Entrevistas|z_Areazero
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13 de novembro de 2017
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10:11

Para enfrentar problema habitacional, é preciso combater analfabetismo urbanístico, defende Ermínia Maricato

Por
Luís Gomes
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Professora Ermínia Maricato durante evento do Projeto Brasil Cidades, em Porto Alegre | Foto: Divulgação/Caroline Jardine

Luís Eduardo Gomes

Professora aposentada pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo e uma das maiores especialistas em habitação e no tema da reforma urbana no país, Ermínia Maricato esteve em Porto Alegre na última semana participando de debates sobre o assunto e conversou com o Sul21 por telefone. Entre outros questionamentos, respondeu à indagação: É possível pensar em reforma urbana neste momento no Brasil? Qual seria o modelo a ser adotado?

Com passagens pela prefeitura de São Paulo, onde foi secretária de Habitação e Desenvolvimento Urbano (1989-1992), e pelo governo federal, onde foi Secretária Executiva do Ministério das Cidades (2003- 2005), cuja proposta de criação se deu sob sua coordenação, Maricato afirma que um dos primeiros passos é combater o analfabetismo urbanístico – expressão que costuma usar em suas palestras – da população, o desconhecimento de uma realidade em que as grandes cidades contam com grandes parcelas da população morando em situação irregular, o que traz consequências graves e altos custos não só para a área da ocupação, mas também para saúde, educação, segurança, saneamento básico, etc. “A gente discute como se o mercado desse conta de produzir a cidade, como se a cidade fosse representada pelos bairros de classe média e classe alta”, diz.

Para a professora, não há como negar a realidade de que, mesmo o programa de maior impacto de construção de unidades habitacionais já feito no Brasil, o Minha Casa, Minha Vida, teve resultados negativos, como a explosão nos preços dos imóveis e aluguéis e a expulsão das camadas mais pobres cada vez mais para a periferia das cidades. Apesar disso, Maricato se diz confiante de que é possível sim pensar em uma reforma urbana e mesmo que já é possível ver sementes de um novo modelo de cidade germinando em movimentos sociais de periferia, de mulheres, de negros, que podem dar frutos, se não num futuro próximo, a médio prazo.

Sul21 – O que é o analfabetismo urbanístico e quais as consequências dele?

Ermínia Maricato: A nossa sociedade constrói uma representação ideológica da cidade. O que é isso? É uma representação alienada e falsa. Coloca-se uma parte da cidade como se fosse o todo, como se fosse ‘a cidade’. Essa representação dá a entender que a população que mora ilegalmente, irregularmente, na não-cidade, como eu chamo, a cidade desurbanizada, é uma minoria, é pouca gente, e não é. Frequentemente, nós temos metrópoles em que a população que mora em casas auto-construídas, sem infraestrutura urbana, fora completamente da legislação urbanística, essa população às vezes é a maior parte da cidade e isso não é conhecido. Só na metrópole de São Paulo, temos 1 milhão de pessoas morando em área de proteção dos mananciais. É a região produtora da água da cidade. Existem leis federais, estaduais e municipais que não permitem a ocupação, mas acontece que essa população não tem alternativa, porque ela não consegue entrar no mercado e não é assistida pelas políticas públicas. Em algumas cidades, isso chega a 70% da população. A gente discute como se o mercado desse conta de produzir a cidade, como se a cidade fosse representada pelos bairros de classe média e classe alta. Então, a ideia é trazer a realidade da cidade, enquanto os veículos de comunicação do mainstream são os maiores divulgadores dessa representação falsa da cidade.

Sul21 – No ano passado, publicamos no Sul21 uma série de matérias sobre saneamento básico e tentamos descobrir o número de pessoas que moram em áreas irregulares, em áreas de mananciais em Porto Alegre, e não existe esse número. Não há levantamento oficial definitivo sobre isso.

