parou de cair porque já bateu no fundo, mas não tem nenhum sinal de que subiu um degrauzinho nos tijolos da parede do poço. Nós estamos completamente estagnados, porque o desemprego continua do mesmo tamanho. Oscila, um mês, a taxa do IBGE cai um pouquinho, no outro mês, sobe um pouquinho, entre 12,5% e 13% sempre. O salário real caiu. Então, tu tem um consumo muito deprimido com esse contingente enorme de desempregados e com o salário médio dos que conseguem continuar trabalhando lá embaixo. Com isso, tu não tem como ter recuperação. E o investimento continua muito baixo. Nos melhores anos Lula-Dilma, bateu no patamar de 20% do PIB de investimento. Agora, está na casa dos 15%. É uma das piores taxas da história do Brasil.

Sul21 – O senhor não confia nas previsões do Banco Central de crescimento de 2,7% do PIB para esse ano?

LF: Não, essa é uma estimativa completamente irreal. O crescimento desse ano, se for o mesmo 1% do ano passado, já vai ser lucro, provavelmente vai ser menos, porque até aquele efeito eleitoral, gasto de governador, prefeito, não tem, porque os governadores e prefeitos estão completamente estrangulados. Ninguém tem dinheiro para fazer nada.

Sul21 – Mas o que sustenta essas previsões, inclusive de até 3% no ano que vem?

LF: Isso é ‘wishful thinking[pensamento desejoso ou desejo, na tradução do inglês], exclusivamente isso. Como é que sai essa projeção? O Banco Central entrevista consultores financeiros de bancos. Eles vão sempre dizer que vai melhorar, eles vão ter sempre uma expectativa de que vai melhorar, porque a política está favorecendo eles. Eu estou dizendo que a taxa de lucros declinou para a indústria, para os serviços e para a agropecuária. Pros bancos, não. Para os bancos continua lá em cima. Por quê? Porque a taxa de juros continua muito alta. Eles têm uma rentabilidade maluca. Toda hora está saindo notícias de recorde de lucros batidos pelo Itaú, pelo Bradesco, BTG Pactual, enfim, inclusive os federais, que voltaram a ter uma política de viés privado dentro deles. O negócio é ter rentabilidade e não dar crédito ou apoiar as políticas públicas.

Sul21 – O senhor falou há pouco da queda na renda das famílias. Qual pode ser a consequência prática disso para a população nos próximos anos?

LF: A continuidade do desemprego, isso é o mais trágico, e um crescimento muito baixo. Existe também outra falácia que é repetida muitas vezes de que só teve crescimento nos governos Lula e Dilma por causa do preço das commodities. Ora, as commodities são 10% da economia brasileira, que não mexem os outros 90%. Isso é falso. Não foi a soja que fez o Brasil crescer 4%, 5% nos melhores anos do período. Foi a produção interna, o consumo interno e o investimento interno, dos serviços e da indústria, não da agropecuária. Tanto que o preço das commodities caiu e a economia se moveu por conta da indústria e dos serviços.

Desde o início do mercantilismo, o capitalismo é dirigido pelo estado, que vai na frente. Foto: Guilherme Santos/Sul21

Sul21 – O consumo interno registrou uma leve alta recente. Isso se deve a algumas medidas pontuais, como a liberação do FTGS, ou pode ser algo sustentável?

LF: Não. Eu acho que tem a ver com isso, e mesmo assim o efeito foi muito pequeno. Até porque, nesse quadro de desemprego, as pessoas sacaram o FGTS para de repente emprestar para o filho que está desempregado ou para pagar uma conta, enfim, para reduzir suas dívidas, porque no processo anterior de otimismo tinha aumentado o crédito ao consumo e o endividamento das famílias. E aí, de repente, alguém da família perdeu o emprego e não dá mais para sustentar o crédito que tinha sido tomado. Como é que vai resolver isso? Bom, apareceu a janelinha do FGTS, tira e paga o crédito. Por isso que os bancos continuam com o lucro lá em cima, porque eles estão recebendo.

Sul21 – Voltando a questão fiscal. Cobrindo o Fórum da Liberdade na última segunda-feira (9), tanto o Ciro Gomes (PDT) quanto o Geraldo Alckmin (PSDB) concordaram que, como o déficit não foi reduzido nos últimos anos, pelo contrário, vai gerar uma situação muito complicada no ano que vem. O senhor avalia isso dessa forma também?

LF: Eu acho que sim. Está tudo em aberto, não se sabe o que vai acontecer no Brasil. Há até um temor sobre a própria realização das eleições, porque nós estamos num golpe continuado e que cada vez se aprofunda mais em termos de restrições, de direitos, de ataques a liberdades. Mas, de qualquer maneira, do ponto de vista da gestão macroeconômica, vai ser um ano complicado. E o governo que entrar no ano que vem, se não tiver a coragem de ser heterodoxo e de manter o déficit, até aumentá-lo, vai fazer a recessão continuar crescendo.

