Entrevistas|z_Areazero
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7 de novembro de 2016
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03:17

“Precisamos conter a ascensão do estado policial dentro do estado de direito”

Por
Sul 21
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Mariana Py Cappellari: ˜A decisão referente à presunção de inocência, determinando a possibilidade de execução provisória da pena tem um simbolismo muito grande que talvez as pessoas não tenham percebido˜. (Foto: Maia Rubim/Sul21)
Mariana Py Cappellari: ˜A decisão referente à presunção de inocência, determinando a possibilidade de execução provisória da pena tem um simbolismo muito grande que talvez as pessoas não tenham percebido˜. (Foto: Maia Rubim/Sul21)

Marco Weissheimer

O Supremo Tribunal Federal (STF) tomou uma série de decisões nos últimos anos que construíram um arcabouço legal que favorece o crescimento do estado policial dentro do estado de direito no Brasil. Ao trocar a perspectiva garantista pela punitivista, o Supremo, em alguns casos, simplesmente decidiu não aplicar a Constituição, com conseqüências muito perigosas para a democracia no país. A avaliação é da defensora pública Mariana Py Muniz Cappellari, coordenadora do Centro de Referência em Direitos Humanos da Defensoria Pública do Rio Grande do Sul, que adverte para o significado e as conseqüências de algumas medidas que vêm sendo tomadas.

“A decisão referente à presunção de inocência, determinando a possibilidade de execução provisória da pena tem um simbolismo muito grande que talvez as pessoas não tenham percebido. Tínhamos uma interpretação da presunção de inocência que estava de acordo com o texto constitucional. O problema dessa e de outras decisões do Supremo é a construção que se fez para simplesmente não aplicar a Constituição. Isso é o mais grave nestas decisões que vão acabar vinculando as decisões dos tribunais”.

Em entrevista ao Sul21, Mariana Cappellari fala sobre o trabalho que o Centro de Referência em Direitos Humanos vem desenvolvendo no Rio Grande do Sul, adverte para os riscos do punitivismo e defende a necessidade de conter a ascensão de um estado policial no Brasil, zelando pelas bases do estado de direito.

Sul21: Qual o trabalho que é desenvolvido pelo Centro de Referência em Direitos Humanos da Defensoria Pública do Rio Grande do Sul?

Mariana Cappellari: O Centro de Referência em Direitos Humanos é resultado de um convênio feito com o governo federal em 2014. O nosso centro tem uma peculiaridade: ele é o único centro de referência do país que é gestado por uma Defensoria Pública. Todos os demais são administrados por organizações não-governamentais. A Defensoria Pública do Rio Grande do Sul elaborou um projeto para assumir o centro, pensando em dar vazão a algumas atribuições que, constitucionalmente, são dadas a ela. Em 2014, a Constituição foi alterada pela Emenda Constitucional n° 80 que, no artigo 134, define a Defensoria Pública como uma instituição permanente que deve defender o regime democrático e ser uma promotora de direitos humanos.

˜Quando falamos em violência estatal não estamos falando somente da violência policial˜. (Foto: Maia Rubim/Sul21)
˜Quando falamos em violência estatal não estamos falando somente da violência policial˜. (Foto: Maia Rubim/Sul21)

Além disso, a lei complementar que trata da atuação da Defensoria Pública afirma que uma das razões dela existir e garantir a prevalência e a efetividade dos direitos humanos. Tanto é assim que ela nos dá como função institucional inclusive acessar o sistema internacional de direitos humanos. Essa lei determina que nós devemos prestar atendimento multidisciplinar e fazer a defesa e a reparação dos direitos das vítimas. O convênio firmado pelo governo federal definiu duas linhas de atuação: a violência contra a mulher e a violência estatal, que é um guarda-chuva bem grande. Quando falamos em violência estatal não estamos falando somente da violência policial, mas também da violência dentro do sistema prisional, da violência contra os defensores dos direitos humanos e de um conjunto de discriminações, preconceitos, maus tratos, abandonos e negligências vinculadas ao setor estatal.

Além de coordenadora do Centro de Referência, sou dirigente do Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos, da Defensoria Pública, que está ligado à administração superior da Defensoria, mas também é um órgão de atuação. Os expedientes abertos por esse núcleo tramitam na minha secretaria. Hoje, tenho mais de 400 expedientes abertos envolvendo diferentes grupos vulneráveis.