EM: Mas pega os dados de coleta domiciliar de lixo, você vai chegar à conclusão de que o serviço é muito bom e quase universal. Você percebe, saindo de Porto Alegre, em qualquer cidade do Brasil, o que tem de lixo que não é coletado. Então, o analfabetismo urbanístico diz respeito a isso mesmo. A gente não conhece as nossas cidades. Fica muito fácil para a elite manter essa desigualdade escandalosa porque é como se os que moram mal, ilegalmente, por não terem alternativa, compulsoriamente ilegais – como eu costumo dizer -, fossem a minoria, como se isso fosse um apêndice, e não é. Se eu pegar a questão do esgoto, tem cidades que até, talvez seja o caso de Porto Alegre, a maior parte do esgoto seja coletado, mas o que é coletado não é tratado, na maior parte.

Sul21 – Também tem o problema de que consideram-se para a universalização do tratamento somente as áreas legais. Então, mesmo que se chegasse a 100%, milhares de pessoas não estariam assistidas.

EM: Acho que foi no final da década de 80 que mostrava que 25% da cidade de Porto Alegre era ilegal, isso para o município, não estou falando da região metropolitana, que é muito mais, onde você tem municípios dormitórios que chegam a 70%, a 80% de ilegalidade. Porque a legislação também é muito detalhista. Você tem lei de parcelamento do solo, lei de zoneamento, código de obras e edificações, posturas do plano diretor, legislação ambiental, quer dizer, é muito difícil que a população pobre consiga se inserir e fazer algo dentro das normas. A lei é decorrência de uma sociedade patrimonialista, que tem um discurso distante da sociedade. Mas o problema central é que o mercado é restrito. É muito importante a gente apontar isso, é o mercado que restringe, que não chega nem na classe média, se eu considerar que quem ganha 5, 6 salários mínimos é classe média no Brasil. Por que o Minha Casa, Minha Vida deu subsídio para quem ganhava até 6 salários mínimos, porque essas famílias não conseguem entrar no mercado. E atualmente o mercado está dando ordens. O secretário das subprefeituras de São Paulo é o vice-presidente de uma incorporadora.

Falta de saneamento básico anda lado a lado da questão da moradia irregular no Brasil | Foto: Caroline Ferraz/Sul21

Sul21 – A senhora costuma falar que a cidade é palco da luta de classes. Mas essa luta já não está ganha ou sendo ganha de uma maneira muito desproporcional pelas forças do mercado?

EM: Disso não há a menor dúvida. Se você pegar todos os dados relativos ao mercado imobiliário, nós temos um boom entre 2009 e 2014. Foi um boom que teve tudo a ver com a retomada, pelo governo federal, do investimento em obras na cidade. A política habitacional e urbana passou a ser um monte de obras, algumas mega obras, como foi o caso do PAC da Mobilidade, responsável por obras como o metrô em Salvador, no Rio de Janeiro, VLT em Cuiabá, enfim. Tudo isso foi em consonância com os mega eventos. Houve a produção de 4 milhões de unidades habitacionais. Nunca antes na história desse país se fez tanta moradia em tão pouco tempo, porém, a localização dessas moradias é uma coisa que também faz parte do analfabetismo urbanístico. Não se percebeu que, quando você põe conjuntos habitacionais fora da cidade, você causa uma desorganização no espaço urbano que é muito maléfica. Eu estou andando pelo Brasil inteiro e, especialmente nas cidades de porte médio, os empreendimentos do MCMV estão colocados a longas distâncias do tecido urbano consolidado.

Sul21 – Aqui em Porto Alegre os conjuntos são bem longe do Centro.