Sul21 – O senhor acha que tem que haver uma retomada das políticas anticiclícas do governo Lula?

LF: Exatamente, tem que ter uma retomada daquelas políticas anticíclicas. Por exemplo, se a gente for olhar o corte de gastos, o déficit está crescendo, mas está havendo um corte do gasto que ajuda a economia. Se congelou o Bolsa Família. Se reduz benefícios do INSS. O salário caiu. O salário mínimo foi reajustado abaixo da inflação. Assim por diante. Então, tudo aquilo que ajudava o mercado interno, esse gasto está diminuindo. Ele está aumentando outro tipo de gasto que não tem nenhum significado econômico, porque esse gasto de emenda parlamentar, isso e aquilo, é pífio.

Sul21 – Dá para fazer uma comparação disso com as ‘pedaladas’? Esses gastos que o governo tem feito para se sustentar são mais ou menos graves?

LF: Do ponto de vista moral, sim. As pedaladas – até o apelido é caricato e não tem nada a ver,- é simplesmente uma administração de cronogramas de pagamento. Isso que foi apelidado de pedaladas, uma coisa absolutamente normal. A Caixa Econômica Federal serve de agente financeiro do Tesouro, então paga o Bolsa Família, o Fundo de Garantia, uma série de outros benefícios para o Tesouro, e o governo vai administrando. Ele administra o quanto ele põe nos bancos com esses pagamentos. Então, na verdade, o que tinha era: ‘O dia do Bolsa Família é X, mas o governo pela sua análise sabe que não é 100% que tira no dia X, então não deposita 100%, deposita 70%, que é o que na média tiram. Ah, daí naquele mês, 80% resolveram tirar, sabe-se lá por que, daí ficou negativo dois, três dias e ele repõe’. Isso é pedalada. Unicamente boa gestão financeira, que virou crime por uma distorção jurídica total e por uma sacanagem do Nardes, esse nosso conterrâneo que lá no Tribunal de Contas da União inventou que isso era crime. Todos os governos fazem isso, fizeram e continuam fazendo.

Sul21 – Como o senhor compara isso com a gestão atual dos gastos do governo?

LF: É uma coisa completamente caótica. Porque tem o Ministério da Fazenda fazendo contingenciamento e o Palácio do Planalto, ao mesmo tempo, aumentando despesas. Claro que muitas das despesas aumentadas são só promessas, nem vão se realizar, depois vai chegar lá e o Temer vai puxar o tapete do cara, dizendo: ‘Ó, não deu, o cara da Fazenda disse que não podia pagar a tua emenda’. Mas ele já conseguiu o voto, dane-se.

Sul21 – Mudando o assunto para as reformas. A situação da Previdência exige que uma reforma seja feita? Essa que o governo propôs é adequada? Teria que ser outra?

LF: Na verdade, o governo já fez uma reforma da Previdência para o mal, porque as desonerações, que na verdade começaram lá com a Dilma com a desoneração da folha de pagamento, isso arrebentou com a receita da Previdência. E, depois da reforma trabalhista, que flexibiliza e terceiriza, também diminui receitas da Previdência. Então, o governo primeiro tirou receitas da Previdência e agora está dizendo: ‘Ó, vai ter déficit no futuro’. Mas, na verdade, a Previdência não tem déficit. Isso também é uma lenda urbana que se criou no Brasil há anos e todo mundo fala. Não tem déficit da Previdência. Existe um orçamento da seguridade social do qual fazem parte a contribuição dos empresários e dos trabalhadores, mas todas as outras contribuições sociais, Cofins, PIS-PASEP, CSLL, Funrural, tudo isso é receita da seguridade social. E essa receita é maior do que a despesa. Continua sendo maior. O que acontece? Tem uma emenda constitucional da DRU (Desvinculação das Receitas da União), que tira 30% de uma parte dessas receitas. Essa é a causa do aparente déficit, mas, se eu botar os 30% de volta, está sobrando dinheiro. Então, começa por aí. Claro que a conta hoje está muito pior, porque houve essas desonerações, então a receita de contribuições de patrões e empregados caiu bastante. O desemprego, ainda por cima, fez aumentar mais ainda. Do outro lado, a despesa foi gerada pelas pessoas que trabalharam há anos e décadas atrás e hoje estão aposentadas. Essa despesa é incomprimível. Eu tenho que dar jeito de ter receita hoje para essa despesa que foi criada pela geração anterior.

Sul21 – Mas não tem que aumentar a idade mínima da geração atual para que daqui a pouco a conta não fique muito pesada no futuro?

