Entrevistas|z_Areazero
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8 de agosto de 2016
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10:58

‘Água que bebemos é de baixa qualidade. Nossos parâmetros estão ultrapassados’

Por
Sul 21
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Fernando Spilki: "Nós evoluímos técnica e metodologicamente, mas seguimos usando parâmetros de 30 ou 40 anos atrás. Esses parâmetros são insuficientes". (Foto: Maia Rubim/Sul21)
Fernando Spilki: “Nós evoluímos técnica e metodologicamente, mas seguimos usando parâmetros de 30 ou 40 anos atrás. Esses parâmetros são insuficientes”. (Foto: Maia Rubim/Sul21)

Marco Weissheimer

Como ocorre em outros grandes centros urbanos do país, a população que vive na Região Metropolitana de Porto Alegre está consumindo uma água de baixa qualidade. Dos dez rios brasileiros mais contaminados, três estão localizados nesta região e desembocam no Guaíba: Sinos, Jacuí e Caí – todos eles fortemente impactados, especialmente por esgoto doméstico. Essa água atende os parâmetros previstos na legislação brasileira, mas estes se tornaram insuficientes para da conta dos desafios do presente, como estamos vendo agora com a situação da água de Porto Alegre. A avaliação é do professor Fernando Spilki, pesquisador do laboratório de microbiologia molecular da Feevale e responsável por um recente estudo encomendado pela Associated Press sobre a qualidade da água da Bacia da Guanabara.

Doutor em Genética e Biologia Molecular pela Universidade Estadual de Campinas, Spilki aponta o anacronismo dos parâmetros que seguem sendo utilizados no Brasil para analisar a qualidade da água. “Nós evoluímos técnica e metodologicamente, mas seguimos usando parâmetros de 30 ou 40 anos atrás. Esses parâmetros são insuficientes. A nossa legislação é flácida, permitindo um risco muito maior do que seria aceitável”, afirma, em entrevista ao Sul21. Mas o problema, acrescenta, não se resume à baixa qualidade da água: “Nós fomos acabando com a região ribeirinha dos rios, acabando com as regiões de banhado e com a possibilidade de preservação de água. A qualquer momento em que falta chuva, nosso sistema de abastecimento vai para o buraco”.

O pesquisador alerta para a gravidade desse quadro e chama a atenção para o fato de o saneamento ter saído da agenda mais uma vez: “Todos somos culpados por essa situação: setor público, setor privado e a sociedade como um todo. Nós, brasileiros, aceitamos essa situação. Achamos que está tudo bem. Se tiver água, wi-fi e tv a cabo em casa, não interessa se não tem esgoto. Só interessa quando estoura uma bomba e falta água. Aí viramos todos ambientalistas”.

Sul21: Como iniciou esse trabalho de pesquisa com a microbiologia da água, associada a questões ambientais?

Fernando Spilki: Sou veterinário de formação e trabalho com virologia há 20 anos, desde o início da minha graduação. Eu trabalhava com virologia em animais e humanos. Quando vim para a Feevale, há sete anos, vim com o objetivo de trabalhar com questões ambientais associadas à virologia. Quando comecei a fazer isso, não havia mais do que quatro grupos no Brasil trabalhando com esse enfoque. Temos feito estudos tentando ver em que medida os marcadores que utilizamos para avaliar a qualidade da nossa água dão uma noção da realidade. Nós sabemos, na literatura científica, que o que utilizamos como marcação não está completo. Uma água pode atender quarenta parâmetros das normativas oficiais e ainda apresentar problemas.

"Os marcadores de coliformes fecais não dão mais conta de analisar o perfil microbiológico da água que a gente tem." (Foto: Maia Rubim/Sul21)
“Os marcadores de coliformes fecais não dão mais conta de analisar o perfil microbiológico da água que a gente tem.” (Foto: Maia Rubim/Sul21)

Sul21: Quais são esses marcadores que utilizamos no Brasil?