Sul21: Como as pessoas acessam o Centro de Referência?

Mariana Cappellari: Elas vêm até aqui ou nos acessam pelo telefone 0800 6445556 que pode ser acionado em todo o Estado do Rio do Grande do Sul. É um 0800 que funciona, pois o nosso call center está localizado aqui no nosso prédio mesmo. Algumas pessoas ligam para tirar dúvidas, fazer denúncias ou agendar atendimentos. Outras vêm diretamente aqui. Nós fazemos uma triagem inicial e, a partir daí, fazemos um atendimento que chamamos de acolhimento integral, que envolve uma psicóloga, uma assistente social e alguém do jurídico.

Esse atendimento vai muito além da responsabilização do autor da violência. Os atos de violência atingem a vida da pessoa como um todo e nós procuramos dar conta desse todo. Nós fazemos também planos de segurança para as pessoas. Participamos dos programas de proteção hoje existentes, como o Protege (para vítimas e testemunhas) e o Programa Estadual de Proteção dos Defensores de Direitos Humanos. Além disso, realizamos oficinas de capacitação. A idéia inicial era destinar essas oficinas para o público que nos acessa, mas essa abrangência foi se ampliando. O Centro de Referência está instalado aqui no centro histórico de Porto Alegre para facilitar o acesso das pessoas e, mesmo assim, muita gente ainda enfrenta dificuldades para nos acessar. Por isso temos um trabalho chamado de Defensoria Itinerante. Agora, na Semana dos Direitos Humanos, queremos ir a determinados locais para divulgarmos os serviços disponibilizados pelo Centro de Referência.

Sul21: Muita gente nem deve saber da existência do Centro…

"Uma das coisas que me chamou a atenção quando assumi o núcleo este ano foi a questão da violência policial". (Foto: Maia Rubim/Sul21)
“Uma das coisas que me chamou a atenção quando assumi o núcleo este ano foi a questão da violência policial”. (Foto: Maia Rubim/Sul21)

 Mariana Cappellari: Exatamente. Muita gente não sabe que existe e outras têm dificuldade de acessar o Centro. Agora, no Outubro Rosa, fizemos uma parceria com a Susepe e fomos com nosso ônibus fazer o atendimento das pessoas que estavam na fila dos maiores presídios aqui do Estado. Fomos para o Presídio Central, para a PEJ (Penitenciária Estadual do Jacuí) e para a Penitenciária Modulada de Charqueadas. Levamos computadores e atendemos as pessoas que estavam na fila que, em sua grande maioria, são mulheres, mães, esposas, companheiras, filhas, avós…Atendemos mais de cem pessoas nestes locais.

Neste processo de abertura do Centro de Referência para a sociedade civil nós já realizamos também uma mostra de filmes sobre direitos humanos e promovemos debates, em geral nas segundas-feiras, das 18h às 20h, sobre temas como tráfico, violência, homossexualidade, situação das comunidades quilombolas e indígenas, entre outros. Nós convidamos pessoas para debater esses temas com a sociedade. Realizamos ainda uma mostra com debate de trabalhos acadêmicos geralmente vinculados à área dos direitos humanos, como o de Felipe Lazzari, sobre a permanência da tortura nas instituições de segurança pública, o de Clara Masiero sobre o movimento LGBT e a homofobia, e o da defensora pública federal Ana Luisa Zago sobre a crimigração, que é a relação entre política migratória e política criminal.

Sul21: Quais são os casos mais freqüentes que têm chegado ao Centro de Referência?

Mariana Cappellari: A maioria dos casos envolve algum tipo de violência estatal. Uma das coisas que me chamou a atenção quando assumi o núcleo este ano foi a questão da violência policial. Por isso procurei o professor Rodrigo Ghiringhelli, da PUC, que tem um grupo de pesquisa sobre essa área, para fazer uma pesquisa tomando os nossos expedientes como base de dados. Mais de 200 dos 400 expedientes que temos abertos estão relacionados à violência policial. Só este ano já temos cerca de 180 casos só de violência policial. Em função desse realidade, procuramos fazer um diagnóstico não só para identificar quem é essa vitima e quem é o agressor, mas também para identificar os procedimentos com os quais atuamos.

