Entrevistas|z_Areazero
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11 de janeiro de 2016
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10:50

Mapeamento genético abre novo front na guerra contra o câncer

Por
Sul 21
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Patrícia Ashton Prolla: “Estima-se que de 10 a 20% de todos os casos de câncer sejam hereditários. Sabendo antecipadamente desse risco, podemos fazer coisas para tentar diminuir as chances de a pessoa desenvolver câncer". (Foto: Caroline Ferraz/Sul21)
Patrícia Ashton Prolla: “Estima-se que de 10 a 20% de todos os casos de câncer sejam hereditários. Sabendo antecipadamente desse risco, podemos fazer coisas para tentar diminuir as chances de a pessoa desenvolver câncer”. (Foto: Caroline Ferraz/Sul21)

Marco Weissheimer

O Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA) atende, desde 2001, a pacientes que apresentam predisposição hereditária ao câncer. Estima-se que de 10 a 20% de todos os casos de câncer sejam hereditários. Essas pessoas trazem, desde o nascimento, oncogenes, genes causadores de tumores, que podem ser identificados por meio de exames do DNA. Relativamente recente (o primeiro foi descoberto em 1970), essa descoberta criou um novo front na guerra contra o câncer, abrindo a possibilidade de mapear esses oncogenes e, assim, antecipar riscos e desenvolver estratégias para evitar o desenvolvimento de vários tipos de câncer. Em entrevista ao Sul21, a médica geneticista Patrícia Ashton Prolla, integrante da equipe de genética e câncer do HCPA, fala sobre o trabalho com testes de DNA e mapeamentos genéticos e sobre as perspectivas que ele abre no terreno da prevenção da doença.

“Estima-se que de 10 a 20% de todos os casos de câncer sejam hereditários. Trata-se de pessoas que, ao nascer, já tem uma maior chance de ter câncer ao longo da vida. Por isso, sabendo antecipadamente desse risco, podemos fazer coisas para tentar diminuir as chances de a pessoa desenvolver câncer ao longo da vida”, relata Patrícia Prolla, que também é professora de Genética na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). A médica coordena a Rede Brasileira de Câncer Hereditário que está batalhando, junto com o Instituto Nacional do Câncer, para incluir esses testes de DNA no atendimento do SUS. “Não temos problema tecnológico em saber como fazer e como interpretar esses exames. O problema que enfrentamos é a restrição financeira, mesmo”.

Sul21: Qual o trabalho desenvolvido pelo Programa Integrado de Assistência, Ensino e Pesquisa em Genética e Câncer, que funciona junto ao Hospital de Clínicas de Porto Alegre?

Patrícia Ashton Prolla: Nós desenvolvemos duas atividades principais aqui no Hospital de Clínicas. A primeira, na área da oncogenética, é uma atividade assistencial por meio de um programa de atendimento a pessoas e famílias com câncer hereditário, em sua grande maioria pacientes do SUS, de Porto Alegre, Grande Porto Alegre e do interior. Todas as semanas, temos sete agendas onde atendemos a pacientes e a famílias, com uma suspeita de câncer hereditário ou já com o diagnóstico de câncer hereditário, adultos e crianças. Estima-se que de 10 a 20% de todos os casos de câncer sejam hereditários. Trata-se de pessoas que, ao nascer, já tem uma maior chance de ter câncer ao longo da vida. No Rio Grande do Sul, as chances de uma mulher ter câncer de mama são de 10% a 12%. Então, falando de modo geral, uma em cada dez mulheres do Rio Grande do Sul terá câncer de mama ao longo da vida.

"Há algumas doenças hereditárias, como a da atriz Angelina Jolie, por exemplo, que apresentam um risco muito maior de câncer de mama e de câncer de ovário. Neste caso, ao invés dos 10% de chance de ter câncer de mama, esse índice aumenta para 85%". (Foto: Caroline Ferraz/Sul21)
“Há algumas doenças hereditárias, como a da atriz Angelina Jolie, por exemplo, que apresentam um risco muito maior de câncer de mama e de câncer de ovário. Neste caso, ao invés dos 10% de chance de ter câncer de mama, esse índice aumenta para 85%”. (Foto: Caroline Ferraz/Sul21)

Há algumas doenças hereditárias, como a da atriz Angelina Jolie, por exemplo, que apresentam um risco muito maior de câncer de mama e de câncer de ovário. Neste caso, ao invés dos 10% de chance de ter câncer de mama, esse índice aumenta para 85% de chances. Por isso, sabendo antecipadamente desse risco, podemos fazer coisas para tentar diminuir as chances de a pessoa desenvolver câncer ao longo da vida. Essa é a ideia central desse nosso trabalho de análise de pacientes e famílias por meio de exames de DNA que nos ajudam a encontrar alterações genéticas. Fazemos um mapeamento da sequência destes genes para ver se encontramos uma falha.