Fernando Spilki: No âmbito da microbiologia, especificamente, nós trabalhamos com coliformes. Ainda se faz e ainda está previsto fazer análise de coliformes totais e, a partir daí, dar o veredito se a água está própria ou não para consumo pela análise de uma fração dela. Mas, lamentavelmente, esses marcadores de coliformes fecais foram criados e desenvolvidos em um tempo em que a preocupação no Ocidente era com doenças como febre tifoide e cólera, doenças que hoje estão praticamente erradicadas, ocorrendo muito esporadicamente em condições sanitárias muito baixas. Esses marcadores de coliformes fecais não dão mais conta de analisar o perfil microbiológico da água que a gente tem.

De certo modo, o que acontece é que já se desenvolveu toda uma tecnologia nos anos 30 40 para eliminá-los da água. Hoje, se capta a água, elimina-se os coliformes e a gente diz que a água está saudável. É como se tivéssemos inventado o termômetro e seguíssemos analisando tudo pela temperatura. Não é assim. Em medicina, às vezes, a gente tem uma doença crônica e não sabe, o que obriga o médico a realizar outros tipos de exames para descobrir que doença é essa. O mesmo se aplica ao meio ambiente. Nós temos o desenvolvimento de novas técnicas e parâmetros de análise que não são acompanhadas pela legislação. Os setores público e privado, que precisam lidar com essa situação, procuram manter os parâmetros vigentes, o que faz com que toda essa nova tecnologia esteja associada fundamentalmente a um marcador que já não dá conta da situação relacionada à qualidade da água.

O mesmo se aplica ao tratamento de esgoto. A gente mede por um marcador e diz que está tudo bem. Mas não está tudo bem. Já sabemos que, fora desse marcador (dos coliformes fecais), vai passar vírus, protozoário e um monte de bactérias que os coliformes fecais não vão marcar. Essa é a situação que vivemos hoje.

Sul21: Além dos coliformes fecais, quais seriam outros marcadores que deveriam estar sendo levados em conta na análise da qualidade da água?

Fernando Spilki: Em nosso trabalho, nós vemos muitas amostras de água potável e de água bruta de rios, poços e outras fontes onde nós não temos mais coliformes fecais, mas temos vírus causadores de diarreia, criptosporidium (protozoário causador de doenças gastrointestinais) e outros microorganismos que a gente não buscou pelos marcadores vigentes. Temos milhares de exemplos. Isso não vai acontecer só em microbiologia, mas também com contaminantes químicos. Analisa-se um conjunto de contaminantes químicos, previstos na legislação, mas vai passar ao largo um monte de contaminantes diferentes. Esse sistema não é robusto o suficiente para dar garantias quando acontece algo que não se consegue explicar por esses marcadores.

"É sempre o mesmo discurso. O gestor público diz: pelos atuais parâmetros previstos na legislação, está tudo bem". (Foto: Maia Rubim/Sul21)
“É sempre o mesmo discurso. O gestor público diz: pelos atuais parâmetros previstos na legislação, está tudo bem”. (Foto: Maia Rubim/Sul21)

Sul21: Como está acontecendo com Porto Alegre agora…

Fernando Spilki: Sim, como o que está acontecendo agora em Porto Alegre. A gente começa a investigar e até procura um marcador novo. Você acha e coloca a culpa nele, mas não há garantia que seja de fato ele, pois não se tem um histórico do mesmo. Podem ser múltiplas causas, fontes diversas de contaminação. O problema não é falta de metodologia. Hoje, tanto na microbiologia como na química, há metodologia capaz de apontar o problema para além dos marcadores vigentes hoje. Só que isso não é feito por um motivo muito simples: não está previsto na legislação. É sempre o mesmo discurso. O gestor público diz: pelos atuais parâmetros previstos na legislação, está tudo bem.

É como um médico dizer para um paciente. Meus parâmetros para dizer se você está doente são febre, coriza e tosse. Se você não tem nenhum dos três, está tudo bem. Não é assim que as coisas funcionam, mas no meio ambiente é isso o que vem acontecendo. Há uma determinada lista de parâmetros que é seguida e pronto. Isso até pode servir para o café pequeno do dia-a-dia, quando está indo tudo bem. O dia que acontece algo diferente, me ralei.

