Entrevistas|z_Areazero
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23 de maio de 2016
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11:48

‘Esquerda errou ao virar as costas para questão dos mortos e desaparecidos’

Por
Sul 21
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Suzana Lisbôa: "Eu fui muito atacada e acusada de querer confrontar a ditadura, o que poderia prejudicar a transição para a democracia". (Foto: Guilherme Santos/Sul21)
Suzana Lisbôa: “Eu fui muito atacada e acusada de querer confrontar a ditadura, o que poderia prejudicar a transição para a democracia”. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

Marco Weissheimer

Desde o desaparecimento de Luiz Eurico Tejera Lisbôa, seu marido e companheiro de luta contra a ditadura que se instalou no Brasil com o golpe de 1964, Suzana Lisbôa vem dedicando sua vida à causa dos familiares de mortos e desaparecidos nesta luta. Militante da Ação Libertadora Nacional (ALN), Suzana Lisbôa viveu na clandestinidade entre 1969 e 1978, quando começou a participar dos movimentos de anistia. No dia em que a Lei da Anistia era votada no Congresso Nacional, em 1979, Suzana localizou os restos mortais de seu marido, que havia sido enterrado com nome falso no Cemitério Dom Bosco, em Perus, na periferia de São Paulo. Essa descoberta foi um marco e impulsionou uma luta pela descoberta do paradeiro de desaparecidos na ditadura que permanece viva até hoje. A Lei da Anistia aprovada incluiu uma operação de varrer para debaixo do tapete assuntos “indesejáveis” como o paradeiro e as circunstâncias da morte de cerca de 150 pessoas que lutaram contra a ditadura e seguem “desaparecidas” no Brasil.

Em entrevista ao Sul21, Suzana Lisbôa fala sobre essa luta e lamenta que a esquerda brasileira, de um modo geral, tenha voltado às costas para a luta das famílias de mortos e desaparecidos, em nome de uma transição democrática sem maiores traumas. “Eu fui muito atacada e acusada por gente de esquerda de querer confrontar a ditadura, o que poderia prejudicar a transição para a democracia. Eu sempre me perguntei por que acabamos ficando sozinhos nesta história. Por que o Lula recebeu as Madres da Praça de Maio e não nos recebeu? Por que entidades como as Madres acabaram tendo uma repercussão tão grande dentro do Brasil e nós não?”. Para ela, o pragmatismo da esquerda brasileira que preferiu varrer esse tema para baixo do tapete, ajuda a explicar a atual onda conservadora no país e o ressurgimento de defensores da ditadura. Isso, adverte, pode ter um alto custo para a democracia no país. “Eu tenho certeza de que as coisas vão complicar aqui e estou com muito medo disso e raiva pelo que não foi feito para evitar que isso voltasse a acontecer”.

Sul21: O envolvimento com a questão dos mortos e desaparecidos durante a ditadura está relacionado com a tua própria história de resistência e luta contra essa ditadura instalada no país após o golpe de 64. Como iniciou essa história?

Suzana Lisbôa: Eu comecei a militar com esse tema dos familiares de mortos e desaparecidos ainda na clandestinidade. Eu fiquei clandestina de 1969 até o começo de 1978 mais ou menos, quando eu comecei a reaparecer. Fui militante da Ação Libertadora Nacional (ALN) junto com o Ico (Luiz Eurico Tejera Lisbôa). Ele e o Claudio Gutierrez foram condenados, em 1969, em um IPM (Inquérito Policial Militar), pela tentativa de reabertura do Grêmio do Julinho. Nós fizemos parte daquela primeira direção de esquerda da UGES (União Gaúcha dos Estudantes Secundários), no período 1967-1968, que era formada fundamentalmente por estudantes do Julinho. Em nome da UGES, nós viajamos pelo Estado e fizemos várias coisas.