Há várias coisas que chamam a nossa atenção para confirmar uma suspeita. Vamos pegar de novo o exemplo do câncer de mama. Uma família que tem um homem com câncer de mama chama a atenção, pois é algo incomum, atingindo em torno de um a cada mil homens. Nas famílias com câncer hereditário, esse índice vai para um a cada cinquenta ou cem. Ou então uma família com pessoas que tenham mais de um câncer, uma mulher com câncer de mama e de ovário, por exemplo. Ou ainda uma família que tenha várias gerações com casos câncer de mama, incluindo idades jovens, com 21 ou 22 anos.

Sul21: Até que nível vai essa investigação familiar?

Patrícia Ashton Prolla: Em geral, consideramos primeiro, segundo e terceiro grau, mas procuramos levantar o máximo de informações possível sobre a família. Nós recebemos aqui no hospital, pelo Sistema Único de Saúde, pacientes e famílias que tenham alguma suspeita para que façamos uma avaliação. Quando conseguimos, fazemos o teste genético. Enfrentamos uma grande limitação em nosso trabalho. Hoje, temos à disposição testes genéticos que permitem ver se uma pessoa tem esse risco de ter um câncer. A partir dessa informação, é possível fazer coisas no terreno da prevenção. Prevenir um câncer tem um custo muito menor do que tratá-lo com cirurgia, radioterapia e quimioterapia. Mas, infelizmente, o SUS não paga ainda a realização desse teste genético.

Sul21: Casos como este da Angelina Jolie estão se tornando mais frequentes?

Patrícia Ashton Prolla: Sim, é muito comum. Hoje, aqui no Hospital de Clínicas, nós estamos acompanhando pelo menos 80 famílias. Quando é constatada a alteração genética, nós recomendamos a retirada de ovário e trompas. É considerado obrigatório a partir dos 40 anos. A retirada das mamas é opcional, pois há outros caminhos possíveis que não a cirurgia. Nem todas as mulheres optam pela cirurgia. Algumas decidem fazer outros tratamentos e realizar exames mais periódicos. Toda semana, tenho dez pacientes que precisariam fazer o teste para este gene do caso da Angelina Jolie. Como eu não consigo fazer este exame pelo SUS, destas dez eu consigo fazer em duas, encaixando a paciente em algum projeto de pesquisa ou no caso em que a paciente tem algum familiar com plano de saúde que paga o teste. As outras oito ficam para trás. Esse teste é muito importante porque muda totalmente o tratamento da paciente e dos familiares.

Eu coordeno uma rede – a Rede Brasileira de Câncer Hereditário – que está batalhando muito, junto com o Instituto Nacional do Câncer, para incluir esses exames no atendimento do SUS. Não temos problema tecnológico em saber como fazer e como interpretar esses exames. O problema é a restrição financeira, mesmo.

"Se a pessoa tiver que fazer uma ressonância por ano, gastará só com este exame quase todo o preço do teste. A relação custo benefício é muito boa, mas o SUS ainda não paga esse teste". (Foto: Caroline Ferraz/Sul21)
“Se a pessoa tiver que fazer uma ressonância por ano, gastará só com este exame quase todo o preço do teste. A relação custo benefício é muito boa, mas o SUS ainda não paga esse teste”.
(Foto: Caroline Ferraz/Sul21)

Sul21: Qual é o custo desse exame?

Patrícia Ashton Prolla: Se colocarmos em perspectiva o benefício que ele traz, o preço é irrisório. Dependendo do teste, custa mais ou menos 1.500 reais. Quando se acha uma alteração genética, é preciso pesquisar nos familiares só essa alteração, e aí o custo cai para 150 reais por teste. Hoje, uma ressonância está em torno de 900 reais. Se a pessoa tiver que fazer uma ressonância por ano, gastará só com este exame quase todo o preço do teste. A relação custo benefício é muito boa, mas o SUS ainda não paga esse teste. Os convênios já pagam. No caso de alguns de nossos pacientes que têm familiares com convênio, nós começamos testando esse familiar. Outros ingressam em projetos de pesquisa nacionais e internacionais e conseguimos realizar os testes por meio deles.