LF: Isso sim. É uma coisa que tem que ir se fazendo sempre. O cálculo atuarial implica também em tu ajustar as receitas à tábua de expectativa de vida, que vai mudando ao longo do tempo. A população tem mais serviços de saúde, vive mais, se alimenta melhor, mora em condições menos insalubres, então a expectativa de vida vai crescendo e eu vou ter que adequar o cálculo atuarial da Previdência quanto a isso. Mas isso é uma coisa que vai se fazendo a longo prazo, não se revolve com um projeto de lei que manda para o Congresso de hoje para amanhã, é uma coisa que tem que ser acompanhada por um estudo atuarial sério, por gente que entenda. O INSS tem esse pessoal, tem esses cálculos feitos, é só conversar com os auditores da Previdência. ‘A nossa situação é essa, nossa projeção é que daqui a 20 anos o gasto vai estar em tal lugar’. Eles sabem isso.

Sul21 – Tu diria que a reforma da Previdência hoje é mais uma promessa para mexer com a confiança desse empresariado conservador do que uma mudança que vai ter efeito na prática?

LF: Ela é exclusivamente uma bandeira política, não tem nenhum efeito prático, porque todo efeito na Previdência é de longo prazo. Claro, o Brasil tem um regime previdenciário, que é o majoritário em todo mundo, que a gente chama de regime de distribuição. Contrário, por exemplo, aos EUA, onde o regime é de capitalização. O que é o regime de capitalização? As pessoas vão contribuindo, aquilo fica lá num fundo e quando eu me aposentar vou receber aquilo que tiver naquele fundo. Se o fundo for mal gerido, posso ter uma aposentadoria miserável. No regime de repartição, que é o brasileiro e da maior parte da Europa, não é assim. As pessoas que estão trabalhando sustentam os inativos. Nesse regime, eu tenho que cuidar para que os que estão trabalhando tenham uma renda capaz de gerar a contribuição necessária para os que estão aposentados e para os que vão se aposentar no futuro.

“Do ponto de vista da gestão macroeconômica, vai ser um ano complicado”. Foto: Guilherme Santos/Sul21

Sul21 – Uma confusão que me parece que se faz é sobre as ‘vantagens’ dos servidores públicos. Na maioria dos lugares, os servidores já não podem se aposentar com valores acima do teto do regime geral, não é?

LF: Claro. As tais vantagens dos servidores públicos não são muito diferentes. Começa que o servidor público quando se aposenta não tem fundo de garantia para tirar. Ele só tem a aposentadoria. E já foi feita uma reforma da Previdência do serviço público que igualou ao regime do INSS. Então, um petroleiro da Petrobras que se aposenta acima do teto do INSS, digamos que tivesse um salário de R$ 10 mil, ele pode receber os R$ 10 mil porque, além da contribuição do INSS, fez uma segunda para o fundo Petros que é da Petrobras. Com isso ele complementa e consegue eventualmente chegar perto do último salário dele, mas dependendo se o fundo foi bem administrado ou não. O serviço público todo agora é assim. Só os antigos do regime anterior que continuam recebendo pela lei anterior.

Sul21 – E nisso não pode mexer?

LF: Não pode mexer porque é direito adquirido, é cláusula pétrea da Constituição, mas os novos já estão no novo regime. Ele estão contribuindo um fixo para receber a mesma coisa que o pessoal que está no INSS, e contribuem um extra pros fundos de pensão, que cada ente federal tem que ter, para receber um acréscimo sobre isso no futuro.

Sul21 – Como o senhor vê a questão da reforma tributária. Se diz, por exemplo, que o Brasil taxa muito a circulação de bens e muito pouco os lucros. O que deve ser priorizado numa eventual reforma tributária?

LF: Assim, a estrutura tributária brasileira é muito ruim. Ela é completamente arcaica. O Brasil começou cobrando impostos só sobre o comércio exterior porque era a única atividade econômica que tinha registro. Então, só tinha imposto de importação e exportação até o começo do século XX, quando começaram a ser criados outros impostos, na medida que outras atividades econômicas começaram a ter registro oficial, como o comércio, compra e venda, que lançam nota e podem ser cobrados. Se criou uma estrutura tributária em cima disso. E lá adiante, na segunda metade do século XX, conseguiu se criar uma estrutura de registro de renda pessoal, aí se criou o Imposto de Renda. E o IR até acabou se transformando num imposto importante da União, mas continua havendo um peso muito grande dos impostos sobre gasto, sobre consumo, e isso torna a nossa estrutura tributária muito perversa. A gente tem muito pouco imposto sobre propriedade. Se comparar as alíquotas de propriedade do Brasil com o que é no resto do mundo, tirante o IPTU, que, em geral, as prefeituras, como têm pouca renda, fizeram um esforço de aumentar as alíquotas e manter uma base de cálculo atualizada de tempos em tempos. Mas, fora IPTU, imposto sobre fortunas, o próprio imposto sobre veículos (IPVA), imposto sobre terra, são impostos completamente perversos. O imposto territorial é ridículo no Brasil. Imposto sobre herança é muito baixo também. Nos países desenvolvidos é 40%, 50%. No Brasil, é no máximo 6%, é muito baixo.