"Em 1972, o Ico foi morto e eu fiquei clandestina até 1978. Desde aquela época eu comecei a participar dos movimentos de anistia". (Foto: Guilherme Santos/Sul21)
“Em 1972, o Ico foi morto e eu fiquei clandestina até 1978. Desde aquela época eu comecei a participar dos movimentos de anistia”. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

Em 1968, o Grêmio do Julinho havia sido fechado pela direção da escola e nós montamos uma barraca na frente, onde funcionava o que chamamos de Grêmio livre. Nós fizemos um abaixo assinado e o Gutierrez e o Luiz Eurico foram entregá-lo para o diretor da escola, Antonio Magadan, que chamou o DOPS e eles acabaram presos. Daí começou um processo por tentativa de reabertura de entidade ilegal. Eu e o Ico casamos em março de 1969, ano em que ocorreu o julgamento. Nós tínhamos certeza que ele seria absolvido. Em um primeiro momento, eles foram absolvidos, mas depois mexeram em alguma coisa relacionada a prazos de recursos e ficamos sabendo pelo jornal que ele tinha sido condenado. Era o final de 1969 e nós já estávamos militando na ALN. Achamos que eles fizeram aquilo para ferrar mesmo. Não tinha porque condenar uma pessoa pela tentativa de reabertura do Grêmio do Julinho. Então, neste período nós passamos para a clandestinidade. Foi na época da prisão do Frei Betto. Na época, nem sabíamos que ele era um frei.

Em 1972, o Ico foi morto e eu fiquei clandestina até 1978. Desde aquela época eu comecei a participar dos movimentos de anistia. As primeiras listas de desaparecidos que apareceram, publicadas pelas revistas Veja e Isto É, tinham cerca de 40 nomes. O Luiz Eurico era um deles. Eu comecei a partir da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos, da qual participo até hoje. No dia da votação da anistia no Congresso Nacional, nós denunciamos o encontro do corpo do Ico. Foi uma grande coincidência.

Sul21: Como foi que isso ocorreu?

Suzana Lisbôa: O Ico foi o primeiro desaparecido que nós localizamos enterrado, com nome falso, no Cemitério de Perus. Nós decidimos fazer essa denúncia no dia da votação da anistia no Congresso porque eles começaram a mexer nos corpos. Nós não achávamos que eles estivessem enterrando desaparecidos em cemitérios, mas sim jogando em qualquer canto. Quando encontramos o corpo do Ico, em 1979, passamos a procurar outros. Achamos que íamos encontrar muitos. No cemitério de Perus, achamos muita gente enterrada, mas não necessariamente desaparecidos. Na época, eram presos políticos enterrados com nome falso. Agora mudou a legislação e esses corpos que não foram entregues também são considerados desaparecidos. Nós montamos um grupo de busca, da qual participou o jornalista Ricardo Carvalho, que trabalhava na Isto É. A descoberta do corpo do Ico virou capa da revista.

"Pelo projeto de anistia do Figueiredo, os desaparecidos teriam um atestado de morte presumida, de paradeiro ignorado, o que a gente já teria no Código Civil. A ideia deles era burocratizar esse tema". (Foto: Guilherme Santos/Sul21)
“Pelo projeto de anistia do Figueiredo, os desaparecidos teriam um atestado de morte presumida, de paradeiro ignorado, o que a gente já teria no Código Civil. A ideia deles era burocratizar esse tema”. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

Foi um processo complicado. Eu fui muito atacada nesta época e fui acusada por gente de esquerda de querer confrontar a ditadura, o que poderia prejudicar a transição para a democracia. A direita, naquela época, dizia que, com o projeto da anistia, essa questão seria sepultada. Pelo projeto de anistia do Figueiredo, os desaparecidos teriam um atestado de morte presumida, de paradeiro ignorado, o que a gente já teria no Código Civil. A ideia deles era burocratizar esse tema. Nem um atestado de óbito a gente teria, como, aliás, até hoje a gente não tem. Aí nós apresentamos um atestado de óbito verdadeiro de um desaparecido enterrado com nome falso, que causou um impacto muito grande. O povo da esquerda ficou furioso, dizendo que a nossa atitude poderia prejudicar a abertura.

Sul21: Quem, exatamente, fez esse tipo de critica?

Suzana Lisbôa: Todo mundo que se pode imaginar. Prefiro não citar nomes, mas posso falar dos partidos. Nós tivemos muita dificuldade desde o começo no apoio a essa questão dos mortos e desaparecidos. Com a anistia, muita gente decidiu não falar mais do assunto. O PCdoB, por exemplo, tem quase a metade dos desaparecidos políticos. Do total de aproximadamente 150 desaparecidos, 69 são do Araguaia. Havia uma ação na Justiça e quando o Aldo Arantes depôs, ele disse que não sabia da guerrilha. O PCdoB nunca teve uma posição firme em relação a isso. Na época desse depoimento, o partido estava querendo se legalizar e eles não assumiam a guerrilha do Araguaia em toda a sua extensão. O PCB era contra que a gente fizesse qualquer coisa. A Maria Augusta Capistrano sofreu muito nessa época. Ela era uma militante de toda a vida do PCB e eles atacaram muito ela pela posição que ela tinha dentro da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos.