Um agente público pode ser responsabilizado em três esferas distintas: administrativa, penal e por meio de demandas indenizatórias. Nós atuamos nestas três esferas. Verificamos um aumento dos registros de casos de violência policial com as audiências de custódia. As denúncias feitas nestas audiências também são encaminhadas para cá. E nós temos também uma demanda bem grande das pessoas transexuais. No Rio Grande do Sul, nós temos uma divergência de opinião sobre esse tema. Aqui em Porto Alegre, quando nós entramos com as ações de retificação de registro civil sempre obtivemos êxito, mas o Ministério Público sempre tem recorrido por entender que é necessária a cirurgia de transgenitalização para a alteração do gênero no registro civil. Nós fazemos o caminho inverso. Tentamos retirar o caráter de patologia da pessoa transexual, por entender que sexo biológico e gênero é uma construção cultural e psicossocial, onde o psicossocial prevalece sobre o biológico. Já fiz algumas sustentações orais no Tribunal de Justiça, onde também temos entendimentos divergentes entre os desembargadores.

˜Vemos a formação de determinados grupos dentro da sociedade que clamam pela repressão". (Foto: Maia Rubim/Sul21)
˜Vemos a formação de determinados grupos dentro da sociedade que clamam pela repressão”. (Foto: Maia Rubim/Sul21)

O procurador da República, Rodrigo Janot, ofereceu um parecer, recentemente, em um processo que tramita no STF, que segue a mesma linha do nosso pensamento, entendo que exigir uma cirurgia de transgenitalização para a alteração de gênero no registro civil é uma violação de direitos.

Nós também recebemos muitos casos envolvendo albergues, pessoas em situação de rua e pessoas idosas em situação de abandono e vulnerabilidade. Os últimos levantamentos apontam que temos mais de 3 mil pessoas vivendo em situação de rua em Porto Alegre. A violência dentro do sistema prisional também chega até nós, mas em menor número. Em geral, os casos estão ligados a mortes dentro do sistema, onde a família nos procuram para tentar obter uma resposta sobre o que aconteceu.

Sul21: Estamos vivendo um período de recrudescimento da instabilidade política e social no país, que vem sendo acompanhado, entre outras coisas, por um crescente processo de criminalização de movimentos sociais e de aumento da repressão policial contra esses movimentos. Como avalia esse quadro?

Mariana Cappellari: Esse processo de aumento da instabilidade política e social é muito visível hoje. Vemos, inclusive, a formação de determinados grupos dentro da sociedade que clamam pela repressão. A recente pesquisa realizada pelo Fórum de Segurança Pública mostra que uma parcela expressiva da sociedade está nesta onda repressora. É um quadro muito preocupante. Creio que é um momento onde devemos fixar algumas posições e lutar por elas. É importante lembrar que toda pessoa tem que ser uma defensora dos direitos humanos pois eles valem para todos, inclusive para ela própria.

Recentemente escrevi um artigo sobre a criminalização dos defensores dos direitos humanos, com base no relatório produzido pela Comissão Interamericana. Os comentários ao artigo na página do Canal Ciências Criminais são de apavorar. Muita gente que comenta sequer leu o artigo. Só leram o titulo “Criminalização dos defensores dos direitos humanos” e saíram dizendo coisas do tipo “quem defende bandido tem que morrer também”. O que estamos verificando é um recrudescimento em todos os planos. Neste contexto, temos violações explícitas de direitos, mas também temos casos de pessoas que são vítimas de violência, não se enxergam nesta condição. Essas pessoas procuram o Centro mas, em seu próprio relato, amenizam o que elas sofreram porque não conseguem se colocar na condição de vítima de violência. Em geral, elas vivenciam essa situação no cotidiano delas.

Sul21: O Centro de Referência em Direitos Humanos tem atuado nos protestos e ocupações ocorridos nos últimos meses?

