Entrevistas|z_Areazero
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28 de agosto de 2017
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11:04

‘Remoções são como guerras e desastres, mas nascem de decisões do poder público’

Por
Luís Gomes
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Héctor Poggiese: “Se você não melhora o sistema democrático, não consegue melhorar as cidades”. Foto: Maia Rubim/Sul21

Luís Eduardo Gomes 

Como fazer a população tomar parte nas decisões sobre planejamento urbano e desenvolvimento das cidades? Para o argentino Héctor Poggiese, a participação popular depende e precisa ser estimulada. Sem isso, dificilmente as comunidades irão tomar parte no processo, mesmo que isso seja fundamental para a melhoria das cidades. “A minha concepção é a seguinte: se você não melhora o sistema democrático, não consegue melhorar as cidades. Há uma relação entre como você produz as decisões e como a cidade resulta. Não é uma questão só de urbanistas, é uma questão de modelo de decisão. A cidade é justa se você consegue democratizar as decisões, senão não será justa”, afirma.

Mestre em Administração Pública pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), do Rio de Janeiro, o advogado Poggiese tem uma longa trajetória de trabalho em planejamento urbano, políticas ambientais, gestão participativa, entre outros temas, em toda a América Latina. Participou, por exemplo, do trabalho de reurbanização de favelas na capital carioca nos anos 1980 e foi Conselheiro de Planejamento Urbano de Buenos Aires entre 1989 e 1992.

Ele defende que, diferentemente do que ocorre agora, o Estado precisa se aliar à população na questão do planejamento e ceder à sociedade parte do poder de decisão sobre os rumos da cidade. Caso contrário, sempre prevalecerá os anseios do mercado imobiliário, que não são os mesmos da população em geral. “Se você deixar o mercado sozinho, está perdido, porque ele vai fazer a cidade, os negócios, de acordo com a rentabilidade lhe indica e vai transformar a cidade o tempo todo, numa velocidade enorme, porque os grandes negócios financeiros hoje são reorganizar áreas da cidade”, diz.

Na semana em que veio a Porto Alegre participar do Conversas Cidadãs, evento promovido pelo Sul21, para debater “O espaço público: produção da cidade em processos participativos”, Poggiese também fez a defesa de um modelo de cidade que priorize a urbanização de favelas e comunidades empobrecidas, e não o deslocamento e a remoção de populações. Para ele, os efeitos de relocalizações de comunidades é traumático e pode ser comparado ao de guerras e desastres naturais. “Um desastre te expulsa, uma guerra te expulsa, uma relocalização te expulsa. Só que nesse caso se produz por uma decisão, diferentemente de uma guerra ou desastre que você não poderia prever”, diz.

A seguir, confira a íntegra da entrevista.

“A opinião do cidadão é tão importante quanto a dos cientistas e dos políticos”. (Foto: Maia Rubim/Sul21)

Sul21 – Hoje há muito pouco controle social sobre as questões de planejamento urbano, moradia e desenvolvimento de cidades. Como pode se fomentar e conciliar a participação popular com o planejamento das cidades?
Héctor Poggiese: A condição básica para que uma participação seja obtida na formulação das políticas públicas é haver uma vontade política do Estado, a atitude de ajudar e promover que isso aconteça. A pergunta que você tem que fazer é: por que as pessoas participariam em uma questão dessa ordem, que não faz parte de sua agenda, de seus conhecimentos, de suas preocupações normais, não são acadêmicas, não são cientistas, não são políticas, são cidadãos comuns? A primeira coisa que tem que ser reconhecida é que a opinião do cidadão é tão importante quanto a dos cientistas e dos políticos. Isso é uma questão que hoje não se discute, pese que a ciência hoje está sendo questionada por seus epistemólogos no sentido de que não consegue resolver os grandes problemas que a complexidade do mundo moderno apresenta. Antes, na época do positivismo, supunha-se que a ciência ia resolver, tanto é assim que em um momento os cientistas disseram: ‘a política é para nós, porque nós manuseamos as disciplinas e as regras pelas quais o conhecimento vão permitir resolver os problemas’. Mas isso já está longe da verdade.