Enfrentamos dois problemas graves em nossa regulamentação ambiental. O primeiro, gravíssimo, é como são calculados os índices máximos permitidos desses parâmetros. O mundo inteiro funcionava assim até o momento. Não é, portanto, um pecado exclusivamente nosso. Isso ocorre da seguinte forma: para calcular os índices máximos permitidos, monta-se uma comissão tripartite, reunindo representantes da academia, do órgão responsável pela produção de água e do órgão regulador. Esses representantes se reúnem e, para cada um deles, pergunta-se quanto pode ser permitido para o elemento “x”. O representante da academia avalia que até pode não ser possível, mas o ideal seria ser zero. A companhia de água diz que se for zero o trabalho dela vai ficar muito difícil e propõe que seja 2,5. Aí vem o órgão regulador e diz: vamos colocar 5 porque menos que isso não teremos condições de detectar.

O processo que a gente vê acontecer em países mais desenvolvidos nesta área é algo assim: nós realizamos um estudo ao longo do tempo usando esse parâmetro e verificamos que, quando chega a 1,2, estoura o número de atendimentos no sistema de saúde, por uma doença ligada a esse parâmetro; então, vamos fixar esse índice em 1. Ou seja, a definição é feita a partir do risco. Aqui no Brasil, nós não definimos esses índices a partir do risco, mas sim a partir do que é possível conseguir e do que é possível detectar.

Sul21: No caso do Brasil, essa escolha não passa também pela questão do custo?

"A nossa legislação é flácida, permitindo um risco muito maior do que seria aceitável". (Foto: Maia Rubim/Sul21)
“A nossa legislação é flácida, permitindo um risco muito maior do que seria aceitável”. (Foto: Maia Rubim/Sul21)

 Fernando Spilki: Essa questão do custo é uma discussão muito interessante. Temos uma riqueza importante neste processo que é a competência da maioria dos indivíduos que trabalham na parte técnica nas companhias de água e de esgoto e também nas agências. O pessoal técnico é excelente. Quando fazemos esse debate aparece o tema do custo. Alguém sustenta que detectar um determinado agente é muito caro. Aí vamos visitar o laboratório com o qual essa pessoa trabalha e descobre que, para outros agentes, eles têm um equipamento que é sete ou oito vezes o preço do equipamento que seria necessário para analisar o agente em questão. Além disso, a técnica que utilizam também é cinco ou seis vezes mais cara. O que falta aí é treinamento e vontade de fazer. Às vezes, não é exatamente a área com que aquele laboratório trabalha.

Outra coisa que acontece, aí no âmbito da gestão, é afirmar que não existe um parâmetro definido para determinada questão ou dizer que nenhum país usa ou só um país utiliza como desculpa para não fazer alguma coisa. Nós evoluímos técnica e metodologicamente, mas seguimos usando parâmetros de 30 ou 40 anos atrás. Esses parâmetros são insuficientes. A nossa legislação é flácida, permitindo um risco muito maior do que seria aceitável. Ela permite muito mais do que encontramos em legislações de outros países e não estou falando só de Europa. Se compararmos com as legislações de balneabilidade e de potabilidade da água de países como Uruguai, Argentina e Colômbia os nossos parâmetros são assustadoramente altos. Além disso, o que está contido lá dentro não dá mais conta dos desafios emergentes que temos diante de nós neste século.

Há coisas quase tradicionais que já são usadas há pelo menos 20 anos em outros países, baseadas em técnicas fáceis de fazer, com outras bactérias, que nós simplesmente não adotamos em nossa legislação a não ser em momentos excepcionais como agora nos Jogos Olímpicos, quando resolveram adotar enterococcus como parâmetro de avaliação. Esse parâmetro é padrão de balneabilidade nos Estados Unidos. Eles nem usam mais coliformes fecais para analisar a água do mar, só para citar um exemplo. Os parâmetros que adotamos, repito, não dão mais conta da realidade que enfrentamos. O número de surtos de diarreia, que é uma condição endêmica no Brasil, principalmente entre as crianças, é um exemplo disso. É um dos maiores índices de atendimento nas Américas.