˜A criminalização dos defensores dos direitos humanos é uma forma de sufocar a defesa de conquistas e a luta por direitos.˜ (Foto: Maia Rubim/Sul21)
˜A criminalização dos defensores dos direitos humanos é uma forma de sufocar a defesa de conquistas e a luta por direitos.˜ (Foto: Maia Rubim/Sul21)

 Mariana Cappellari: No processo de ocupação das escolas, no primeiro semestre, embora o núcleo de defesa dos direitos da criança e do adolescente tenha atuado mais, nós chamamos os alunos das escolas e realizamos uma oitiva no nosso auditório para receber as demandas desse movimento. Nós também fomos a algumas escolas ocupadas e participamos de várias mediações que foram realizadas naquele período com a Secretaria de Educação. Temos um expediente aberto aqui no Centro de Referência sobre o caso da ocupação da Sefaz (Secretaria Estadual da Fazenda). Fomos acionados por uma pessoa, que é maior de idade e participou daquele episódio. Emitimos uma nota defendendo que a ação do Ministério Público neste caso fosse semelhante aquela tomada em relação aos adolescentes, que estabeleceu o arquivamento dos expedientes sobre possíveis atos infracionais. Nossa atuação foi justamente pela não criminalização desse movimento dos estudantes.

Nós promovemos uma audiência pública na Assembléia Legislativa para tratar da violência policial contra movimentos sociais. O crescimento desta tendência nos causa muita preocupação. A história do nosso pais é marcada pela ausência de uma ruptura em favor da democracia. É uma história de concessões e conciliações, sem uma ruptura democrática, o que faz com que tenhamos dificuldade para fazer prevalecer os valores democráticos e os direitos fundamentais. Isso está aparecendo agora de uma forma escancarada, como presenciamos recentemente nas próprias eleições municipais. Esse processo de recrudescimento e de construção de estereótipos é, muitas vezes, alimentado pela mídia que fica repetindo e alimentando, por exemplo, preconceitos contra os defensores dos direitos humanos.

A criminalização dos defensores dos direitos humanos é uma forma de sufocar a defesa de conquistas e a luta por direitos. O objetivo da criminalização é impedir que eu continue nesta luta, colocando à minha frente uma série de empecilhos, como a abertura de um processo criminal e a própria possibilidade de prisão.

Sul21: Esse processo de criminalização parece ter um pé também no Judiciário e no Ministério Público, com o crescimento do punitivismo em detrimento do garantismo que, até bem pouco tempo, era a tendência dominante no nosso sistema de Justiça. O trabalho desenvolvido no Centro de Referência defronta-se com esse problema do aumento do punitivismo no Judiciário?

Mariana Cappellari: Muito. Tanto é assim que a Defensoria tem tentado atuar bastante na esfera extra-judicial. Nós já temos uma empresa de psicologia que faz a mediação de conflitos em nossa central de atendimento e estamos nos preparando para começar a trabalhar com justiça restaurativa. Hoje, percebemos uma politização do poder Judiciário e uma judicialização da política. Nós temos hoje um poder Executivo convivendo com uma grande instabilidade e um poder Legislativo muito inerte. Com isso, a sociedade parece estar colocando sobre o Judiciário a expectativa de solução de determinadas demandas. O problema é que o Judiciário não é apto para resolver tais demandas, mas está tomando para si esse encargo. Eu acho isso muito perigoso. Em primeiro lugar, pela questão da ausência de representatividade. Em segundo, porque o que estamos vendo é uma expansão extrema do punitivismo em detrimento de garantias fundamentais. É como se não pudéssemos conviver mais com essas garantias. Mas o devido processo legal existe para que seja possível punir mantendo-se determinadas garantias.

˜Estamos regredindo nas poucas conquistas que tivemos e isso não é algo isolado˜. (Foto: Maia Rubim/Sul21)
˜Estamos regredindo nas poucas conquistas que tivemos e isso não é algo isolado˜. (Foto: Maia Rubim/Sul21)

Enfrentamos outra dificuldade que é o acionamento do Judiciário. Nós temos o caso de uma idosa que estava numa pensão do Centro de Porto Alegre. O CRAS (Centro de Referência em Assistência Social) nos procurou porque ela estava em estado vegetativo em uma cama, sem parentes nem documentos. Essa pessoa ia ser despejada do local pois não estava pagando. Nós não conseguimos um acolhimento na rede municipal e tivemos que judicializar o caso. O Judiciário demorou a responder e não nos concedeu uma medida liminar. Por um lado, temos aí um distanciamento da realidade. Por outro, parece que temos uma negativa de prestação jurisdicional em determinadas demandas e o recrudescimento em outras. E o papel do Judiciário, é bom não esquecer, é o de ser garantidor de direitos.