Sul21 – A solução seria inverter essa lógica? Taxar menos o comércio e mais a renda?

LF: Sim. E o IR, do jeito que ele funciona hoje, é um imposto que só tributa renda de salário. Quer dizer, o grande pagador de Imposto de Renda no Brasil é a classe média, que é conservadora, que apoiou o golpe, quer ‘Fora Dilma’, quer ‘Viva Moro’ e não sei o que lá, é a maior vítima do Imposto de Renda e continuará sendo assim.

Sul21 – Ela financia a classe mais rica?

LF: Acaba financiando a classe mais rica, porque a classe média paga 27,5% de alíquota e os proprietários de empresa pagam 15%. Quer dizer, a empresa paga 15% e ele não paga nada, porque o lucro distribuído é 0.

Sul21 – Ainda coloca carro, lancha, etc., no nome da empresa.

LF: Põe toda a propriedade dele no nome da empresa, então também não paga imposto de propriedade e o iate, o avião e o helicóptero são isentos de IPVA. Paga o motoboy, esse paga IPVA. O cara do jatinho não paga, não tem IPVA sobre isso, o que é uma coisa absurda, porque o cara que rala trabalhando na motinho tem que pagar IPVA.

Sul21 – Retomando algo que vinhamos falando antes. O Henrique Meirelles defendeu no Fórum da Liberdade que o governo precisa tomar essas medidas de corte de gastos, conter os investimentos públicos nos serviços e programas sociais, porque precisa retomar o crescimento da economia para, aí sim, financiar esses programas. O que é mais ou menos a lógica que ficou consagrada como ‘temos que fazer o bolo crescer para depois repartir’, o inverso da lógica dos governos petistas, que apostavam no crescimento da base para puxar o resto. Essa é uma promessa que pode ser cumprida pelo governo ou o resultado vai ser o aumento da desigualdade?

LF: Primeiro, é péssima economia isso que o Henrique Meirelles falou. Como ele é engenheiro, não é economista, ok, está perdoado, mas, se tivesse feito um curso de economia, eu ia dizer para cassar o registro dele no Conselho Regional de Economia, porque isso está completamente equivocado. Cortar investimento, cortar gasto público vai fazer a economia encolher. É exatamente o contrário que tem que ser feito. Tem que aumentar o gasto público e aumentar os gastos sociais para a economia voltar a crescer, mesmo que isso aumente o déficit. Não tem nenhum problema, porque o Brasil nunca teve dificuldade de financiar o seu déficit. O déficit só é problema se o governo não conseguir financiá-lo. Por exemplo, se o déficit é financiado com dívida externa, aí eu tenho um problema. Mas o déficit é financiado com dívida com os brasileiros, não tem nenhuma dificuldade de ele ser ampliado, nenhuma. Ele é tão ampliável quanto o déficit dos EUA, ou da União Europeia, ou do Japão, porque é uma dívida do governo brasileiro com os seus cidadãos. A Argentina no tempo do Menem criou um déficit que era dívida externa, acabou que o país quebrou. Ao contrário, nós somos credores internacionais, temos centenas de bilhões de dólares em reserva. Quem pode cobrar do governo são os cidadãos brasileiros.

Sul21 – Mas isso não pode chegar num ponto de colapso fiscal?

LF: Não, porque isso é uma coisa muito temporária. Na medida em que o gasto se realiza em aumento da renda, o déficit diminui logo em seguida. O Lula lá em 2003 pegou com déficit. A economia começou a crescer e o déficit sumiu. O déficit sumiu pelo crescimento, não pela austeridade. A austeridade que ele fez foi pura propaganda política, só para ter adesão do empresariado e a confiança do empresariado.

Sul21 – A política econômica da vida real, da prática, o quanto ela tem de ciência, de técnica, e quanto tem de confiança, de misticismo, em volta dela?

LF: Tem um economista americano, o Paul Krugman, que brinca assim: ‘Os meus colegas adoram recomendar para os governos austeridade, controle de gastos, porque aí vai se conseguir confiança, o setor privado vai investir e a economia vai voltar a crescer’. E ele diz: ‘Isso é a fada da confiança’. Isso é um conto de fadas, não é verdade. O governo é que tem que sair na frente gastando e o empresariado vai atrás.