Sul21: Esses testes se aplicam a vários tipos de câncer?

Patrícia Ashton Prolla: Sim, vários tipos de câncer. Todos os tipos de câncer podem ter uma forma hereditária. Como disse, entre 10% e 20% deles são hereditários. O nosso trabalho é descobrir, entre todos os casos, quais são os hereditários e quais não são. Temos que cumprir uma espécie de check-list para descobrir isso. Fazemos um intenso trabalho de divulgação junto aos nossos colegas e de treinamento com os médicos residentes para que eles aprendam a reconhecer casos suspeitos. A grande facilidade que temos aqui no Hospital de Clínicas é que atendemos junto com a oncologia, na mesma área física. Quando surge alguma dúvida é só bater na porta ao lado.

Sul21: Quantas pessoas, em média, estão sendo atendidas por esse programa hoje?

Patrícia Ashton Prolla: Entre 40 e 50 pessoas por semana, às vezes um pouco mais. Uma das características fundamentais desse programa é que temos uma equipe multidisciplinar com médicos oncologistas, médicos geneticistas, enfermeiros e psicóloga. O nosso atendimento envolve muitas vezes questões bem delicadas. Às vezes, uma pessoa da família quer saber se tem uma alteração genética e outras não querem. E no momento que a gente faz o teste em um integrante da família, acaba inferindo coisas dos demais. Quando uma pessoa tem uma alteração genética, a chance de um filho ou irmão ter também é de 50%.

Sul21: Além do trabalho de prevenção, por meio da realização dos testes de DNA, que outros serviços são realizados pelo programa?

Patrícia Ashton Prolla: O nosso maior tratamento é a prevenção. Se sabemos que uma paciente tem uma alteração genética que a coloca com um risco de 80% de ter um câncer, vamos propor estratégias para descobri-lo muito cedo, quando ele ainda for curável, ou tentar fazer uma cirurgia, retirando o órgão em questão e evitando que o tumor apareça. Todo o nosso trabalho é para que o tumor não aconteça ou aconteça em um estágio em que o tratamento seja simples e rápido. Quando não conseguimos isso, e o paciente desenvolve um tumor em estágio mais avançado, o tratamento é basicamente igual ao de qualquer outro câncer. Há algumas doenças que, pelo fato de ter uma mutação, tem um tratamento específico, uma quimioterapia com o que chamamos de drogas de alvo. O alvo é uma determinada alteração genética.

"Todo o nosso trabalho é para que o tumor não aconteça ou aconteça em um estágio em que o tratamento seja simples e rápido". (Foto: Caroline Ferraz/Sul21)
“Todo o nosso trabalho é para que o tumor não aconteça ou aconteça em um estágio em que o tratamento seja simples e rápido”. (Foto: Caroline Ferraz/Sul21)

 Sul21: Para que casos, por exemplo, existe esse tipo de quimioterapia?

Patrícia Ashton Prolla: As alterações, por exemplo, nos genes BRCA1 e BRCA2, que é o caso da Angelina Jolie. Nos casos que já estão muito avançados, com doenças metastáticas, o tratamento inicial é igual ao resto. Depois, pode-se usar uma droga alternativa, que até tem menos efeitos colaterais do que a quimioterapia convencional, que só funciona para quem tem essa alteração. Ela incide nas células tumorais que têm aquela mutação,

Sul21: Já há algum tratamento sendo utilizado que envolva manipulação genética?

Patrícia Ashton Prolla: Nos casos de câncer hereditário, ainda não há nenhuma experiência de edição genômica, como chamamos, que consistiria em ir na sequência de DNA, retirar a sequência que está alterada e corrigir. Isso ainda é bem experimental. Está sendo feito em animais e já há algumas experiências com humanos, mas não na minha área. Existe uma grande preocupação se esse tipo de intervenção não vai causar também outras alterações em regiões que até então não tinham problema nenhum, provocando outras doenças. Há dúvidas ainda sobre se essa estratégia vai funcionar. Provavelmente, sim. Acho que é uma questão de tempo.

Sul21: A principal contribuição da genética nos últimos anos, então, no que diz respeito ao câncer, está mais no campo da prevenção mesmo?