Por outro lado, como se formula uma política pública? Um político anuncia uma mudança qualquer em uma cidade. Vamos supor: ‘vamos ter aqui uma Olimpíada, vamos fazer um estádio’. Depois que foi dada publicidade a notícia, foi formulada a ideia política, chama suas equipes e diz: ‘bom, agora vocês tem que organizar um plano para resolver essa questão’. Aí então são grupos de técnicos especializados que vão fazer a proposta. Ou, talvez, esse político discute em seu partido com seus colegas, ou com seus amigos mais íntimos, em sua família, com alguém. Ou seja, ele tem assessores, tem consultores, tem colegas do partido, tem técnicos do Estado. Qual a razão para não convocar os cidadãos para formular essa política? Por acaso a opinião desses cidadãos não deveria ser reconhecida? Por acaso esses cidadãos não vão ter que participar da vida dessa cidade com a questão nova que foi colocada? Qualquer coisa que tu faça na cidade modifica o relacionamento, o espaço público, a convivência.

Sul21 – Aqui teve a Copa do Mundo há pouco e pode levar alguns anos ainda para entender o impacto de tudo que foi feito, mas talvez aí já não se consiga estabelecer relações de causa e consequência. Como fazer a população entender que todas as mudanças têm impacto na cidade?

HG: A única maneira para que uma pessoa entenda isso é passar por um aprendizado sobre o relacionamento das questões. Como se forma um cientista? Vai na universidade e estuda isso. Por que um político faz política? Porque ele estabelece relações. Então, se você não construir um cenário de práticas em que a comunidade co-participe do processo de explicação dos problemas, intervenha na argumentação e nos debates, discuta alternativas a questões, etc, etc, como aprenderiam? Não aprenderiam. Se você não organiza essa possibilidade, não vai ter essa possibilidade. Quer dizer que a escola de aprendizado público das decisões políticas é o processo de elaboração das decisões políticas, não é outro, porque você não pode determinar que todo mundo vá para a escola de administração pública estudar como se faz política pública. É impossível.

“Há uma questão na participação que é chave: você não pode passar de nenhuma participação para toda ela”. (Foto: Maia Rubim/Sul21)

Sul21 – O Estado tem que estimular essa participação?
HG: O Estado tem que promover porque ele é o responsável pela formulação das políticas públicas. Por isso estava te dando o exemplo de que o político quando pensa uma política pública tem um monte de pessoas em volta, porque não imaginar que ele tem que trabalhar com outros grupos, para argumentar, refletir, e mais, um político deveria saber que a viabilidade sócio-política de uma medida que ele tome vai ser facilitada se ele fez um debate público e acrescenta em camadas da população o número de pessoas que argumentaria a favor. Não, você está esperando só que a imprensa diga ‘que maravilha’. Por que não, em vez da imprensa dizendo isso, um tecido sócio-político que participe dos debates, que poderia argumentar nos bairros? ‘Olhe, se chegou a essa decisão porque convinha mais do que a outra’. Entende? Argumenta porque acessou. Se não acessou, não pode argumentar.

Sul21 – Qual seria o melhor modelo de fazer isso? Realizar assembleias?

HG: Não, o modelo não pode ser o assembleísmo porque esse não responde. Você teria que juntar milhares de pessoas. Há uma questão na participação que é chave: você não pode passar de nenhuma participação para toda ela. Dizem: ‘não, isso não é participativo porque não participa todo mundo’. No entanto, continua sendo melhor do que não participar ninguém. ‘Ou não participa ninguém ou participa todo mundo’. Não, é uma coisa que tem uma gradualidade e que corresponde a construir o que chamamos de cenários de planejamento participativo e questões associadas, na qual você vai fazer um tecido, vai agregando atores, gerando e multiplicando essa prática em campos distintos, de modo a dar uma espécie de escola de aprendizado mútuo, porque aí haverá um intercâmbio de saberes. Juntar para trabalhar acadêmicos, políticos, técnicos e comunidade, isso acontece alguma vez? Se você faz que isso aconteça, aí haverá um intercâmbio de saberes populares, formais, políticos, porque todo mundo vai estar aprendendo do outro. Mas tem que ter um método para que isso ocorra.

Esses cenários necessitam de uma construção metodológica, no qual você assegura que as assimetrias da sociedade não se transformem em dominantes. Se você faz uma reunião em que um fala muito e outro cala-se, se você não gera uma situação de trabalho conjunto, argumentação, explicação, decisões estratégicas que vão sendo consensualizadas, não pode construir um vínculo, nem de confiança, nem de compreensão, de nada. Fica cada um em sua caixa.

Sul21 – Existe algum exemplo de experiência nesse sentido que pode ser considerado positivo?