EM: O que isso significa? Que você tem que levar água, tem que levar esgoto, tem que levar iluminação pública, além da energia, tem que levar coleta do lixo. Eu vi em muitas cidades do Brasil o caminhão de lixo atravessando fazendas, áreas imensas desocupadas para ir fazer a coleta de lixo. Você depois tem que levar escola, equipamento de saúde. Tudo isso é caro para a coletividade. A prefeitura está gastando nisso em vez de gastar racionalmente em uma cidade compacta, que, o urbanismo internacional hoje concorda, é a melhor coisa. Uma cidade onde você não tem vazios ociosos. A partir do MCMV, as nossas cidades explodiram e estão criando aquilo que a gente chama de cidades dispersas por excelência, uma cidade cara, absolutamente improdutiva, irracional, especialmente porque, se você olhar os dados da ANTP [Associação Nacional de Transportes Públicos], as viagens aumentaram em tempo de trajeto. Então, todo mundo está gastando mais no trânsito. As viagens estão mais longas, isso já há doutorados provando, só por causa do boom imobiliário desregulado. Desregulado porque a política de localização, fundiária e imobiliária, foi do jeito que o diabo gosta. Eu vi conjuntos do MCMV que o empreendedor tinha uma fazenda e construiu lá porque era mais barato. A Caixa Econômica Federal, eu participei disso, impedia que o conjunto fosse feito fora da área urbana ou de expansão urbana. Quem é que define o que é isso? A câmara municipal. O que as câmaras fizeram nesse país inteiro? Estenderam, pura e simplesmente, o perímetro urbano, colocando dentro da cidade propriedades agrícolas. Eu tenho fotografias que mostro de conjuntos habitacionais com vacas pastando ao lado. Então, numa canetada, a câmara municipal desestrutura completamente a possibilidade de você conduzir uma cidade de forma mais racional.

Sul21 – Aí tu crias o conjunto habitacional e aumentas os problemas.

EM: Aumenta. Claro que com quatro milhões de moradias muito subsidiadas, porque nunca houve tanto subsídio para pessoas de baixa renda, as pessoas estão felizes. Eu vi isso, gente morando no fim do mundo, mas que deixou o aluguel. O que aconteceu com o aluguel e com o preço da moradia no boom imobiliário: as pesquisas estão mostrando que subiram. Por que subiu? Por causa da convicção liberal de que você não pode interferir nesse mercado.

Sul21 – Como essa segregação espacial leva à explosão do preço do solo e, consequentemente, a mais segregação?

EM: Essa segregação já está estudada e está comprovada em teses e dissertações. A população pobre foi jogada para a periferia da periferia, não apenas pelos conjuntos habitacionais que não resolveram todos os problemas do Brasil, porque os problemas são estruturais, e vão existir enquanto a gente não aplicar a função social da cidade. Não é falta de lei, não é falta de Plano Diretor, é isso que tenho dito. Toda as cidades do Brasil têm plano. Nós temos o Estatuto das Cidades, que é uma lei invejada no mundo todo, temos a função social na constituição, mas vê se o judiciário conhece. O judiciário, na sua maior parte, desconhece a legislação urbanística. Desconhece. É como se a cidade pudesse funcionar tendo a propriedade privada defendida de forma absoluta. A cidade é uma construção social, não pode ser a soma de propriedades individuais desreguladas. Isso ai não existe na lei. Isso é muito importante que se diga, nós conseguimos uma legislação avançada no Brasil, mas ela não é aplicada. É o reino da especulação imobiliária. O que você tem de prédios ociosos nos centros das cidades, eles são ocupados e nós temos despejos violentos. É raro a gente ter juiz com sensibilidade para entender a cidade como uma construção social, que a propriedade privada precisa de regulação. Você tem um conceito de propriedade privada que é escandaloso. Eu costumo dizer, lá em São Paulo, que tem um milhão de pessoas morando em área de proteção dos mananciais, que até aí ninguém se incomoda. Agora, quando um prédio abandonado no centro, que deve milhões de IPTU, que está há 10 anos desocupado, é ocupado, aí é uma comoção, que é o que nós estamos assistindo atualmente.