Patrícia Ashton Prolla: Com certeza. O foco maior é a prevenção. O câncer é uma doença tão heterogênea, com tantas facetas, que dificilmente conseguiremos usar um único tratamento para enfrentá-la. São pouquíssimos os tumores que respondem a uma única droga, a um único tipo de tratamento. Existem mecanismos dentro do próprio tumor que fazem com ele vá superando as barreiras que o tratamento vai erguendo e se erga de novo, falando numa forma figurativa. O tratamento do câncer é, portanto, algo extremamente complexo. A melhor forma mesmo de sobreviver ao câncer é não deixar que ele aconteça ou, se ele acontecer, conseguir retirá-lo muito precocemente. Milagres acontecem, mas no caso de tumores metastáticos, que já saíram do local que estavam e foram para locais distantes, a maioria é incurável.

Hoje temos tecnologias que permitem viver décadas com um tumor, deixando-o meio dormente ou controlado. No caso do câncer de mama, há pacientes que vivem 20 ou 30 anos até que o tumor volte e acabe matando a pessoa. Com esses novos tratamentos é possível prolongar a vida da pessoa por muitos anos com uma qualidade de vida bem razoável.

Sul21: Alguns pesquisadores sustentam que os mais recentes avanços na luta contra o câncer podem nos levar a redefinir o próprio conceito de vitória sobre a doença. O que você disse sobre as novas possibilidades de sobrevida caminha um pouco nesta direção, não?

Patrícia Ashton Prolla: Existe uma discussão muito importante sobre o significado do câncer para a nossa espécie. Há quem acredite que a ocorrência do câncer é o preço que estamos pagando por nos tornarmos organismos mais complexos capazes de viver mais tempo. Originalmente, a nossa espécie não estava preparada para viver cem anos ou perto disso. Nós tivemos uma série de avanços tecnológicos como o desenvolvimento de vacinas, uma melhor alimentação, melhores condições de higiene e saneamento que permitiram que superássemos muitas doenças. Uma criança, nos primeiros dois anos de vida, terá, em média, 20 infecções. Há trezentos anos, muitas crianças morriam antes de completar dois anos de idade. Hoje, com o que temos de tecnologia, é praticamente um crime deixar uma criança morrer durante seus dois primeiros anos de vida.

"A melhor forma mesmo de sobreviver ao câncer é não deixar que ele aconteça ou, se ele acontecer, conseguir retirá-lo muito precocemente". (Foto: Caroline Ferraz/Sul21)
“A melhor forma mesmo de sobreviver ao câncer é não deixar que ele aconteça ou, se ele acontecer, conseguir retirá-lo muito precocemente”. (Foto: Caroline Ferraz/Sul21)

Há uma hipótese segundo a qual, do ponto de vista metabólico, as nossas células não aguentam tanta idade e que o câncer estaria relacionado a essa evolução. Segundo essa visão, a única maneira de vencer o câncer seria conseguir mudar metabolicamente as nossas células de modo que elas se tornassem programadas para viver 100 ou 150 anos, o que, obviamente, é algo muito mais complicado.

Sul21: Aí já entramos num terreno mais especulativo…

Patrícia Ashton Prolla: Exatamente. Há um gene que estudamos muito, que é o TP53, também conhecido como o guardião do genoma. Ele é um gene central das nossas defesas contra o câncer, agindo como um supressor tumoral. O TP53 atua de várias maneiras tentando suprimir várias propriedades da célula tumoral. Aqui no sul do Brasil, há uma alteração genética que causa câncer hereditário que está presente em um entre cada 300 recém nascidos, o que é um índice muito alto. Estima-se que o índice dessas alterações herdadas de TP53, em nível mundial, seja de um para cada 5 mil nascidos vivos. Aqui, por alguma razão, essa alteração é muito frequente. De fato, nós temos muito mais câncer de mama que outras regiões do país e essa alteração está associada ao câncer de mama. Em uma pesquisa que realizamos nós mostramos que 10% das mulheres com câncer de mama, de Porto Alegre, tem essa alteração.

O papel desse gene é muito interessante. Nós temos duas cópias desse gene TP53 que nos protege; uma que é herdada do pai e outra herdada da mãe. Pesquisadores que investigaram por que os elefantes praticamente não têm câncer descobriram que eles têm de 10 a 20 cópias desse gene, o que faz com que tenham uma proteção muito maior contra o câncer. Em geral, quanto maior o tamanho do animal, quanto mais complexo o organismo, maior será a chance de ele desenvolver câncer. Os elefantes encontraram uma maneira de driblar esse padrão, aumentando o número de TP53.