Sul21 – Falando em austeridade. Como o senhor avalia as políticas do governo Sartori?

LF: Bom, o governo Sartori é um desastre absoluto. Depois do Britto, eu não imaginava que ia ter um governo tão ruim no Rio Grande do Sul. Esse é ainda pior que o do Britto. Ele só tem uma vantagem porque no Britto tinha corrupção e agora, até onde se sabe, não tem ou a que tem é muito pequena. Mas é um governo que não tem nenhuma política, nenhum projeto, não tem nada. Não tinha programa na eleição, o cara se elegeu meio por acaso em cima de desconfiança, má vontade.

Sul21 – Qual é a consequência dessa política do governo Sartori de austeridade?

LF: O resultado está aí. A nossa economia está tão ruim ou pior que a brasileira. Não temos nenhum resultado importante. A nossa taxa de desemprego está tão alta quanto, o crescimento está ruim, as exportações vão bem quando o preço da soja sobe, porque é a única coisa que a gente está exportando, já não exporta mais sapato, exporta um pouquinho de automóvel para a Argentina e um pouquinho de petroquímico também. Aí vai se terminando, nós reprimarizamos muito a nossa economia. O RS era uma economia que, há 25 anos, 40% do PIB era indústria. A gente tinha uma economia a la China, e hoje a nossa economia tá bem pequenininha.

Sul21 – Como se resgata isso?

LF: Um governo estadual tem algumas limitações, mas também tem instrumentos que pode acionar. O segundo grande pecado desse governo é que a única proposta que ele tem é destruir alguns dos instrumentos mais importantes que o Estado tem para conseguir mexer na economia. Ele quer privatizar as estatais, ele está destruindo a inteligência do Estado com o fechamento de todas as fundações.

Sul21 – Nesse ponto. Saiu recentemente a notícia de que o governo vai gastar cerca de R$ 3,3 milhões para contratar a Fipe para fazer o levantamento do PIB. 

LF: Isso é uma fraude, porque a Fipe não tem nenhuma condição de calcular o PIB e o índice de desenvolvimento socioeconômico (Idese). Sem o PIB e sem o Idese, os prefeitos não vão saber quanto ICMS têm para receber e a secretaria da Fazenda não sabe como distribuir o ICMS do Fundo de Participação dos Municípios, porque ela precisa desse número. A Fipe não vai fazer, primeiro porque ela é uma instituição privada e para o cálculo desses indicadores, do PIB e do Idese, precisa acessar a base de micro dados do IBGE, que é coberta por sigilo estatístico. E o IBGE nunca vai abrir micro dados para uma instituição privada. Ele não pode, por lei. O que a Fipe vai fazer é um arremedo, um número costurado sei lá de que jeito, e vai mentir que aquilo é o PIB do RS. Não vai ser nunca. O que o governo comprou por R$ 3 milhões é uma fraude estatística completa.

Sul21 – Além da FEE, não vai ser prejudicial para economia o fim das fundações que emitiam laudos técnicos, como a Cientec?

LF: Sim. Ali estava e está a inteligência do serviço público. O pessoal da Secretaria da Saúde está lá na ponta distribuindo vacina, quem pensa estava na Fepps ou na Escola de Saúde Pública, que são as instituições que têm uma autonomia, por isso, em geral, tem o formato de fundação, para poder pensar, fazer estudos mais de longo prazo e poder municiar o pessoal da ponta com planos e projetos consistentes, com base científica e tal. A mesma coisa a FEE. A Fazenda não sabe como agir se a FEE não disser para eles. A FEE faz estudos, por exemplo, sobre a eficiência dos gastos. Apresenta os indicadores para a Fazenda procurar onde a arrecadação está incompatível com o PIB ou onde o gasto está aplicado em excesso, onde está faltando. Sem essas fundações, ele destrói a inteligência do Estado. Como se vai governar um Estado burro, obtuso, como aquele cavalo de antolhos?

Sul21 – As políticas de austeridade, a nível nacional e estadual, atingem muito o setor de pesquisa, com cortes em fundações e nas universidades. Temos visto pesquisadores falarem que está ocorrendo uma verdadeira tragédia na pesquisa do Brasil e talvez especialmente no RS. Quais as consequências para o futuro desse ajuste tão forte na pesquisa?