Outra coisa que demonstra que esses parâmetros não dão mais conta é que, não raro, encontramos esse tipo de situação que está acontecendo agora em Porto Alegre. De repente, surge um problema que não conseguimos resolver pelos parâmetros normais. Tenho acompanhado as análises que a Fepam vem divulgando. Segundo os atuais parâmetros legais, está tudo ok, tudo dentro do tradicional. Não há nenhuma mudança significativa em relação ao histórico que se tem.

05/08/2016 - PORTO ALEGRE, RS - Entrevista com Professor de Microrganismos, Fernando Spilki da Feevale. Foto: Maia Rubim/Sul21
Em ambientes urbanos a situação tem se tornado muito difícil, como estamos vendo agora em Porto Alegre. (Foto: Maia Rubim/Sul21)

Sul21: Esses parâmetros previstos na legislação brasileira se aplicam integralmente a todos os estados e municípios ou estes têm autonomia para introduzir mudanças?

Fernando Spilki: A legislação estadual pode se sobrepor à legislação federal, cobrando mais coisas ou baixando o limite de determinados parâmetros. Isso acontece. O Conselho Estadual do Meio Ambiente, por exemplo, tem algumas normas um pouco mais restritivas para alguns parâmetros. Mesmo assim, eu diria que, se formos analisar condições de saúde pelos parâmetros atuais, não temos uma situação ideal. As nossas regulamentações são anacrônicas e quando a gente acha que elas vão evoluir, elas acabam aumentando ainda mais os limites aceitos em função de um pedido das companhias ou algo do tipo. Causa-me muita estranheza, nestas discussões, quando alguém diz que não consegue alcançar determinado índice em alguma bacia do São Francisco, por exemplo. Aí, em função dessa dificuldade, se estabelece uma regulação para o Brasil inteiro. Em ambientes urbanos a situação tem se tornado muito difícil, como estamos vendo agora em Porto Alegre.

Sul21: Considerando a relação entre a contaminação causada por esgotos domésticos e a poluição industrial na Região Metropolitana de Porto Alegre, qual é o quadro atual?

Fernando Spilki: Nós fizemos um longo trabalho com a Corsan sobre o rio dos Sinos, onde nós analisamos a parte microbiológica e eles analisaram mais de 200 parâmetros, entre eles muito relacionados a efluentes industriais. No rio dos Sinos, que conhecemos bem, não dá para dizer que há mais nenhum impacto da indústria. Ele continua ocorrendo, mas não é mais tão importante quanto é hoje o impacto do esgoto doméstico no rio dos Sinos. E acredito que essa situação se repete no Caí, no Jacuí, no Gravataí…Esse é o quadro que temos na região metropolitana. No caso de Porto Alegre, o problema pode estar relacionado ao tratamento de rejeitos industriais que é realizado na região do bairro Navegantes, mas se olharmos para a lista do que é entregue para a empresa (Cettraliq) tratar, a gente nota que ali pode ter rejeitos que estejam contaminados com esgoto.

Não vou citar o nome da empresa, mas eu cheguei a ver casos de um conglomerado importante de tratamento de resíduos industriais da Região Metropolitana, que tinha todos os parâmetros para tratamento de rejeitos químicos dentro da unidade, mas o que estava saindo e causando problema eram coliformes fecais. O problema, neste caso, é que os banheiros dessa empresa estavam ligados a um sistema que não era adequado para tratar esgoto doméstico. Sabemos que muitos efluentes de aterros sanitários, usados inadequadamente para resíduos industriais aqui no Vale do Sinos, por exemplo, acabaram sendo levados para tratamento nesta empresa em Porto Alegre. A experiência que temos aqui com esses rejeitos é que eles têm contaminação por coliformes.

O problema aí não é especificamente a contaminação por coliformes. Se está indo carga biológica em um montante alto para lá, isso pode ser um fator causador de crescimento de algas ou bactérias que vão produzir toxinas que podem ser responsáveis pelo problema do cheiro da água. Essa é uma hipótese, mas, repito, só com os parâmetros previstos na legislação atual não há como ter certeza disso.