Sul21: Além desse trabalho de atendimento a pacientes e famílias, há também trabalho de pesquisa envolvendo genética e câncer aqui no Hospital de Clínicas?

Patrícia Ashton Prolla: Sim, temos muito trabalho de pesquisa. Como professora da universidade, tenho alunos de mestrado e doutorado e pós-doutores que trabalham no laboratório. Hoje, temos cerca de vinte pessoas trabalhando com pesquisa sobre câncer hereditário no nosso laboratório. Nestas pesquisas nós buscamos, por exemplo, marcadores genéticos de diagnóstico precoce ou de prognóstico de modo que seja possível definir melhor como deve ser o curso da doença e como deve ser a resposta a um tratamento. Ou seja, nós buscamos marcadores genéticos para definir melhor a doença e o prognóstico sobre sua evolução.

Sul21: Já é possível estabelecer esse tipo de prognóstico?

Patrícia Ashton Prolla: É o que estamos tentando fazer. Já conseguimos descobrir algumas coisas. Entre as pessoas que nascem com a alteração de TP53, por exemplo, algumas têm câncer na infância, nos primeiros anos de vida, outras têm câncer na vida adulta e outras ainda nunca têm câncer. O que explica essas diferenças? Temos um pai com quarenta e poucos anos que tem essa alteração e é saudável, que tem uma filha que teve um tumor com um ano de vida. Nós estudamos o material genético de todos esses casos e comparamos vários marcadores genéticos, tentando encontrar onde está a diferença para tentar achar uma maneira de prever. No caso desta doença, nós já conseguimos prever, por exemplo, em que idade vai acontecer o tumor, se é que ele vai se desenvolver.

Nos Estados Unidos, o projeto The Cancer Genome Atlas fez o mapeamento genético de centenas de tumores, de vários tipos.
Nos Estados Unidos, o projeto The Cancer Genome Atlas fez o mapeamento genético de centenas de tumores, de vários tipos.

Sul21: Vários grupos de pesquisadores estão trabalhando hoje no mundo para traçar o genoma do câncer. As pesquisas que estão sendo desenvolvidas aqui podem ser consideradas como uma parte deste esforço?

Patrícia Ashton Prolla: Ainda não tanto quanto a gente gostaria. Nos Estados Unidos há hoje programas como o TCGA (The Cancer Genome Atlas), que fez o mapeamento genético de centenas de tumores, de vários tipos. Tudo isso está disponível em uma base de dados pública. Nas nossas pesquisas, também estudamos isso. Nós acessamos essas bases de dados públicas e comparamos com os nossos dados. O problema é que esse mapeamento exige uma estratégia de custo muito elevado. No Brasil, nós não temos uma linha de fomento específica para esse tipo de pesquisa. O que temos são algumas iniciativas isoladas de alguns grupos de pesquisadores brasileiros. Mas seria muito interessante termos uma amostra de tumores de pacientes brasileiros e ver, por exemplo, se existe alguma diferença entre os tumores de estômago daqui com os analisados nos Estados Unidos. Tecnicamente, podemos fazer isso. Nosso problema é a falta de dinheiro.

Sul21: As estatísticas de câncer no Brasil ainda são muito insuficientes, não?

Patrícia Ashton Prolla: Sim, é muito pouco. De novo, aqui, esbarramos na questão financeira. O Instituto Nacional do Câncer (Inca) tem várias estratégias para obter registros de câncer, de base populacional e de base hospitalar. O Hospital de Clínicas, por exemplo, participa desse esforço. Todo mês informa o número de casos. Mas não existe um recurso financeiro específico para esse trabalho. O Hospital de Clínicas não ganha nada para fazer esses registros. Nos falta incentivo, em termos de pessoal e de recursos financeiros, para que possamos ter uma base de dados robusta. Capacidade tecnológica e recursos humanos nós temos. O ano passado foi um desastre para nós em termos de pesquisa. Todos os editais de pesquisa fecharam. Nós entramos com 20, 25 projetos de pesquisa por ano, para ganhar dois ou três. No ano passado não abriu nenhum edital. Nunca tinha me acontecido isso.