LF: Olha, vai ser uma desgraça. Por que o governador que for eleito na eleição desse ano, no ano que vem vai ter começar a reconstruir o Estado, senão ele não governa. Sem inteligência não tem como governar. O que explica? Principalmente aqui no RS, onde o empresariado é muito ruim, muito medíocre, atrasado, muito inculto mesmo, eles acham que sabem tudo, contratam meia dúzia de picaretas para dizer o que eles estão pensando, porque isso não é consultoria, o consultor aponta o que está errado, onde está a má gestão. Mas, não, eles têm o consultor sabujo que vai dizer ‘Tu é o máximo, tu é um grande líder’, o cara se contenta com isso e acha que, se a empresa dele está funcionando bem ou mal, com sabujice, que o governo tem que ser a mesma coisa. Eles pegam meia dúzia de assessores na Fiergs, na Federasul, nessas entidades, e dizem: ‘Esse pessoal me ensinou tudo’. Não, eles estão bebendo da FEE, da Fepam, da Fepps, dessas instituições de pesquisa do Estado. O dia que elas desaparecerem, os consultores não vão ter o que dizer para eles. Mas eles são completamente cegos, medíocres, não enxergam um palmo na frente do nariz. É uma coisa impressionante.

Sul21 – Temos uma grande parte do empresariado que depende, de certa forma, da usurpação do Estado, que sempre cobrou da iniciativa privada uma taxa de juros abaixo do que o mercado pratica, sempre deu benefícios fiscais e crédito facilitado.  Ao mesmo tempo, vemos nesses eventos como o Fórum da Liberdade, que são a síntese do pensamento desse empresariado, uma defesa da destruição do BNDES, a eliminação de qualquer tipo de interferência estatal na economia e uma ‘deificação’ do setor privado. Como pode essas duas coisas coincidirem? 

LF: Isso é uma coisa interessante. Como eu posso interpretar isso do ponto de vista sociológico, esses empresários do setor produtivo lá na ponta, na verdade são ventríloquos dos grandes poderosos do capital financeiro. Pro capital financeiro, pouco importa produção, emprego e tal. Eles conseguem emprestar dinheiro para alguém e receber juros. Então, eles não estão preocupados se a economia está produzindo, se o PIB está crescendo ou não, eles ganham sempre. Tanto que, nessa brutal crise, que é a maior da história do Brasil, os lucros dos bancos continuam lá em cima. Tá todo mundo mal, o salário está ruim, os lucros do setor produtivo estão baixos, mas o dos bancos continua crescendo. E esses empresários lá da ponta compram a ideologia dos banqueiros como se fosse a mesma deles, como se eles tivessem o mesmo interesse do banqueiro. Não, o interesse deles deveria ser empregar mais gente, produzir mais e vender mais. Mas, não, eles compram a política que interessa ao sistema financeiro. Como é que o sistema financeiro funciona hoje? Ele é um sistema completamente parasitário, porque deveria funcionar como um azeitador da roda do crescimento capitalista. Tem um setor que quer crescer, mas não tem crédito? Vai lá o sistema financeiro, empresta para ele de um outro setor que tem sobra, e ele vai crescer. Hoje o setor financeiro ele é parasita principalmente da União. Quarenta e cinco por cento do gasto da União é com o setor financeiro, o que não aparece nessa medida de déficit público, porque eles tiram o gasto financeiro do déficit, uma conta que só no Brasil se faz. Se eu botar o gasto financeiro na conta do setor público, o déficit vai ser de centenas de bilhões, não de R$ 150 bi ou R$ 130, como se está estimando, vai ser muito mais. Bota aí 7% do PIB de gasto com a dívida pública no Brasil, que é a média dos últimos anos. É uma coisa descomunal, não tem isso em nenhum lugar do mundo. O Brasil é o paraíso do sistema financeiro. E é interessante isso, eles colonizaram a cabeça de todo o empresariado. Até o cara lá do arroz, da soja, é a favor de privatização. Aí de repente diz: ‘Opa, mas eu preciso de crédito do Banco do Brasil para a minha safra’. Aí ele quer o Banco do Brasil, mas no outro dia estava lá numa reunião discursando pelo estado mínimo e tal.

“Pro capital financeiro, pouca importa produção, emprego e tal”. Foto: Guilherme Santos/Sul21

Sul21 – Mas o que explica essa aliança do setor produtivo com o setor financeiro?