Desde essa época a história do revanchismo foi tomando cada vez mais corpo, chegando até o governo Lula, quando o Brasil foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos em função da questão do Araguaia. O (Nelson) Jobim começou então a fazer a busca dos desaparecidos, mas foi uma coisa só pró-forma. Na discussão do Plano Nacional de Direitos Humanos, quando o Paulo Vanucchi era ministro, nem constava o eixo Verdade e Memória. Foi o pessoal de Minas que conseguiu incluir na conferência. Quando saiu o PNDH 3, a discussão sobre o revanchismo voltou à tona. Em todo esse período, as nossas reivindicações foram sempre as mesmas: nós queremos saber onde estão, como morreram, quem matou, queremos a entrega dos corpos e a punição dos responsáveis. O que o Estado brasileiro fez em relação a essas nossas reivindicações? Nada.

A lei 9140, de 1995, que o Fernando Henrique fez, reconhece a morte de 136 desaparecidos e cria uma comissão para examinar os casos. Eu era contra participar dessa comissão, mas fui obrigada a participar porque eu era uma unanimidade entre as famílias. Hoje em dia não sou nem perto disso, mas naquela época era. Todo mundo concordava com o meu nome, eu tinha acesso ao pessoal do PSDB, ao próprio Jobim, ao Belisário, que foi secretário da Justiça do Covas. Então, eu acabei participando dessa comissão. Foi um trabalho muito forte, não em relação aos desaparecidos, mas aos outros. Os familiares tiveram que provar que a ditadura tinha mentido nas versões de suicídios, atropelamentos e tiroteios. Esse foi um grande avanço que ocorreu, mas em relação aos desaparecidos não avançou. Não houve busca dos desaparecidos nem nada.

No governo Lula, tínhamos uma expectativa enorme, especialmente em relação à abertura dos arquivos. Tínhamos certeza que eles seriam abertos. Não havia dúvida em relação a isso. No primeiro ano de governo, houve a sentença da juíza Solange Salgado na ação dos familiares do Araguaia, que era da década de 80, e o governo decidiu recorrer. O recurso foi uma coisa horrorosa, pior que os da ditadura. Chegava a dizer “quem sabe eles estão vivos por aí, quem sabe morreram de malária…”. A gente chorava, nem conseguia ler aquilo de tão horrível que era. Nesta época tive um embate muito forte. O Marcio Thomaz Bastos ligou para a minha casa para me contar que o governo havia decidido fazer o recurso. Eu não tinha relação com ele, só com o Zé Dirceu, que mandou ele ligar para mim e me informar sobre o que estava acontecendo. Mesmo assim eu fiquei na Comissão de 1995 até 2005, quando vi que não ia acontecer nada. Depois disso, voltei a fazer uma assessoria quando o Paulo Vanucchi assumiu como ministro. Eu achava que ele tinha uma postura diferente em relação a esses temas.

"Fizemos cartas ao presidente Lula que nunca foram respondidas. Ele nunca recebeu os familiares de mortos e desaparecidos em uma audiência". (Foto: Guilherme Santos/Sul21)
“Fizemos cartas ao presidente Lula que nunca foram respondidas. Ele nunca recebeu os familiares de mortos e desaparecidos em uma audiência”. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

O governo Lula, naquela época, tinha força para enfrentar a direita, mas ele não quis tomar conhecimento desse assunto. Fizemos cartas ao presidente Lula que nunca foram respondidas. Ele nunca recebeu os familiares de mortos e desaparecidos em uma audiência. Certa vez, chegou a ser marcada uma audiência, que depois foi desmarcada. Eu cheguei a fazer várias camisetas com fotos dos desaparecidos e a frase “A última luta que se perde é a que se abandona”. Na última hora o encontro foi desmarcado. Nós tivemos um encontro clandestino com ele no dia do lançamento do livro “Verdade e Memória”, que, teoricamente, é o relato daquela comissão especial que só existiu porque o Paulo Vanucchi fez. Fiquei três meses em Brasília fazendo aquele livro junto com ele. Passava as madrugadas dentro da Secretaria. Neste livro, tem muita coisa que eu discordo, pois a palavra final era dele. Os militares não queriam que o lançamento do livro ocorresse. A cerimônia atrasou e o Lula acabou recebendo um grupo de dez familiares. Ninguém ficou sabendo. Só quem falou sobre o encontro foi a Hildegard Angel, que estava presente e fez uma matéria sobre isso. Foi um encontro horrível, muito pesado.