Eu nunca pensei que iria vivenciar isso na minha vida. Eu vi as Diretas Já e estudei a Constituição de 1988 na minha escola. Os professores apresentavam a Constituição para nós como uma grande conquista da sociedade. Depois, em 1990, nós estudamos o Estatuto da Criança e do Adolescente. Agora, estamos regredindo nas poucas conquistas que tivemos e isso não é algo isolado, aparecendo em praticamente todas as áreas inclusive no sistema de justiça. Em função disso, tenho dito que esse é um momento de luta, não só dos movimentos sociais, mas também uma luta individual de cada um de nós para reafirmarmos a importância dos direitos que conquistamos.

Sul21: Neste cenário de aumento do punitivismo e da repressão aos movimentos sociais, o papel da Defensoria deve se tornar mais importante ainda…

Mariana Cappellari: Exatamente. O papel fundamental da Defensoria Pública é fazer a defesa dos direitos. A Reforma do Judiciário, de 2004, deu autonomia financeira e administrativa às defensorias. Aqui no Rio Grande do Sul, essa autonomia foi inserida na Constituição do Estado em 2006. A partir daí passamos a ser uma instituição autônoma como o Ministério Público e a ampliar a nossa esfera de ação. Conquistamos a legitimidade para instaurar ações civis públicas, embora o Ministério Público tenha contestado, sem sucesso, essa legitimidade por meio de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal.

Sul21: Como avalia as recentes decisões do Supremo Tribunal Federal que vem abandonando uma linha garantista de direitos que defendia até bem pouco tempo?

"Já no julgamento do mensalão, tivemos uma construção distante das bases do direito penal com vários conceitos sendo deturpados˜. Foto: Maia Rubim/Sul21
“Já no julgamento do mensalão, tivemos uma construção distante das bases do direito penal com vários conceitos sendo deturpados˜. Foto: Maia Rubim/Sul21

 Mariana Cappellari: Considero a repercussão dessas decisões muito preocupantes. Para mim, o golpe de misericórdia aconteceu com a decisão referente à presunção de inocência, determinando a possibilidade de execução provisória da pena. Isso tem um simbolismo muito grande que talvez as pessoas não tenham percebido. Tínhamos uma interpretação da presunção de inocência que estava de acordo com o texto constitucional. A presunção de inocência é um princípio basilar do nosso estado de direito e está vinculada a uma série de princípios democráticos. Ela tem uma dimensão de regra de tratamento, que afirma que eu sou inocente até uma condenação em contrário, e também relacionada ao ônus da prova. O nosso texto constitucional é claro quanto a isso. O problema dessa e de outras decisões do Supremo é a construção que se fez para simplesmente não aplicar a Constituição. Isso é o mais grave nestas decisões que vão acabar vinculando as decisões dos tribunais.

Tivemos também a alteração da lei sobre a necessidade de mandado de busca e apreensão para ingresso em residências. O artigo quinto da Constituição diz que “a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial”. Logo após essa decisão tivemos outra que autorizou o acesso às contas bancárias sem necessidade de autorização judicial. Antes disso, já no julgamento do mensalão, tivemos uma construção distante das bases do direito penal com vários conceitos sendo deturpados.

As dez medidas contra a corrupção também caminham nesta direção, prevendo, entre outras coisas, a restrição da utilização do habeas corpus, algo que nós tivemos lá no AI-5, e a utilização de provas ilícitas. Nós somos a favor da luta contra a corrupção, mas sem a redução de direitos. Precisamos fazer isso dentro da democracia e entender que a corrupção é muito mais estrutural do que a gente possa imaginar. Não vai ser com a violação de direitos que conseguiremos romper com isso. Nós vamos pagar um preço muito alto se essas medidas forem aprovadas.

Sul21: Isso significa que, por meio dessa construção, já temos instrumentos legais para justificar um regime autoritário?

Mariana Cappellari: Sim. Agamben nos fala da existência de estados de exceção embutidos nas democracias atuais. E o jurista argentino Eugênio Raul Zaffaroni diz que não existe um estado de direito perfeito, sempre existindo dentro dele um estado policial. O que precisamos é conter a ascensão desse estado policial, zelando pelas bases do estado de direito. Temos uma disputa permanente aí.


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