Entrevistas|z_Areazero
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21 de setembro de 2015
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10:52

‘Nós queremos sair do gado diretamente para a nanotecnologia. Não dá.’

Por
Sul 21
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"Nós só podemos sair da crise fiscal em que nós estamos com crescimento. Não tem que ter nenhum plano mirabolante neste momento. Temos que fazer uma média de 5 ou 6% de crescimento durante quatro ou cinco anos”. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)
“Nós só podemos sair da crise fiscal em que nós estamos com crescimento. Não tem que ter nenhum plano mirabolante neste momento. Temos que fazer uma média de 5 ou 6% de crescimento durante quatro ou cinco anos”. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

Marco Weissheimer

O Rio Grande do Sul vem fazendo apostas erradas que são alimentadas, em parte, pela combinação de uma soberba portenha enlouquecida que nos assedia e da permanência, no subconsciente da população da disputa entre chimangos e maragatos que matou 10% da população economicamente ativa do Estado, na Revolução Federalista, no final do século 19. Ao invés de investir em cadeias produtivas que já possui, com grandes vantagens competitivas, gasta fortunas em subsídios e isenções fiscais em soluções mágicas que vão da indústria automobilística à nanotecnologia. A avaliação é do economista Carlos Paiva, da Fundação de Economia e Estatística do Rio Grande do Sul (FEE), que, em entrevista ao Sul21, contextualiza historicamente a crise fiscal do Estado, aponta algumas de suas principais causas e indica os caminhos para a sua superação.

Esses caminhos, defende Paiva, não passam pela redução do tamanho do Estado ou pelo discurso do “é preciso fazer o dever de casa”, mas sim pela retomada de um ciclo vigoroso de crescimento durante quatro ou cinco anos. Para ele, o Rio Grande do Sul deveria focar em arranjos produtivos regionais de base agropecuária onde tem vantagens comparativas, como ocorre no caso do leite. “Nós podemos ser duas vezes mais competitivos do que a Nova Zelândia e nos tornarmos o maior produtor de leite do mundo. Nós só podemos sair da crise fiscal em que nós estamos com crescimento. Não tem que ter nenhum plano mirabolante neste momento. Temos que fazer uma média de 5 ou 6% de crescimento durante quatro ou cinco anos”.

Sul21: Em um recente artigo sobre as raízes da crise fiscal gaúcha, você critica o discurso do “dever de casa” que prega, entre outras coisas, a diminuição do Estado como caminho para a superação da crise. Por que esse discurso é equivocado, na sua opinião?

Carlos Paiva: O mais importante é entender que as raízes dessa crise são muito longas. O Rio Grande do Sul é um Estado que estruturou uma burocracia há muito tempo e uma burocracia de um tipo muito particular. Podemos dizer que o Rio Grande do Sul deu o exemplo para o Estado brasileiro. Quando Vargas assume a presidência e cria um novo Estado, intervencionista e industrializante, na segunda República, ele copia o Estado gaúcho. O Estado do Rio Grande do Sul criado por Júlio de Castilhos e Borges de Medeiros já é intervencionista. No processo de criação da primeira República, foi o único Estado a ter um DAER, a ter um Banco do Rio Grande do Sul, a controlar os portos (de Porto Alegre e de Rio Grande). É um Estado desenvolvimentista que dá muito certo. É um Estado que fez a Reforma Agrária impondo um imposto territorial rural sobre terras produtivas e improdutivas. Se a terra não produzia nada, também se cobrava do proprietário. Com isso, os proprietários de terras que não produziam nada, principalmente as áreas de mato no norte do Estado, eram obrigados a vender, pois tinham que pagar, mesmo sem produzir. Essas terras de mato foram vendidas a baixo preço para colonos, pequenos proprietários rurais de origem italiana e alemã.

Esse Estado fez uma Reforma Agrária e criou o pequeno produtor que produzia muito. Nos tornamos um Estado pujante que conseguia pagar os seus impostos e sustentar essa máquina pública magnífica, que deu exemplo para Santa Catarina, Paraná e São Paulo, e gestou a Revolução de 1930. O Estado do Rio Grande do Sul era um exemplo para a nação.