Sul21: E com a presidenta Dilma, chegou a acontecer algum encontro?

Suzana Lisbôa: Com a Dilma também não aconteceu nada. Nunca fomos recebidos e fomos completamente alijados do processo de discussão da Comissão da Verdade. Não aceitaram a nossa participação. A Maria do Rosário chegou a fazer uma reunião aqui em Porto Alegre, com setores da esquerda, quando disse que nós estávamos atrapalhando a votação do projeto da Comissão da Verdade. Nós queríamos emendas àquele projeto que estava tramitando no Congresso e que, na nossa opinião, era falho em muitas coisas. O governo não permitiu que houvesse um debate sobre isso. Houve uma única discussão no Senado, na Comissão de Direitos Humanos. Muitos deputados se comprometeram a levar nossas emendas, o que acabou não acontecendo. A única pessoa que se manteve do nosso lado foi a Luiza Erundina, que encaminhou algumas das emendas que a gente propôs.

Eu achava que, quando a Dilma assumisse, iria retirar aquele projeto e nos chamar para discutir. Eu conheço a Dilma e sei o que ela pensa sobre esse assunto. Eu não sabia o que ela poderia fazer em função dos acordos que foram estabelecidos, mas eu achava que ela não repetiria a posição do Lula. Os familiares tiveram um encontro com ela no dia da apresentação da Comissão, se não me engano. Nos primeiros tempos da Comissão da Verdade, a gente nem entrava lá dentro. Havia um clima muito pesado contra nós. Diziam que nós queríamos ensiná-los sobre como fazer o trabalho. Mas, se você pegar o livro “Verdade e Memória” e os relatos da Comissão da Verdade, o que aparece é basicamente o nosso trabalho, anterior à Comissão. Não avançou muito.

Sul21: Na sua opinião, a Comissão da Verdade avançou em alguma coisa?

Suzana Lisbôa: Avançou. O trabalho da Comissão de Mortos e Desaparecidos serviu de gancho para a Comissão da Verdade. O que a Comissão fez foi avançar em alguns casos notórios, como o da morte de Rubens Paiva. No caso de Vladimir Herzog, acabou mudando o atestado de óbito dele. Já o do Luiz Eurico não mudou. Até hoje tenho o atestado de óbito dele como sendo suicídio. A Comissão também avançou em mostrar a cadeia de comando em alguns casos. Eu, até hoje, não li o relatório da Comissão Nacional da Verdade. Tenho vários volumes lá em casa, mas não consigo ler. Tenho um bloqueio.

"Eu sempre me perguntei porque acabamos ficando sozinhos nesta história. Por que entidades como as Madres acabaram tendo uma repercussão tão grande dentro do Brasil e nós não?" (Foto: Guilherme Santos/Sul21)
“Eu sempre me perguntei porque acabamos ficando sozinhos nesta história. Por que entidades como as Madres acabaram tendo uma repercussão tão grande dentro do Brasil e nós não?” (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

Dos desaparecidos localizados até hoje, o governo não fez nada. Fomos nós, os familiares, que localizamos. Nós temos cerca de 152 desaparecidos. Deste total, cinco foram localizados, entre eles o Luiz Eurico. Alguns corpos que estavam na Vala de Perus que, teoricamente, deveriam ser de desaparecidos, não eram. Cada vez que a gente encontrava um corpo com nome falso, a gente retirava da lista dos desaparecidos e colocava na lista dos mortos. A gente não fez isso com Luiz Eurico porque resolveu tratar esse caso como um símbolo.