LF: Eu acho que é uma questão de hegemonia cultural-ideológica. Durante muito tempo, o setor financeiro brasileiro se articulou, se planejou e executou um plano de hegemonizar toda a classe empresarial brasileira. Isso vem lá dos anos 70, ainda durante a ditadura, quando foram se criando os grandes conglomerados bancários, o Bradesco, Itaú, Nacional, etc. Eles começaram a formar quadros, principalmente entre os meus colegas economistas, a mandar o pessoal estudar nos EUA, para comprar o neoliberalismo dos EUA nos anos 80 e 90. Na década de 90, eles assumiram a liderança do empresariado brasileiro. Eu me lembro nos anos 90, um líder empresarial da época, o Eugênio Staub, tinha uma empresa de eletrônicos [a Gradiente]. Veio a abertura da economia, a empresa dele foi engolida pela Samsung e tal. Ele tem uma frase que diz assim: ‘Eu não consigo entender os meus colegas empresários, eles estão todos subindo o cadafalso da abertura comercial e rezando orações para o livre mercado’. É uma coisa completamente contraditória, eles têm um discurso que é contra os próprios interesses. Mas, enfim, o Marx já dizia que a ideologia é um véu que esconde a realidade. Para o setor financeiro isso não é nenhum véu, isso objetivamente aumenta os lucros dele. O governo cortar gastos, manter a arrecadação, vai ter mais para pagar juros para eles. O Banco Central já anunciou que não baixa a taxa de juros a menos de 6%. Mas se a inflação é 2%, tu podia ter uma taxa de juros de 2,5% ou até de 2%, porque nos EUA a inflação é 2% e a taxa de juros é 0,15%, 0,20%. No Japão, a inflação é 1% e a taxa de juro é 0%. Na Europa, a inflação é dois e pouco e a taxa de juros é 0,15%, 0,10%. O Brasil tem a taxa de juro real mais alta do mundo, mas aí o Banco Central só fala na nominal para não parecer que é uma aberração. ‘É a menor da história, de 6%’. Mas a inflação média da história recente do Brasil, depois do Real, é de 6%. Se a inflação fosse de 6%, nós estaríamos com uma taxa de juros igual a do mundo. Mas a taxa real é de 4%. Se a inflação está em 2%, a taxa real, que é a diferença, é 4%. É uma taxa explosiva, não tem em nenhum lugar do mundo uma taxa tão alta.

Sul21 – Como é que tu vê essa volta do crescimento do pensamento liberal radical, que tem seduzido muitos jovens nas universidades, que prega a destruição dos serviços públicos, acabar com educação e saúde públicas, acabar com qualquer participação do Estado na economia?

LF: Eu diria assim, lá atrás na década de 70, quando a ditadura chilena foi a pioneira do neoliberalismo no mundo, porque antes da Thatcher na Inglaterra em 79, tinha o Pinochet desde 1973 no Chile aplicando uma política de acordo com a orientação do Milton Friedman, o pessoal lá da universidade de Chicago. Aquele grupo que era considerado uma seita esdrúxula nos meios econômicos do mundo inteiro e, de repente, ganharam o empresariado. As lideranças do sistema financeiro foram se empoderando e aquilo era exatamente o tipo de ideia que servia para os seus interesses, e foram difundindo e fazendo crescer isso. Mas, naquela época, se criou uma expressão, inclusive por economistas americanos, que no Chile estava se aplicando um modelo original, o fascismo de mercado. Porque é um governo autoritário com um programa econômico ultraliberal, de fim do estado. O estado é forte para reprimir e oprimir, mas se retira completamente da economia. Eu acho que um pouco é essa ideologia que está aparecendo no Brasil em MBLs, nesse tipo de coisa, uma espécie de fascismo de mercado. ‘Nós queremos um estado forte para ser duro, repressor, combater o PT, a corrupção, não sei o que lá, botar ordem, acabar com a violência, com o crime, reprimir os bandidos, então queremos um estado poderoso. Mas que não interfira na economia, deixe o mercado fazer o que bem entenda’. Ora, a economia de mercado é inviável do ponto de vista social.

Sul21 – Por quê?

LF: Um economista contemporâneo do Keynes, o austríaco Karl Polanyi, que acabou indo para os EUA quando o Hitler entrou na Áustria, tinha uma figura muito bonita, que o “mercado é um moinho satânico que tritura a sociedade’. Qual era a tese dele? Existem economias naturais e as não naturais. A economia natural é aquela em que a sociedade se organiza e trabalha para produzir o suficiente para suprir as suas necessidades. Todas as economias da história do mundo são assim, menos o capitalismo. Porque, no capitalismo, as necessidades não são visíveis, não são conhecidas por quem decide o quanto produzir. Lá no Egito dos faraós, as pessoas sabiam quanto de trigo tinham que plantar na margem do Nilo e o faraó convocava gente excedente para trabalhar na construção da pirâmide para ele. Então, era trabalho com um objetivo conhecido, trabalhava para produzir o trigo que a comunidade precisava, trabalhava para comprar pedra para a pirâmide do faraó. Ou vou cortar pedra para fazer a Grande Muralha da China e vou plantar o arroz que a comunidade precisa. Na idade média, no tempo feudal, todas as economias eram naturais, na classificação do Polanyi. A produção era planejada tendo um conhecimento da necessidade. O índio vai pescar, sabe que precisa de 10 peixes para alimentar a aldeia. Quando chegou no décimo peixe, volta para casa, mesmo que pudesse ficar e pegar mais 20. Não vai pegar porque seria jogar trabalho fora, porque não vai consumir os outros 20. Na economia capitalista, o cara que vai produzir só tem a informação do preço. Produz mais se o preço tá bom, produz menos se o preço tá ruim. E da onde vem o preço? Da vontade de gastar das pessoas que têm dinheiro, que não são todos na sociedade. Aqueles que não têm dinheiro, a necessidade deles é invisível, não existe. Por isso que ele dizia que vai haver sempre um déficit entre produção e necessidade, porque uma parte da sociedade é pobre demais e não tem dinheiro, portanto não pode manifestar sua necessidade. Aí ele dizia, por isso que é imprescindível o estado, porque só o estado pode conhecer cientificamente essa necessidade, porque ele tem que ter inteligência, tem que ter as fundações, as suas instituições de pesquisa, as suas universidades, para saber o que a sociedade precisa. Dai dizer: ‘Ó, vamos criar um programa Bolsa Família para a gente dar dinheiro para esses caras poder consumir também, senão eles não vão consumir e vão ficar com necessidade’. A ideia dele era essa.