“Tem que haver um processo de democratização da própria democracia”. Foto: Maia Rubim/Sul21

HG: Na América Latina, tem havido experiências diferentes nessa linha. Acontece que os processos políticos de governos democráticos e populares que avançam nessa direção estão sendo impedidos. Isto supõe que tem que existir uma preocupação por ampliar a democracia. Então, na medida que os governos se resignam a só aplicar a democracia em suas formalidades representativas, você não consegue sair do circuito de escolher os políticos, os conselhos das câmaras de vereadores têm que aprovar, etc. Tem que haver um processo de democratização da própria democracia. Um processo de ampliação do processo democrático. Essa é uma restrição que custa a avançar sobre ela. Os governos têm que se acostumar a ampliar os processos pré-decisionais, a fazê-los participativos. Têm que explorar formas de debates mais amplos em processos de planejamento.

Sul21 – Realisticamente, em uma área como o planejamento urbano, que acaba muitas vezes sendo terceirizada para o mercado e as grandes construtoras, é possível hoje ampliar esse processo participativo?

HG: Aí depende a posição que você tenha com relação ao mercado. Se você deixar o mercado sozinho, está perdido, porque ele vai fazer a cidade, os negócios, de acordo com a rentabilidade lhe indica e vai transformar a cidade o tempo todo, numa velocidade enorme, porque os grandes negócios financeiros hoje são reorganizar áreas da cidade. O Maracanã foi refeito para o mundial e agora está abandonado, porque era negócio naquele momento, mas agora não é negócio para ninguém. Na verdade, você tem que encontrar um modo de controlar a ação do mercado. Não são os interesses próprios do mercado que têm que ser discutidos, tem que privilegiar os interesses da convivência cidadã e da vida na cidade. Então, o Estado e a sociedade deveriam fazer acordos muito fortes entre eles para impedir ou controlar o avanço do mercado, que é inevitável. Se você senta mercado, sociedade e estado juntos, o mercado é quem se impõe, porque não precisa se sentar para conversar, ele dispõe do lobby direto para pressionar sobre o Estado e dispõe da mídia para construir uma subjetividade a favor de seus interesses.

Sul21 – Não são três partes iguais.

HG: Exato. Então, você precisa duas coisas: recuperar um Estado que seja a favor dos interesses mais gerais da sociedade e recuperar a democracia, mas transformando-a, porque se simplesmente se recupera a democracia, as coisas vão acontecer de novo como eram.

Sul21 – Como foi a sua experiência como conselheiro de planejamento urbano de Buenos Aires? Que tipo de trabalho foi desenvolvido?

“A aprovação do projeto de Puerto Madero facilitou ao mercado uma área pública para desenvolver um projeto milionário, para a população de alto nível aquisitivo”. Foto: Maia Rubim/Sul21

 HG: Foi um período bastante crítico. Fui conselheiro de planejamento urbano no último conselho de planejamento urbano que houve na cidade. Depois dissolveu-se a ideia de um conselho em que participavam várias pessoas para debater a política da cidade. Quando se fez esse conselho, eu tive a responsabilidade de fazer um programa que se chamava Planejamento Participativo nos Bairros. Isso se fez simultaneamente ao Orçamento Participativo em Porto Alegre. Estou falando de 89 e 90. Ou seja, as ideias que haviam naquele momento em Buenos Aires e Porto Alegre orientavam a mesma coisa, que era como criar um modo de aumentar a participação cidadã nas políticas públicas. Mas, no mesmo governo que eu estava, outro setor decidia, por exemplo, a favor de Puerto Madero. No mesmo governo.

A aprovação do projeto de Puerto Madero, que foi facilitar ao mercado uma área pública para desenvolver um projeto milionário, para a população de alto nível, para o turismo, e que não tem repercussões no investimento social da cidade. É uma área que beneficia a si mesmo com o que produz e melhora por si. Nenhum bairro de Buenos Aires tem essa capacidade de utilizar todos os seus recursos em si mesmo. Entende a vantagem que esse projeto tem? Então, era muito contraditório o que aconteceu naquela época. Por um lado, estávamos desenvolvendo a participação popular nos territórios e, por outro, estava-se cedendo ao mercado as áreas mais importantes para a especulação imobiliária. Hoje, alguns dos projetos que fizemos naquela época ainda continuam, projetos muito exitosos, como a gestão popular do Parque Avellaneda [bairro de Buenos Aires], que começou nesses anos com apoio governamental e que já passaram quase 30 anos e continua sendo gerido de forma compartilhada pelas estruturas de governo e sociais, ainda que tenham mudado os governos e que vários tenham tentado mudar. Como tinha se instalado a cultura participativa nesse território, o cuidado da população para que as regras sigam sendo cumpridas, foi sancionada uma lei que protege e reconhece esse modo de gestão como uma prioridade, isso está funcionando.