Mas eu queria falar sobre a pergunta que você trouxe a respeito do preço dos alugueis e dos imóveis. A habitação é uma mercadoria especial, não é como qualquer outra, porque ela é ligada a um pedaço de chão que tem preço diferenciado. O pedaço de chão que fica num bairro que tem tudo, toda a infraestrutura, emprego próximo, comércio, hospitais, água, esgoto, drenagem, arborização, tudo isso faz o preço. Então, você tem uma disputa também pelos investimentos, que também acrescentam valorização aos imóveis. Pega o metrô que foi construído no Rio de Janeiro, que é um escândalo, a população do RJ tem uma péssima condição de mobilidade e o metrô vai da Barra, que é a nossa Miami brasileira, para o aeroporto. É assim que se investe dinheiro nas nossas cidades, de forma absolutamente regressiva. A habitação é uma mercadoria diferente de roupa, sapato, móveis, até mesmo do automóvel, que, quanto mais você produz essas mercadorias convencionais, mais o preço baixa. Habitação não é assim. Quanto mais você produz, se você não tiver uma regulação do mercado e da terra urbanizada, especialmente, ela não baixa o preço. O que aconteceu nesse boom imobiliário foi uma explosão de preço. Tem um número da revista Exame que fala na maior alta do mundo. Eu não sei porque não comparei as altas no mundo inteiro. Mas o que aconteceu com os alugueis? Se eu medir o aumento dos preços dos imóveis, temos várias pesquisas no Brasil sobre o aumento do preço do m², o aumento do preço dos alugueis, isso foi muito além do aumento do IPCA, do aumento do salários, mesmo considerando que o salário aumentou razoavelmente bem, acima da inflação, durante o período Lula e Dilma. Aí o que acontece? Você tem uma produção enorme. Eu insisto, fiz meu doutorado sobre o BNH [Banco Nacional de Habitação] do regime militar e se construiu muito na década de 70, pois nesses cinco anos, entre 2009 e 2014, se construiu muito mais do que em qualquer momento desse país. Justamente pela falta de regulação. É muito dinheiro jogado num mercado do jeito que o diabo gosta, o que incidiu num aumento muito grande de terrenos e imóveis. É uma questão muito complexa a regulação desse mercado. Tem gente que você fala em controle e começa a se arrepiar, mas se eu estou considerando espaços onde milhões de pessoas moram, circulam, produzem esgoto, consomem água, é necessária a regulação desse organismo. Isso é absolutamente óbvio, mas o que aconteceu foi o contrário. Várias cidades brasileiras flexibilizaram a legislação para aceitar torres. Eu tenho andando, mas cheguei em Blumenau e falei nossa, tem uma verticalização precoce. Estava em Cuiabá na semana passada, é escandaloso. Quer dizer, o mercado imobiliário vai abrindo fronteiras. Ali [em Cuiabá] ele está construindo uma nova centralidade, que traz investimento público e privado. Dali a pouco o mercado escolhe outra centralidade e forma um lobby. Tem dois americanos, Logan e Molotch, que construíram o conceito de máquina do crescimento. Você tem empreiteiras, incorporadoras imobiliárias, capital financeiro imobiliário, proprietários de terra que, em consonância com o financiamento de campanha, acabam adequando investimentos, legislação e a própria zeladoria urbana, que é varreção de rua, poda de árvores, sinalização viária, drenagem das ruas, tudo isso também custa e existe uma super diferença entre a zeladoria que se faz em certos bairros. Então, se isso não é luta de classes, eu não sei o que é. Não sei se vou ser chamada de radical, mas é escandalosamente injusta a distribuição dos recursos públicos.

Analfabetismo urbanístico é um dos temas trabalhados pela professora, que já atuou na prefeitura de São Paulo e no governo federal | Foto: Divulgação/Caroline Jardine

Sul21 – Quando a gente fala de modelo de cidade, muitas pessoas não se dão conta das consequências dessa segregação em outras áreas, como saúde, educação, segurança pública. Esse modelo que temos de expulsão dos pobres cada vez mais para a periferia da periferia, de explosão dos valores do aluguel, que consequência traz para essas outras áreas?