"Quando Vargas vai tomar o poder, em 1930, ele tem que unir maragatos e chimangos, iniciando um processo de alternância de poder. Essa alternância pesa até hoje no Rio Grande do Sul." (Foto: Guilherme Santos/Sul21)
“Quando Vargas vai tomar o poder, em 1930, ele tem que unir maragatos e chimangos, iniciando um processo de alternância de poder. Essa alternância pesa até hoje no Rio Grande do Sul.” (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

Sul21: Estamos falando aí das décadas de 1910 e 1920 aproximadamente?

Carlos Paiva: Sim. Getúlio Vargas foi nosso governador em 1928. Foi ele que criou o Banrisul, mas já tínhamos o DAER, portos e ferrovias estatizadas. Era um Estado forte que, ao longo do tempo, foi gerando aposentados que, por sua vez, geraram um passivo para o governo do Estado, que poderia ser sustentado tranquilamente se o Estado seguisse crescendo. No início da República, o governo estadual tinha acesso a dois impostos somente: o imposto sobre exportações (que, na época, praticamente se resumia ao setor cafeicultor) e o imposto territorial rural. Mas quase ninguém usava este último, pois taxar o rural equivalia a taxar os poderosos. Assim, ou o Estado exportava – e quem exportava era São Paulo – ou não tinha praticamente nada para arrecadar em termos de impostos. Só o Rio Grande do Sul criou o imposto territorial rural e cobrou. Quando cobrou, os proprietários rurais ficaram contra e aí eclodiu a Revolução Federalista. O governo estadual tinha o apoio do Exército e assim enfrentou os poderosos proprietários e terra. E venceu. Mas os proprietários rurais nunca perdoaram essa derrota ficou pairando uma tensão sobre o Rio Grande do Sul, o tempo inteiro…

Sul21: Maragatos e chimangos…

Carlos Paiva: Sim. Os maragatos eram os proprietários de terra do Sul. Eles foram derrotados e obrigados a pagar imposto para ajudar a sustentar o Estado. Com esse imposto, criou-se toda a máquina pública do Rio Grande do Sul. Quando Vargas vai tomar o poder, em 1930, ele tem que unir maragatos e chimangos, iniciando um processo de alternância de poder. Essa alternância pesa até hoje no Rio Grande do Sul. É uma polarização que já se expressou de diversos modos: maragatos x chimangos, PTB x Partido Libertador, PT x Anti-PT…Há uma cultura do ódio no Rio Grande do Sul que é absolutamente destrutiva. A necessidade de polarização vem dessa memória cultural da Revolução Federalista. É incrível que a Revolução Federalista no Rio Grande do Sul não é estudada, apesar dela ter sido uma das guerras civis mais violentas da história da humanidade. Cerca de 10% da população economicamente ativa do Estado morreu nesta guerra. Ou, dito de outro modo, 10% dos homens adultos do Estado morreram. Tem ideia do que é isso? Imagina teus amigos e conhecidos: um em cada dez deles morreu na revolução. E, muitas vezes, numa luta que opôs irmão contra irmão.

Isso foi esquecido. Fala-se da Revolução Farroupilha, de danças folclóricas, da chula e a Revolução Federalista não existe, não se estuda na escola. Parece que ela não ocorreu. Mas ela permanece no subconsciente da população e está sempre sendo reconstruída. Cada vez que um maragato assume o poder, ele destrói tudo o que o governo chimango fez e vice-versa. Isso destrói a nossa capacidade de crescimento.

"Como se não bastasse essa cultura de polarização e ódio, há outro problema: o Rio Grande do Sul é soberbo. Os gaúchos são um misto de brasileiros e portenhos. Parece que têm vergonha de ser latino-americanos." (Foto: Guilherme Santos/Sul21)
“Como se não bastasse essa cultura de polarização e ódio, há outro problema: o Rio Grande do Sul é soberbo. Os gaúchos são um misto de brasileiros e portenhos. Parece que têm vergonha de ser latino-americanos.” (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

 Sul21: Quem seriam os chimangos e maragatos hoje?