Sul21 – Nessa questão da manutenção da cultura participativa. Em Porto Alege, que foi o grande exemplo de participação popular no Brasil, o Orçamento Participativo hoje está em um momento em que, depois de ser desvalorizado ao longo do tempo, hoje está suspenso.

HG: Sim, porque os políticos que vieram depois resolveram não manter…

Sul21 – Mas também não existiu um clamor popular. Se perdeu essa cultura da participação. Como fazer com que a própria população entenda como necessária sua participação?

HG: Bom, o mecanismo do Orçamento Participativo tem algumas vantagens e algumas dificuldades. Por exemplo, o OP nunca entrou no debate no planejamento urbano da cidade, se limitava a demandas focalizadas nos bairros. Ainda que tivesse um indicador diferente de distribuição para cada bairro e procurava uma justiça na distribuição dos recursos, era como um processo controlado a um ponto, não se debatiam ali situações que tinham a ver com decisões do mercado. Então, o mercado continuava agindo, continuava trabalhando e o OP não ingressava nesse debate. Se tivesse tido um cuidado de relacionar problemas entre os bairros de ordem territorial e discutir projetos de maior peso urbano, aí poderia ter havido um maior entrosamento da comunidade na questão urbana de outra ordem e muitas situações estariam sendo geridas hoje com participação da comunidade. O limite do OP é a questão do planejamento. Como não se planejava de maneira conjunta, não havia uma situação de aprendizado. Era uma vantagem, eu sabia que tinha um lugar onde reclamar, mas, depois que isso fecha, eu reclamo por outro lado. É diferente se você se transforma em um planejador popular, um decisor popular. É diferente, você aprende, entende as lógicas das decisões.

Sul21 – Se tivesse esse envolvimento maior em planejamento e gestão, poderia ser mais valorizado?

HG: Exato. Eu sustento que planejamento e gestão são a mesma coisa.

Sul21 – Há um déficit de planejamento nas grandes cidades da América do Sul?

“Barcelona é uma cidade hoje só turística”. Foto: Maia Rubim/Sul21

 HG: Lógico. Nós temos insistindo muito na América Latina…As cidades são o elemento mais complexo da estrutura social moderna. Elas se desenvolvem numa velocidade e numa transformação que, inclusive, quem estuda as cidades não consegue acompanhar. Então, por ser uma situação de alta complexidade, é quase obrigatório pensar que só reunindo um grupo multidisciplinar, multi setorial, multi lateral, é que você poderia ter algum ponto de atuação frente a essas transformações.

Na medida que não se produz uma mudança no modo de fazer as políticas públicas, enquanto a democracia não for capaz de se abrir para gerar cenários de trabalho conjuntos, não vamos conseguir controlar isso, porque o mercado é suficientemente forte para condicionar as decisões e transformar as cidades. Barcelona é uma cidade hoje só turística. Antes haviam bairros não turísticos que as pessoas gostavam de morar, agora os bairros estão sendo utilizados só para o turismo. A única fonte de produção da cidade é o turismo.

Sul21 – Quais são as consequências para o morador dessa falta de planejamento e controle do mercado sobre o planejamento?

HG: Acontece que as racionalidades, as formas de viver nas cidades são diversas. Muitas vezes as pessoas acham que a “hipotética” modernidade vai ao encontro de seu modo de vida. Então, você não dialoga quando vão instalar algo hipoteticamente moderno – falo hipoteticamente moderno porque tem muita modernização aí que não moderniza nada. Teria que conversar, com dialogar, com aqueles que estão morando de outra forma na cidade. Não dá para impor um modo e expulsar a todo o resto. Se você vai introduzir uma modificação modernizante, tem que dialogar com os outros que estão acostumado e gostariam de seguir morando de outra forma. Na cidade se mora de diversas formas distintas, há muitas racionalidades diferentes de ser cidadão e viver nas cidades. As iniciativas têm que ser discutidas, tem que ser promovido o intercâmbio, a argumentação, a importância do benefício da troca e se preparar para uma mudança dessa ordem.

Sul21 – O modelo que temos hoje é capaz de produzir algo que não seja uma cidade excludente?