Eu sempre me perguntei porque acabamos ficando sozinhos nesta história. Por que o Lula recebeu as Madres da Praça de Maio e não nos recebeu? Por que entidades como as Madres acabaram tendo uma repercussão tão grande dentro do Brasil e nós não? No próprio Fórum Social Mundial, quem tinha voz e acesso nos eventos mais significativos eram as Madres. Nós nunca tivemos. Eu dizia para mim mesma: um dia os historiadores vão nos ajudar a dizer o que aconteceu. Eu atuo nessa questão como familiar, não tenho nenhuma formação que me permita fazer análise sobre esse assunto. Mas, quando fui para a Argentina este ano, participar dos atos que marcaram os 40 anos do golpe, a minha ficha caiu. Primeiro chegaram na praça as Madres, com as abuelas, os hijos e as entidades de direitos humanos. Um mar de gente, 300, 400 mil pessoas, não sei dizer. Essa foi a primeira parte do ato. Na segunda, esse povo se retirou e vieram os partidos políticos, os sindicatos e os movimentos sociais, na mesma quantidade. Estavam todos ali para falar do golpe e lembrar os 30 mil mortos da ditadura. Quando se viu algo parecido aqui no Brasil? Nunca. Voltei da Argentina com a convicção de que não fomos nós, os familiares de mortos e desaparecidos, que erramos, mas sim a esquerda que nos abandonou.

Há alguns historiadores que sustentam que a anistia foi negociada com os militares. Não foi negociada coisa nenhuma. Ninguém sentou numa mesa de negociação para dizer “nós vamos aceitar isso e vocês aceitam aquilo”. Isso nunca aconteceu. Eles enfiaram goela abaixo o projeto da anistia. Houve algumas conquistas, é verdade. Os presos políticos estavam em greve naquela época. Mas desde aquela época havia um clima horrível contra nós. Um dirigente do PCB chegou a dizer: “Vocês querem túmulos para colocar flores? A gente empresta”. Nós tentamos aprovar uma CPI da tortura e não tivemos apoio da esquerda.

Na parte final do livro que fizemos tem umas páginas em preto com as fotos dos corpos que nós resgatamos dos arquivos do DOPS e do IML. Usamos muitas dessas fotos para fazer os processos. Em algumas delas são evidentes as marcas de tortura. Isso tudo a gente fez sozinho. Muitas vezes eu passei mal. Cheguei a parar na emergência da Câmara Federal certa vez. A gente ficava olhando as fotos, com lupas e lentes, para ver as marcas de tortura e fazer relatórios. Quando você faz isso com fotos de pessoas que foram seus amigos é terrível.

"O Brasil é o único país onde é um crime a gente buscar os responsáveis pelos crimes que foram cometidos na ditadura. É como se fôssemos leprosos ou criminosos". (Foto: Guilherme Santos/Sul21)
“O Brasil é o único país onde é um crime a gente buscar os responsáveis pelos crimes que foram cometidos na ditadura. É como se fôssemos leprosos ou criminosos”. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

Sul21: Na sua opinião, essa decisão de varrer esse tema para debaixo do tapete em nome de uma transição democrática menos conflituosa ajuda a explicar um pouco essa onda de conservadorismo na sociedade, com pessoas defendendo inclusive a vota da ditadura?

Suzana Lisbôa: Não tenho dúvida disso. Em um texto que escrevi em um Relatório Azul, na época em que o Rolim era deputado estadual, tinha uma frase que muita gente acabou usando depois: “A impunidade inspira e alimenta os crimes cometidos hoje contra os pobres e marginalizados deste país”. E contra os movimentos sociais, devemos acrescentar hoje. Olhe a quantidade de presos que temos hoje no sistema penitenciário, e também fora dele, em função da violência. Eles aprenderam isso onde? Na ditadura. O Brasil é o único país onde é um crime a gente buscar os responsáveis pelos crimes que foram cometidos na ditadura. É como se fôssemos leprosos ou criminosos. Durante muito tempo, nos trataram assim. E seguem tratando até hoje.

Eu acho que cometi um erro enorme nesta luta. Quando houve a sentença do Araguaia, da juíza Solange Salgado, e o governo Lula decidiu recorrer, foi uma situação muito difícil e complicada. O Zé Dirceu e o Márcio Thomaz Bastos chegaram a se manifestar publicamente contra o recurso. Sem falar o Nilmário Miranda, que era da área. Mas o Lula bancou a decisão de ingressar com o recurso. Ficou uma situação ruim. O Zé Dirceu disse: “decisão tomada, estou com o governo”. Depois se arrependeu. Deveria ter saído. Depois, o governo criou uma comissão interministerial para tratar da questão dos desaparecidos. Aí essa comissão especial, da qual eu fazia parte, resolveu se demitir porque estavam passando por cima de uma comissão instituída por lei. Pois a comissão decidiu se demitir e eu não deixei. Acho que esse foi um erro enorme que eu cometi. Teria sido um constrangimento muito grande.