"A experiência que temos aqui com esses rejeitos industriais é que, muitas vezes, eles têm contaminação por coliformes. (Foto: Maia Rubim/Sul21)
“A experiência que temos aqui com esses rejeitos industriais é que, muitas vezes, eles têm contaminação por coliformes. (Foto: Maia Rubim/Sul21)

Além desse tipo de contaminação, nós temos outro problema que são as ligações clandestinas. Em 2011, nós fizemos um trabalho na região do Lami e de Ipanema, onde há uma contaminação bastante forte por vírus entéricos e coliformes. Sabemos que há um esforço do poder público para tratar o esgoto naquela região, lançando-o, tratado, mais adiante. Mas tem um probleminha que não conseguimos resolver, que são as ligações clandestinas das fossas sépticas das casas no sistema de esgotamento pluvial. Não estamos falando de um ou dois casos. As pessoas ligam a fossa séptica no sistema de esgotamento da chuva. Como é que se controla isso?

Estima-se que temos 30% de tratamento de esgoto no Brasil, que é um índice baixíssimo. No Rio de Janeiro, onde estão ocorrendo as Olimpíadas agora, a estimativa é de 50% de tratamento de esgoto. Aí vem uma ação de Polícia Federal e diz que esse número está errado e que é apenas 10% do esgoto que está sendo tratado. Além de termos número baixos, eles muitas vezes estão inflados. E temos fontes difusas de esgoto, não mapeáveis, que dificultam a análise. Voltamos à importância dos marcadores. Se tivéssemos uma análise mais ampla que buscasse, pelo menos em situações de emergência, avaliar outros parâmetros, ficaríamos mais seguros.

Sul21: Como você definiria, de modo geral, a qualidade da água que consumimos hoje?

Fernando Spilki: Eu diria que a água potável que sai da torneira ainda é a melhor água que temos disponível. Por incrível que pareça, a legislação para ela, por mais que seja flácida, é a mais restritiva. Ela não tem uma qualidade excelente, mas é uma água segura. O problema é o que pode estar passando, que a gente não tem conhecimento, e essas situações de crise como a vivida agora em Porto Alegre, quando ficamos sem ter uma noção dos riscos. Mas a água potável produzida pelas companhias é ainda a melhor água que temos disponível. Ela é muito mais segura, por exemplo, que a água de poço, que sofre uma contaminação crônica do lençol freático. O poço está exposto o tempo todo a essa contaminação. Temos centenas de amostras de água de poço, comparando com centenas de amostras de água de torneira, que atestam isso. A própria água mineral tem uma situação complicada.

Sul21: Mas parece haver uma desconfiança da população em relação à água da torneira. Quem tem condições econômicas, opta por alternativas como garrafões de água mineral, filtros de barro, entre outras. Você, por exemplo, consome que tipo de água em sua casa?

Fernando Spilki: Eu tomo água fervida. Nós fervemos diariamente uma quantidade de água para beber e para cozinhar. Nós recomendamos esse método em propriedades rurais aqui no Vale do Sinos, por exemplo, onde há muita contaminação da água. Alternativas como o filtro de barro, por exemplo, tem uma eficácia muito discutível, pois ele deixa passar a maioria dos patógenos. Carvão ativado também tem um efeito limitado. Um ozonizador que realmente funcione é muito caro. O ideal é ter bom senso e procurar associar tudo o que é possível

Outro problema que precisaremos enfrentar em um futuro próximo aqui no Brasil é a questão da caixa d’água. Nós já fizemos essa experiência de comparar uma água coletada numa vertente ou num poço com a de uma água que passa por uma caixa d’água. A contaminação na caixa d’água fica se acumulando ao longo do tempo. Alguns dos patógenos com que a gente trabalha duram meses, quiçá anos. É importante lembrar que utilizamos a caixa d’água pelo problema do desabastecimento. Ninguém pode garantir que, daqui a uma semana, não vai faltar água durante algumas horas ou mesmo dias no bairro onde mora. E, muitas vezes, não é por falta de água no rio, mas sim por que o sistema de distribuição não dá conta, pela falta de manutenção preventiva, entre outros problemas. Então, temos problemas estruturais graves não só no que diz respeito à qualidade da água, mas também à quantidade.