HG: Não, o modelo que se pratica hoje só alimenta a exclusão, em qualquer cidade que se pense. O que fizeram no Pelourinho [Salvador/BA]? Fizeram uma reforma para aumentar o interesse turístico. A população, artesãos, que moravam ali, foram expulsos. A modernidade supõe que você tem que eliminar toda as formas de vida que estão ali. Na Boca, em Buenos Aires, onde as pessoas vivem de uma forma há 100 anos, agora que vai ser distrito cultural tem que expulsar toda a população. Não importa para onde vão, tem que ir embora porque vai ser distrito cultural.

Sul21 – Isso não levará a um ponto de ruptura? Em Barcelona, por exemplo, já há protestos contra o turismo. Há, de certa forma, um ódio de turistas. O senhor acredita que esse modelo de cidade vai levar a conflitos sociais?

HG: Eu não sei. A princípio, gera expulsão, pessoas que vão embora da cidade ou que moram em cômodos na cidade. A cidade já não é mais um lugar integrado em que se podia conviver. Agora já não pode. As pessoas vão morar em outros bairros, reclamam.

Sul21 – Mas há um limite para isso, não? Chega um ponto em que as pessoas estão migrando para a periferia das periferias.

“Como as cidades se refazem em seus centros, em seus lugares privilegiados, o resto tem que crescer na periferia”. Foto: Maia Rubim/Sul21

 HG: A periferia da periferia é o modo que se faz, porque os grandes empreendimentos imobiliários procuram o coração das cidades, as áreas mais nobres, que têm sido envelhecidas e se refazem as cidades. Então, como as cidades se refazem em seus centros, em seus lugares privilegiados, o resto tem que crescer na periferia. Se você não tem também um modelo econômico que seja capaz de convocar as pessoas que não seja viver nas cidades, a cidade é o lugar que você encontra um emprego, ainda que seja de serviços. Já nem sequer são as cidades fordistas que você morava nela porque haviam indústrias, primeiro porque nem tem tantas indústrias e essas não consomem tanta mão de obra como no passado.

Então, creio que as pessoas arrumam um modo de sobrevivência, inventam, na insurgência, um modo de viver nas cidades, porque nos outros lugares é difícil. Eu acho que as cidades não tem mais remédio que não seja serem expulsivas e aumentar sua periferia, se não introduzirem um modelo diferente de geri-las de modo tal que os aumentos de densidade, de mudanças de uso, sejam entendidos e que todo mundo conviva.

Sul21 – Que caminho poderia se seguir em mundo ideal?

HG: O papel da imprensa é importante nisso, a medida que pode se opor a essa falsa subjetividade que se constroi a todo o tempo nos mecanismos midiáticos. Mas também os movimentos sociais, as associações de moradores, os sindicatos, a universidade, deveriam ser mais ativos nessa lógica, propor aos governos um modo de fazer isso de maneira conjunta, o que se chama de esfera pública, um lugar do processo decisão em que Estado e sociedade estão misturados, sobrepostos. Para isso, seria necessário um arranjo, um acordo de co-participação, que se chamaria de novos contratos sociais. Já não é mais a ideia de que toda a gestão corresponde ao Estado. Agora, para que exista uma atitude co-gestora, é preciso que a sociedade e os atores se posicionem com relação a isso.

As universidade, em vez de serem apenas observadoras e estudiosas dos processos, poderiam ser também atores sociais da questão urbana, poderiam propor mecanismos. Os movimentos sociais reclamam seus direitos, mas poderiam dizer: ‘quero que um sistema formal de trabalho conjunto se estabeleça’. Aí se avançaria para alguma forma institucional, ainda desconhecida, em que isso teria que ocorrer, porque já não seria um escritório de planejamento exclusivo do Estado, mas um escritório de planejamento associativo. Mas isso tem que ser inventado, porque não existe. A primeira exclusão que você tem que resolver é a exclusão de não poder intervir no debate da convivência.

Sul21 – O senhor acompanhou a questão da urbanização de favelas no Rio de Janeiro. Como foi esse trabalho?

HG: Eu trabalhei exclusivamente na urbanização da Favela da Maré, que se denominou de Projeto Rio, no final do governo de Figueiredo [João Figueiredo, último ditador militar, que governou entre 1979 e 1985] e nos anos anteriores à abertura democrática, quando havia uma disputa política bastante interessante, porque, como começava o Brasil a ter ares mais democráticos, as questões eram mais permeáveis. O próprio governo militar aspirava ter uma continuidade através de seus candidatos e partidos, então definia políticas que nunca tinha optado. O projeto que participei foi a primeira vez no Brasil que se urbanizou uma favela in loco.