EM: É um equívoco enxergar a habitação de forma isolada. Você não passa 24 horas dentro da sua casa, tem de acessar o trabalho, a escola, o abastecimento. Então, a localização da casa dentro da cidade é fundamental em função justamente desses atributos todos. O que nós estamos vendo? Dados sobre homicídio e violência, feminicídio, dados sobre localização da moradia da população preta e parda, uma das coisas que eu tenho dito é que a senzala urbana existe e eu provo isso cientificamente por meio de mapas construídos a partir de dados do IBGE. Em São Paulo, na mesma cidade, você pega o fundão da zona leste, Itaquera, expectativa de vida 56 anos. No Jardim Paulista, que é um dos m² mais caros de São Paulo, expectativa de vida é quase 80 anos. Então, na mesma cidade, décadas separam o que uma pessoa vai viver. Claro que, lá em Itaquera, o genocídio da população jovem e negra impacta a média, mas você tem também o número de hospitais, de leitos hospitalares, a possibilidade da pessoa chegar rapidamente num pronto socorro, dela fazer um exame de saúde, a atuação da polícia. Recentemente, um capitão da Polícia Militar de São Paulo falou que é óbvio que eles agem diferentemente na periferia e no Jardim Paulista. Coitado, foi massacrado, mas ele sabe o que custa a ele se cometer um equívoco no Jardim Paulista, porque ali ele está tratando com o ‘sabe com quem você está falando?’, com a elite. Qualquer policial sabe que tem uma diferença bárbara.

Sul21 – Qual tipo de reforma urbana você defende que seja feito para sairmos desse modelo de cidade para outro, que seja mais humanamente sustentável?

EM: O Brasil discutiu reformas no final dos anos 50, início dos anos 60. Era um período em que, na América Latina e no Brasil, se discutia muito saúde, educação, reforma agrária. A gente tinha o maravilhoso e mundialmente citado Paulo Freire, movimentos sociais muito fortes, o que parecia que ia levar o país para um salto civilizatório depois de 400 anos de escravidão. Isso não aconteceu e teve um beco em 1964. Naquele período, teve uma proposta de reforma urbana redigida em 1963, em um congresso de arquitetos, advogados, que não chegou a ser popular. Nós retomamos essa proposta na década de 70. Na luta contra a ditadura, houve um movimento das comunidades eclesiais, nos bairros, porque o Brasil se industrializou muito, crescia muito, se urbanizou muito de 1940 a 1980, principalmente em direção às metrópoles. E uma população que não era recebida nas metrópoles começou a se movimentar para pedir transporte, para pedir creche, para pedir escolas, equipamento de saúde, etc, etc. Foi muito interessante a mobilização da década de 70 nos bairros, que se encontrou com o novo sindicalismo do ABC e de vários lugares do Brasil, o que gerou todo o ciclo democrático que tivemos depois. A proposta de reforma urbana de fato teve uma articulação nacional e gerou, a partir da assembleia constituinte de 88, dois capítulos na Constituição, que depois foram regulamentados pelo Estatuto das Cidades. Aquilo nos levou a criar um fórum de reforma urbana que, no meio do caminho, eu abandonei porque lidava demais com conquistas legais e institucionais. Essas conquistas legais nos deram, e isso é importante que se diga, um arcabouço legal que eu costumo dizer é extravagante de tão avançado. Foi aprovada uma lei para o saneamento básico, para mobilidade urbana, para os resíduos sólidos. A última lei que foi aprovada importante foi o Estatuto das Metrópoles. Lei, nós temos. Eu já fui dar consultoria na Índia, na África do Sul, mas como eu sou honesta, falo que no meu país não se aplica esse arcabouço avançadíssimo. E criamos o Ministério das Cidades. Fui para a transição do governo FHC para o Lula para formular uma proposta de ministério que era uma proposta do movimento de reforma urbana. No ministério, com o Olívio Dutra à frente, nós criamos uma estrutura administrativa que também é extravagante. Você tem as conferências municipais da cidade, estaduais e federal, os delegados são filtrados até chegar em uma conferência de 2 a 3 mil pessoas em Brasília. Isso tudo é impressionante. Se pega o arcabouço legal e o arcabouço institucional e é tudo muito avançado.