"A água mineral é retirada do subsolo e as águas subterrâneas brasileiras estão extremamente contaminadas". (Foto: Maia Rubim/Sul21)
“A água mineral é retirada do subsolo e as águas subterrâneas brasileiras estão extremamente contaminadas”. (Foto: Maia Rubim/Sul21)

 Sul21: Você também colocou a água mineral na relação de alternativas problemáticas. Qual é o problema exatamente?

Fernando Spilki: A água mineral também enfrenta um problema de parametrização muito grande, pois ela tem uma legislação ainda mais flácida. Para você ter uma ideia, segundo essa legislação, uma em cada cinco garrafas de um lote pode conter alguma contagem de bactérias. É, portanto, um parâmetro muito menos restritivo do que aquele que vale para a água de torneira de uma cidade, onde o que é permitido é uma amostra com valor acima do permitido para cada 1.500 amostras. A água mineral é retirada do subsolo e as águas subterrâneas brasileiras estão extremamente contaminadas. Já mostrei dados de contaminação fecal em encontros que reuniram alguns dos principais geólogos brasileiros e eles me disseram: Qual a novidade? O que você esperava? Você já notou que na garrafinha de água mineral não aparece registro de nitrogênio e fósforo? Os marcadores químicos de contaminação fecal não aparecem no rótulo.

Não estou dizendo que não existam fontes muito menos contaminadas ou não contaminadas, mas o padrão não é esse. Esse é outro problema importante que precisaremos enfrentar. Estima-se que cerca de 60% do consumo de água no Brasil é de água mineral. Quando cito esse dado em algum fórum internacional, as pessoas ficam espantadas.

Sul21: Qual a dimensão do consumo de água via poços?

Fernando Spilki: É muito grande. Aqui na nossa região, por exemplo, há uma facilidade de perfurar poços e encontrar água a profundidades não muito grandes. Muitas prefeituras da Região Metropolitana estimulam que seja feito poço e que ele seja analisado a cada seis meses. Quando produzimos água a partir de um rio precisamos tomar algumas medidas a cada duas horas. É claro que, neste caso, estamos lidando com muito mais gente, mas quem está morando naquele condomínio que abriu um poço está muito mais exposto. O rio ainda é possível tratar, mas como é que você vai tratar uma água subterrânea? Na Inglaterra, as autoridades mapeiam os surtos de diarreia de uma maneira muito mais eficaz que nós, determinando o fechamento de poços quando um problema é detectado. Eles realizaram pesquisas que mostram que a maioria dos surtos de diarreia na região de Londres está associada à água de poço.

Sul21: Considerando o sistema de rios aqui na Região Metropolitana que acabam confluindo para o Guaíba, a situação da poluição melhorou ou piorou nos últimos anos?

Fernando Spilki: O que mais impacta esses rios é o esgoto doméstico. As bacias desses rios foram fortemente impactadas por um processo completamente desordenado de urbanização. A Agência Nacional de Águas e outras instituições estimam que nós estamos em uma das quatro regiões brasileiros com maior stress hídrico em termos de qualidade e de quantidade de água. Quando se fala em stress hídrico as pessoas costumam pensar muito em quantidade, mas nós temos um problema de qualidade da água gravíssimo. Estamos numa região onde pode faltar água, porque estamos muito suscetíveis às variáveis ambientais. Não estou falando que precisamos construir barragens, pois isso tem um custo social absurdo. O que estou dizendo é que nós fomos acabando com a região ribeirinha dos rios, acabando com as regiões de banhado e com a possibilidade de preservação de água. A qualquer momento em que falta chuva, nosso sistema de abastecimento vai para o buraco.