Há um grupo grande de pessoas de várias instituições, hoje, no Brasil, tentando estimular a formação de profissionais nesta área. Segundo estimativa do Inca, deveremos ter mais de 57 mil novos casos só de câncer de mama, em 2016. Se considerarmos que cerca de 20% desses casos são hereditários, vemos que a necessidade de formação de profissionais nesta área é bem grande. Estamos fazendo um esforço grande de formação e para que os exames de DNA possam ser feitos pelo SUS, que atende a cerca de 70% da população.

"Nós sabemos que alimentos como carne de gado ou de frango hoje têm hormônios, mas não sabemos quanto tem ou que tipo de hormônio estamos consumindo". (Foto: Caroline Ferraz/Sul21)
“Nós sabemos que alimentos como carne de gado ou de frango hoje têm hormônios, mas não sabemos quanto tem ou que tipo de hormônio estamos consumindo”.
(Foto: Caroline Ferraz/Sul21)

 Sul21: Você mencionou antes a possibilidade de o câncer estar relacionado, entre outros fatores, ao fato de estarmos vivendo mais, o que exige mais de nossas células também. Além disso, há fatores externos que vêm sendo associados ao câncer. O Instituto Nacional do Câncer divulgou ano passado um relatório advertindo para os riscos do uso crescentes de agrotóxicos em nossa agricultura. Há alguma pesquisa sendo feita aqui sobre esse tema?

Patrícia Ashton Prolla: Especificamente sobre agrotóxicos e câncer, eu não saberia te dizer agora. Aqui também temos um problema muito importante de notificação. Tudo o que envolve exposição ambiental é complicado porque depende de uma coisa que é a memória das pessoas. Eu trabalhei um período em outra área do nosso serviço, que trata da exposição às drogas na gestação. Investigamos casos de crianças que nasceram com alguma alteração congênita. Quando perguntamos à mãe o que ela fez durante toda a gestação, é muito difícil resgatarmos com precisão essa história. Os relatos sobre a ingestão de álcool ou algum tipo de medicamento costumam ser imprecisos. Além disso, temos as exposições às quais estamos sujeitos e nem nos damos conta.

Sul21: Tipo o quê, por exemplo?

Patrícia Ashton Prolla: Na própria alimentação. No caso do câncer de mama, por exemplo, uma coisa muito importante é o conteúdo hormonal do nosso corpo. Nós sabemos que alimentos como carne de gado ou de frango hoje têm hormônios, mas não sabemos quanto tem ou que tipo de hormônio estamos consumindo. As próprias quantidades variam de uma marca para outra. O que é muito complicado no caso do câncer é que a gente ainda não sabe qual é o tamanho da contribuição de cada um desses eventos. Certamente, no desenvolvimento de tipos de câncer, há uma contribuição do stress, de alterações metabólicas, do fumo, de doenças como o diabetes, de poluição, agrotóxicos, hormônios. O que não sabemos é quanto cada uma dessas coisas vai contribuir para o resultado final.

Dificilmente será uma causa só, mesmo nos casos de câncer hereditário. Já tive o caso de duas irmãs gêmeas, com a mesma alteração genética, e uma tem câncer e a outra não. Por quê? Porque há outros fatores ambientais, que protegeram uma delas e que aceleram o processo do câncer na noutra. O desafio é conseguir identificar esse fator ambiental e como ele provoca essa diferença.

Com o que temos de conhecimento hoje sobre a heterogeneidade do câncer, podemos afirmar que não haverá uma resposta única para todo mundo. Algumas pessoas são mais suscetíveis que outras a esses fatores externos. Duas pessoas podem fumar a mesma quantidade de tabaco durante o mesmo período de tempo e uma só desenvolver câncer de pulmão. Ainda não temos uma receita precisa do que nos protege e do que nos torna vulnerável ao câncer, mas a influência desses fatores externos é inegável.

Sul21: Existe a sensação, hoje, de um aumento do número de casos de câncer. Praticamente todo mundo tem um parente ou conhecido sofrendo da doença. Essa sensação de aumento é real ou é muito resultado do aperfeiçoamento do processo de diagnósticos?

Patrícia Ashton Prolla: Isso não está demonstrado. Provavelmente, é resultado de uma melhoria dos processos de registro e de diagnóstico. Não temos ainda uma prova clara de um aumento médio significativo do número de casos em relação há 50 anos, por exemplo. Pode ser que sim, mas antes de afirmar isso precisamos descartar essa hipótese da melhoria de registro e de diagnóstico.


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