Sul21 – E por que mesmo depois de tudo isso temos os mesmos problemas de antes?

EM: Os mesmos ou piores. Antes até de ir para esse lado, eu quero lembrar que a gente teve um ciclo virtuoso de uma política urbana tornada famosa no mundo inteiro, inclusive pelo orçamento participativo, que foi discutido em Nova York, discutido até na Escandinávia. É muito interessante isso, de Porto Alegre para Nova York. Esse período é muito interessante. Eu fui secretária da Erundina em São Paulo e nós lançamos um programa habitacional que parecia que a gente ia mudar a cidade no Brasil. Corredores de ônibus, que são originais do Brasil, os CIEPs (Centros Integrados de Educação Pública) que o Darcy Ribeiro criou lá na administração do Brizola. Nesse crescente democrático, aparece o PT, o PDT, o PCdoB sai da ilegalidade, a CUT é formada, a central de movimentos populares e as prefeituras democráticas estão mostrando para o mundo um poder local com democracia direta. E aí, de repente, isso toma outra rumo, principalmente a partir de 2009. A minha tese é que no período que a gente não tinha recurso, de vacas magras, o Brasil em crise, nós tínhamos democracia direta. No período que o dinheiro apareceu, e não foi pouco, PAC e MCMV, nós perdemos o controle e as cidades foram para as mãos da máquina do crescimento. É muito evidente o poder das grandes empreiteiras. O Ministério das Cidades até tinha cadernos determinando que a mobilidade urbana previa obras de integração de massa, com integração modal entre vários modos de transporte, acessibilidade universal, só que se esqueceram que quem traça o roteiro dessa obra é o município ou o governo do Estado. Então, foram feitas obras inúteis do ponto de vista de diminuir o sacrifício da população.

Sul21 – Aqui em Porto Alegre, por exemplo, todas as chamadas obras da Copa foram feitas entre a Terceira Perimetral, um conjunto de grandes avenidas que temos aqui, e a Orla do Guaíba, enquanto a maioria da população de baixa renda vive para além da Terceira Perimetral.

EM: Pronto. E foi muito dinheiro, foram muitos bilhões para favorecer os interesses da máquina do crescimento. Isso também levou nosso legislativo a mudar de orientação. Na hora que o dinheiro apareceu, a democracia desapareceu, o poder local passou para a mão dos donos da cidade. Tudo mudou. Mas o que aconteceu com os movimentos sociais que eram tão fortes? Quando eu fui secretária de Habitação, a minha secretaria era ocupada semana sim, semana não. E o pessoal era muito forte, ofensivo, no sentido positivo de exigir direitos. A minha explicação é que nós nos tornamos muito institucionais, todos, inclusive os movimentos sociais. Todo mundo foi para dentro da institucionalidade, participar de conselhos, participar de gabinetes. Isso não é condenável. É interessante que uma liderança social seja prefeito, prefeito não tem que ser intelectual, por favor, tem que ter sensibilidade, mas as ruas ficaram vazias até 2013. E não adianta eleger um prefeito se a correlação de forças for negativa. Se não houver luta social pressionando o controle sobre o orçamento público, prefeito nenhum pode fazer nada.

Sul21 – Mas, retomando, como deve ser constituída uma reforma urbana a ser proposta?