Mas como eu disse, o problema não é só quantidade. A qualidade da nossa água é muito baixa. Dos dez rios brasileiros mais contaminados, três estão nesta bacia da Região Metropolitana (Sinos, Jacuí e Caí). É uma situação muito preocupante. Agora está se falando em mudar o ponto de captação. No rio dos Sinos e no Caí, para falar de dois rios que conheço mais, há lugares com melhor qualidade de água para a captação. Tenho certeza que no Jacuí também há. Mas qualquer um desses rios, assim como o Lago Guaíba, estão sendo impactados de uma maneira muito intensa. O meu medo diante dessas notícias de mudança de ponto de captação é quanto ao futuro. O que vamos fazer? Vamos esperar a situação ficar insustentável de novo daqui 15 anos para daí tomar outra medida ou vamos começar a fazer algo?

Temos 4,5% de tratamento de esgoto na bacia do Sinos, para um milhão e meio de habitantes. Esse índice se resume, praticamente, a dois grandes condomínios aqui de Novo Hamburgo. O resto todo vai direto para o rio, a partir de uma fossa séptica que é drenada pela chuva ou é canalizado diretamente para dentro do rio. A se manter essa situação, não adianta mudar o ponto de captação. A perenidade dessa medida é muito discutível.

"Aqui no rio dos Sinos, oficialmente, há dois anos que a bacia não é fiscalizada e monitorada pelo órgão regulador. (Foto: Maia Rubim/Sul21)
“Aqui no rio dos Sinos, oficialmente, há dois anos que a bacia não é fiscalizada e monitorada pelo órgão regulador.
(Foto: Maia Rubim/Sul21)

Esse quadro tem uma razão histórica. O plano de saneamento elaborado nos anos 60 e 70 deu conta de tentar universalizar o tratamento e distribuição de água. Essa foi a ideologia imposta pelos militares. Mas eles esqueceram algo importante: que, para termos água para tratar, de qualidade adequada, precisamos tratar esgoto. Isso ficou para trás. Nos anos 2000, começou a se fazer algo nesta direção até que, entre 2011 e 2012, com a crise financeira, esse tema saiu da agenda. Hoje, o saneamento está fora da agenda.

Vejo cidades comemorando que vão evoluir de 27 para 40% de tratamento de esgoto. A gente bate palmas, mas, falando do ponto de vista acadêmico, enquanto a gente não passar de 80 ou 90% de saneamento, lamento dizer, é quase como se não tivesse sido feito nada. Eu sei que a academia às vezes é terrível, quer o melhor, mas não tem como oferecer a melhor concertação social para que isso ocorra. Tenho certeza disso. Mas nós conseguimos avaliar água de torneiro, ao longo do tempo ou em diferentes cidades como já fizemos aqui no Rio Grande do Sul, e relacionar o resultado com a taxa de tratamento de esgoto que tenho em uma determinada bacia. Antes de encostar em algo muito próximo de 80%, os resultados não variam muito. Todo esforço é meritório, mas é preciso ter em mente esse quadro.

A gente entende as dificuldades do poder público. O que não dá para entender é a inação, é ter o recurso e não fazer o mais rápido possível. E isso acontece com a iniciativa privada da mesma forma quando ela está nesta situação. A empresa vive para atender as metas e os números da legislação, para não perder a licença de operação. Todos somos culpados por essa situação: setor público, setor privado e a sociedade como um todo. Nós, brasileiros, aceitamos essa situação. Achamos que está tudo bem. Se tiver água, hi-fi e tv a cabo em casa, não interessa se não tem esgoto. Só interessa quando estoura uma bomba e falta água. Aí viramos todos ambientalistas.

Aqui no Sinos, oficialmente, há dois anos que a bacia não é fiscalizada e monitorada pelo órgão regulador (Fepam). Talvez seja até há mais tempo. Para não falar do que acontece nos meses de verão onde, pelo que sabemos, não há um monitoramento adequado há quase vinte anos. No Litoral, a situação ambiental é gravíssima. Não há estrutura adequada para atender a população que vive ali durante o ano. De repente, essas cidades explodem de gente, sem as mínimas condições de saneamento. A gente sabe que esses órgãos possuem técnicos muito qualificados tentando fazer o seu trabalho no dia-a-dia, mas com uma estrutura completamente sucateada. Nós temos um trabalho junto às lagoas do Litoral Norte. Como era de se esperar, a situação não é nada boa.


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