“Toda a relocalização implica um dano na estrutura social”. Foto: Maia Rubim/Sul21

Até então, todas as favelas tinham sido removidas, no Rio de Janeiro e em todo o Brasil. Depois, isso ficou mais ou menos instalado, durante muito tempo o governo manteve a ideia de urbanizar in loco. Hoje não conheço a fundo o que está acontecendo, mas aquela favela, hoje você vai nela, bom, tem o problema do narcotráfico igual a qualquer outra favela, tem o problema de renda, que são muito menores do que de outras pessoas, mas, como bairro, tem um nível de consolidação altíssimo, porque os moradores são proprietários, têm construídos vários andares em quase toda a favela, tem equipamentos públicos, escolas, escolas de samba, tudo que se instalou ali e que antes não tinha. É um bairro mais formalizado, inclusive tem uma área central na favela com sedes de ONGs e outras organizações que antes não estavam lá.

Sul21 – Qual o ponto positivo de desenvolver as favelas no próprio local?

HG: A primeira coisa é que você reconhece toda o investimento que a população tem feito. Ou seja, quando o grupo se instala num lugar, uma ocupação dessa ordem, ele fez esforços para viver. Então, se você imagina que tem que ser tudo isso removido para ser construído em outro lugar, tudo que foi gerado se perde, inclusive o próprio tecido social. Quando se faz in loco, está se reconhecendo um processo social construtivo e de relacionamento social preexistente, não mata ele, não liquida. A segunda coisa é que você reconhece aos ocupantes a propriedade. Podem vender, alugar para qualquer um, garantir que o morador tem o reconhecimento legal e que não será expulso. Se você me pergunta a minha opinião, sou favorável a urbanização in loco. Por exemplo, na Argentina, nunca conseguimos fazer isso. Lá predomina a ideia de que você tem que fazer o bairro em outro lugar. Ficaram 30 anos dando voltas e recém agora estão reconhecendo que tem que urbanizar in loco. Puerto Madero é um caso muito particular. Tem uma favela dentro, que se chama Rodrigo Bueno.

Sul21 – Existe ainda hoje?

HG: Sim, é antiga. Sempre houve a intenção de expulsá-la, mas hoje é impossível, porque tem um nível de reconhecimento de luta popular que vai mantê-la ali sempre. É um problema urbano que não conseguem resolver ter uma favela dentro de Puerto Madero.

Sul21 – E porque isso é melhor do que construir um bairro em outro local, mais afastado?

HG: Primeiro, qual foi a escolha das pessoas? Moram porque estão perto dos centros das cidades, têm acesso a um monte de coisas. Você manda elas longe, aumenta a distância. O caso mais importante que se conhece é esse que mereceu um filme no Brasil, a Cidade de Deus. Você gera uma cidade totalmente sem relações, perdida no mundo, que as pessoas desenvolvem outro modo de vida, já não é aquele que tinham. Toda a relocalização implica um dano na estrutura social, isso os antropólogos já estudaram muito. Toda relocalização supõe um dado no tecido social, um aumento da morbidade e da mortalidade, porque você abruptamente tem que sair de um lugar onde já está instalado. A recuperação desse grupo social acontece muito depois, com mudanças profundas em suas estruturas, de lideranças, porque o dano produzido é o que se chama de estresse multidimensional da relocalização.

Quando você tem que se mudar da sua casa, isso não te estressa? Imagina quando o bairro inteiro e o tecido social se muda, que estava acostumado a uma certa forma de vida e a um relacionamento. Você está submetendo esse grupo a uma relação estressante que produz danos diversos, mortalidade que aumenta, morbidade que aumenta, desorganização social, mudança social, etc, etc. Imagina, em uma guerra, quando você expulsa pessoas de um lugar, imagina o que é? É o mesmo. É como se fosse um desastre que te expulsa. Um desastre te expulsa, uma guerra te expulsa, uma relocalização te expulsa. Só que nesse caso se produz por uma decisão, diferentemente de uma guerra ou desastre que você não poderia prever. Quando você vai relocalizar pessoas, por uma decisão pública, tem que ser absolutamente cuidadoso de como trata essa relocalização, tem que ter um programa compensatório, psicológico, cultural, de ordem social de todo tipo, para suturar e reduzir o impacto emocional e de doença que vai produzir no grupo. Nunca se considera isso.


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