EM: O processo de industrialização gerou as grandes metrópoles e o processo de desindustrialização o crescimento da hegemonia do agronegócio. Hoje, o Brasil é um país agrário exportador, mudou profundamente a configuração da rede urbana no Brasil. Hoje, as que mais crescem são as cidades de porte médio. Elas crescem em PIB e população. Então isso também precisa ser levado em consideração. E a gente propõe o quê? Que você olhe pro passado recente, entenda o que aconteceu – nós ainda estamos longe de entender porque processos tão virtuosos como foi Porto Alegre se transformaram em processos tão cruéis, de acentuamento da desigualdade. Por que quando o dinheiro volta, a gente perde o controle sobre o processo? Sem entender isso, não vamos conseguir fazer um bom trabalho. Eu acho que retomar o controle sobre o orçamento é fundamental, retomar o controle participativo é fundamental, mas tendo que empoderar os conselhos, retomar a visão da cidade real a partir de indicadores. Quer dizer, você vai investir a partir de indicadores científicos e não essa história de como é decidido hoje, na calada da noite você dá a secretaria, que é a horta, pro cabrito tomar conta. Nós temos uma rede de cidades muito desigual, pequenas médias e grandes, não dá pra discutir Manaus do mesmo jeito que eu discuto Porto Alegre. Mas, respeitadas as dificuldades e respeitadas as divergências, buscar unidades. Eu posso ter divergência sobre a tarifa zero, mas eu posso ter unidade em torno da prioridade ao transporte coletivo, pedestre e transporte não motorizado. Nós vamos fazer um movimento de buscar acordos em torno de questões que possam ser aplicadas nacionalmente.

 

Ocupação Saraí, em Porto Alegre, é um caso de ocupação que está em prédio que passou anos abandonado e agora corre risco de despejo | Foto: Juliano Antunes/Sul21

Sul21 – A ocupação dos vazios urbanos, dos prédios abandonados, pode ser trabalhado como uma proposta concreta?

EM: Nós defendemos isso desde a época do Olívio aqui [1989-1992].

Sul21 – Mas por que não tivemos avanços?

EM: A lei não é aplicada. Veja o seguinte, se eu considerar que o sujeito deixou um prédio vazio reproduzindo barata, rato, lixo, mosquito, porque você tem acúmulo de água, no centro da cidade, ele deve milhões em IPTU – não estou falando de um caso, mas de vários que eu conheço -, cada vez que é construída uma estação do metrô, um equipamento de mobiliário urbano, o preço desse edifício sobe, mas ele está lá abandonado. Ele está cumprindo a função social? Veja bem, por qualquer critério que você possa querer estudar, ele não está cumprindo a função social. Eu já vi gente dizer que área vazia que não é verde, não é praça, não é parque, não é reserva, está cumprindo a função social. Isso existe, mas são alguns casos patológicos de pessoas que dizem isso. Aí esse prédio é ocupado. Ocupado por quem? Por uma população que não tem alternativa. Não ocupa porque gosta. Vai lá olhar. Não tem alternativa. Ou então vai ocupar beira de córrego, praia, duna, área de proteção dos mananciais, porque você tem um mercado que não atende a maior parte da população. Aconteceu isso em São Paulo no mês passado, o prédio está ocupado há oito anos, ficou vazio dez anos, aí o juiz deu uma sentença de reintegração de posse. A prefeitura de São Paulo, na época do Haddad, fez uma avaliação do prédio e depositou 11 ou 12 milhões de reais. O proprietário pediu 18. O juiz nomeia um perito, que pediu 24. Eu fiz uma pesquisa junto com a Associação dos Juízes pela Democracia na década de 90, na USP, para mostrar que essas peritagens incorrem muito em aspectos subjetivos, não é rigor matemático como se pretende mostrar. Por que esse edifício chega a 24 milhões? Porque ele está na frente de um entroncamento metro-ferroviário, onde os trens e metrôs se cruzam, é a melhor condição de mobilidade da cidade. Isso tudo foi feito nesse período de abandono. Então, o dono do edifício está ganhando sem fazer absolutamente nada, com o nosso investimento, de todo mundo. O que a gente costuma dizer? A área de ocupação que mais cresce em São Paulo é a área de proteção dos mananciais, ao norte e ao sul, área inadequada para ocupação, e você tem concentração de propriedades e muitos imóveis vazios no centro de São Paulo, quando essa a população ocupa, faz um serviço para a sociedade, porque ela alerta para o fato de que você tem, nas melhores localizações, muitos prédios vazios, abandonados, que estão se deteriorando, que constituem elementos de insegurança urbana. Ela ocupa, dá uma função social e exige a aplicação da lei. Então, eu não estou fazendo uma apologia à ocupação, eu estou dizendo que ela cumpre uma função importante de mostrar o que está acontecendo, a injustiça urbana da distribuição dos bens, equipamentos, infraestrutura, pela qual todo mundo pagou. A apropriação é privada, vai para alguns. Você tem hoje centros, fundações internacionais, que mostram que essa valorização imobiliária precisa ser captada pelo poder público, que não é justo você permitir que essa valorização imobiliária decorrente do investimento sobre a cidade seja apropriada privadamente, individualmente. Dá para a gente fazer uma defesa [das ocupações]? Claro que dá. Se eu tenho 400 mil imóveis desocupados no município de São Paulo, que é o que constava no levantamento do IBGE de alguns anos atrás, e eu tenho uma população ocupando a área de proteção dos mananciais, o que é legítimo, o que é legal? É ocupar os imóveis vazios na cidade já infraestruturada e não por em risco a água que a gente bebe.