Ele tirou essa ideia estudando a história do capitalismo na Inglaterra. Quando o feudalismo veio abaixo, o povo começou a sobrar do campo e vir para as estradas vagabundear, mendigar, assaltar, roubar e tal, foi uma grande era de marginalidade na Inglaterra. Só não foi pior porque o rei tinha uma cabeça feudal e achava que a espada dele tinha que proteger o povo. Aí ele deu ordem para todos duques, barões, condes e tal: ‘Ó, todo mundo tem que arranjar um jeito de proteger os miseráveis que estão perambulando pelas estradas’. Aí se criou um conjunto de leis para proteger a pobreza que durou até o século XIX, quando os economistas liberais disseram: ‘Não, isso é um absurdo, porque está sustentando vagabundo, tem que mandar todo mundo trabalhar’. Aboliram as Leis dos Pobres nos anos de 1830. Em 1850, elas estavam voltando porque a panela de pressão social começou a ferver de novo.

Sul21 – Então o senhor acha que essas promessas de que é preciso liberalizar a economia para gerar crescimento não funcionam na prática?

LF: É, como diz o Paul Krugman, isso é conto de fadas, não vai acontecer. Desde o início do mercantilismo, o capitalismo é dirigido pelo estado, que vai na frente. O Infante Dom Henrique criou a Escola de Sagres e a partir dali o Império Português virou um império comercial-capitalista. Mas foi o estado que puxou tudo. Isabel e Fernando de Castela unificaram e organizaram a Espanha, fizeram um poderoso estado e a Espanha virou um império comercial-capitalista. Os holandeses fizeram a mesma coisa e os ingleses também. Desde o Henrique VIII, Elizabeth I e tal, construíram um estado e depois o país se tornou um império capitalista-comercial. Nos EUA, foi a mesma coisa. Até a guerra da secessão, o estado americano era frágil, o capitalismo não deslanchava. Aí, depois da guerra, a união ficou poderosa, tinha um exército, tinha uma enorme dívida, tinha uma grande capacidade de investimento, e o capitalismo americano deslanchou.

Sul21 – Para fechar, como o senhor vê as perspectivas para as economias do Brasil e do RS?

LF: Eu acho que o ano que vem ainda vai ser um ano de crescimento zero. O desemprego vai continuar. Mas está tudo imponderável. Até ontem, eu estava conversando com um colega da Ciência Política que dizia que nem sabe se vai ter eleições ou não, porque está tudo em aberto. Agora, a economia tem uma inércia maior que a da política, que daqui a pouco explode, tem um golpe e muda tudo de uma hora para outra. A economia tem uma inércia grande e ela é de crise ainda, de estagnação. Pode ser que a gente não tenha uma taxa negativa no ano que vem, mas vai ficar parada. Esse ano está precificado em quase zero, porque tinha uma expectativa de que deu uma melhoradinha no final do ano passado, chegou a 1%, mas, na verdade, esse 1% foi só a safra agrícola. A indústria e os serviços foi negativo ou zero. Como a safra agrícola deu um pulo, foi 11%, aí segurou o 1%. Esse ano não vai dar a mesma taxa na agricultura, porque a safra do ano passado foi muito boa. Então tende a taxa a ser zero de novo.

Sul21 – O senhor não vê melhora na indústria e nos serviços?

LF: Não vejo nada. Claro que sempre tem umas notícias otimistas. ‘A Páscoa desse ano foi 3% melhor que a do ano passado’. Mas esse é um indicador bruto, feito por algum consultor da indústria que pegou vendas do ano passado, comparou com as vendas desse ano e deflacionou. Mas o indicador mais sério tem que fazer o cálculo do produto, quantas pessoas empregaram, é um número muito mais complexo do que só vendas contra vendas.


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