Sul21: O que existe de arquivos fechados sobre a ditadura que ainda não vieram à tona?

Suzana Lisbôa: Os arquivos do Ministério das Relações Exteriores, por exemplo. Já foram publicadas várias matérias sobre a existência desses arquivos que nunca vieram a público. Há arquivos que eram do SNI, estavam na ABIN e foram para o Arquivo Nacional. Mas nem todos esses arquivos foram para o Arquivo Nacional. Eles sofreram uma limpeza antes de ir para o Arquivo Nacional. Teve coisas que eu vi e não foram levadas para lá. E, por fim, os arquivos das Forças Armadas. Em 1994, quando Mauricio Barbosa era o ministro da Justiça, ele resolveu que iria fazer alguma coisa sobre esse tema. Ele criou uma comissão coordenada pela assessoria jurídica do Ministério da Justiça com a participação dos jurídico das três armas. Nós entregamos o nosso dossiê para ele e as forças armadas entregaram relatórios sobre os temas levantados. A Marinha e a Aeronáutica, especialmente a Marinha, nos deram dados impressionantes que nós não tínhamos e que nos ajudaram a elucidar questões  importantes como a data verdadeira de algumas mortes. O relatório do Exército é o que dava menos informações, mas também forneceu algumas. Esses relatórios foram fundamentais naquela época. Então, essas informações saíram de algum lugar. Onde estão esses documentos?

Aqui no Rio Grande do Sul, tivemos a versão que o governador Amaral de Souza mandou queimar muitos documentos do DOPS. Mas volta e meio aparece uma coisa aqui, outra ali. Diziam que havia muitos documentos no porão do DOPS, que funcionava no Palácio da Policia. Em 1990, quando houve o episódio da abertura da vala de Perus, ocorreram algumas iniciativas de busca de arquivos. Collares, que era o governador na época, fez uma busca nas delegacias do interior, nos tais de SOPS (Serviço de Ordem Política e Social), e permitiu que tivéssemos acesso aos arquivos informatizados deles aqui no Palácio da Policia. Na época, ninguém sabia mexer direito com computador. Eu fui com o Nei (Lisboa) lá pois ele manjava um pouco mais de computador. A gente achava que ia encontrar alguma coisa nos microfilmes deles. Não achamos nada.

Quando o PT venceu a eleição para o governo do Estado com o Olívio, a recém criada Comissão do Acervo da Luta Contra a Ditadura tirou todos os microfilmes dali e levou lá para a Procergs. Mas depois não tivemos apoio suficiente para olhar e pesquisar aquela material. A Policia ficou puta e aquilo não prosperou.

"Quando a Brigada Militar age da forma que agiu com aquelas meninas, usando inclusive agentes infiltrados, e temos deputados na Assembleia agradecendo e engrandecendo a violência da Brigada, devemos ficar alertas". (Foto: Guilherme Santos/Sul21)
“Quando a Brigada Militar age da forma que agiu com aquelas meninas, usando inclusive agentes infiltrados, e temos deputados na Assembleia agradecendo e engrandecendo a violência da Brigada, devemos ficar alertas”. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

 Sul21: O que aconteceu com o acervo daquela comissão?

Suzana Lisbôa: Nós recebemos muita doação de material e um grupo de jornalistas e historiadores gravou muito depoimentos em vídeo. Quando fui olhar esse material, no início do governo Tarso, essas fitas não estavam mais lá. Muitos cartazes e outras coisas que tinham sido doadas também não estavam mais nos arquivos.

Sul21: Considerando a situação política atual do Brasil, você vê possibilidade de voltarmos a ter o nível de violência política que tivemos no período pós-64?

Suzana Lisbôa: Acho que sim. Quando a Brigada Militar age da forma que agiu com aquelas meninas, usando inclusive agentes infiltrados, e temos deputados na Assembléia agradecendo e engrandecendo a violência da Brigada, devemos ficar alertas. O clima está muito pesado. A história do que ocorreu na ditadura não faz parte do currículo oficial. Existem alguns professores que tratam desse assunto, mas não é um tema reconhecido. Além disso, a estrutura repressiva não foi mexida. A tortura segue existindo em delegacias desse país. Não houve um combate formal e institucional dessa prática. Eu tenho certeza de que as coisas vão complicar aqui e estou com muito medo disso e raiva pelo que não foi feito para evitar que isso voltasse a acontecer.


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