Sul21 – Como se planta a semente de que é necessária uma reforma urbana, ainda que possa ser discutida de qual forma, e de que as obras públicas da cidade têm que parar de ser só para melhorar a circulação de automóveis?

EM: Eu que tenho 70 anos e já vivi um processo em que a gente fez exatamente isso. Criou as prefeituras democráticas a partir de um movimento de reforma urbana. Do meu ponto de vista, nós temos que retomar essa luta, fazer a autocrítica do que foi esse último período, a crítica e a autocrítica. O que nós temos de novo em relação ao que foi feito? A questão ambiental está muito mais importante do que foi no primeiro capítulo da reforma urbana lá da década de 70, que gerou as prefeituras populares. A questão do aquecimento global é seríssima. O automóvel é um dos maiores males que nós temos sobre as cidades. Há uma pesquisa bem recente na USP mostrando que dias de maior poluição do ar aumentam a incidência de ataques cardíacos. Tinha uma pesquisa também mostrando doenças mentais provocadas pelas condições urbanas, de trânsito e tal. Agora, tem pesquisa mostrando que a gravidez em condição de muita poluição atinge o feto. Então, nós estamos falando de coisas sérias do ponto de vista científico. O que nós precisamos fazer quando a gente fala em analfabetismo urbanístico? Pegar todo esse conhecimento, mapear esses indicadores, que a Nossa São Paulo, uma rede de entidades fez na semana retrasada, para mostrar essa injustiça, popularizar, fazer trabalho de base. Tirar professores e estudantes das universidades para ir aos bairros e trabalhar para melhorar os bairros. O que tem de novo? Existe um ativismo jovem na área da cultura que nunca houve no Brasil, e é periférico. Existe um movimento absolutamente forte, incrível, de gênero, coisa que eu nunca vi. Eu frequentei muito periferia, as mulheres estão com outra energia, muito mobilizadas. E, finalmente, a questão de raça. O Brasil nunca acertou as contas com a população negra e parece que está vindo uma coisa aí que é mais definitiva. Isso tudo está muito pulverizado. Isso tudo precisa passar por aquilo que nós fizemos nos anos 70 e 80, que é uma rede que une essas iniciativas que eu chamo de civilizatórias na sociedade brasileira. A curto prazo, eu acho que nós não vamos ter nenhuma grande mudança. Possivelmente, talvez a gente esteja começado a estancar a sangria. Mas pode ser que não. A reforma da Previdência pelo menos está mostrando alguma coisa, né. Mas pode ser que a gente ainda aprofunde o fosso. Mas eu não tenho a menor dúvida de que no médio e longo prazo nós vamos conseguir reconstruir um novo ciclo democrático.


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