Carlos Paiva: Os chimangos, de modo geral, estão mais à esquerda, enquanto os maragatos são representados pelos setores mais conservadores. Os chimangos, entre outras coisas, taxaram a propriedade para construir a Reforma Agrária. Os maragatos, por sua vez, queriam a liberdade de continuar tudo como estava, ou seja, latifúndio e o “pobrerio” que ficasse no seu lugar.

Como se não bastasse essa cultura de polarização e ódio, há outro problema: o Rio Grande do Sul é soberbo. Os gaúchos são um misto de brasileiros e portenhos. Parece que têm vergonha de ser latino-americanos. Não querem saber de São Paulo ou Rio de Janeiro. Olham de Nova York pra cima. Assim como os portenhos não são latino-americanos. O horizonte é a Europa, não Lima, Bogotá e essas “coisinhas” latino-americanas. Uma das expressões disso é o sentimento de que, aquilo que nós temos é sempre pouco e vergonhoso. Isso também está associado com a pobreza meio que estrutural da metade Sul do Estado. Na aparência, a metade Sul é uma terra privilegiada, pois é uma área que não precisou ser desmatada, sendo a primeira a ser ocupada. Uma terra ideal para a bovinocultura.

Logo apareceu outra especialização produtiva muito interessante, que é a orizicultura. E se desenvolveu também a ovinocultura. Mas deu. Não havia muito mais o que fazer ali. É um solo curto, que tem areia logo abaixo. Não dava para ampliar muito o número de bovinos por metro quadrado, o que representava uma limitação para a produção intensiva.

Não tem como mudar esse perfil produtivo gradativamente. Aí as pessoas começam a devanear e querem passar disso para a indústria bélica ou para a nanotecnologia. Querem passar do quase nada para a fantasia aeroespacial. É uma coisa meio borgeana que vai na direção contrária do que fez, por exemplo, Santa Catarina, que optou por um caminho mais simples, procurando evoluir passo-a-passo a partir das coisas que produzia. É exatamente o que fizeram os asiáticos também, percorrendo uma trajetória de desenvolvimento tecnológico. Quando começaram essa trajetória, eram ridicularizados. Ninguém mais lembra disso hoje, mas o Japão já foi objeto de ridicularização. Eu, com meus 54 anos, lembro quando Taiwan era objeto de ridicularização. Talvez a maior parte dos leitores do Sul21 lembre quando a China era objeto de ridicularização. Hoje, o Vietnã, Bangladesh e o Camboja ainda são objeto de ridicularização. Em breve, não serão mais.

Nós queremos sair do gado diretamente para a nanotecnologia. Tanto os maragatos quanto os chimangos. É isso sempre. Não dá. O Britto queria passar para a estrutura automotiva. Nós temos uma indústria metal-mecânica própria e uma indústria de equipamentos de transporte própria. Estão aí a Marcopolo, a Randon, as nossas indústrias de máquinas agrícolas. Elas já estão instaladas aqui e precisam de apoio para o desenvolvimento tecnológico. Têm carências tecnológicas e de financiamento. Seria muito fácil identificar essas carências e, com poucos recursos, apoiá-los. Mas não. Quiseram dar milhões, bilhões, para trazer a Ford e a General Motors. Pra quê? Já tínhamos a maior empresa produtora de ônibus do mundo. Mas tinha que ter outra coisa, pois tínhamos que ser tão bons ou melhores que São Paulo.

Aí chega o governo Olívio e diz: agora tudo vai ser diferente. E provoca algumas descontinuidades desnecessárias e equivocadas, como foi o caso do RS Rural, um financiamento do Banco Mundial que nem era programa do Britto, pois já veio pronto. Era um programa ideal, que tinha o acompanhamento da FEE. Mas era preciso encontrar um erro nele. Depois se descobriu que não tinha erro e que a descontinuidade foi um grande equívoco. O governo Olívio também fez uma revisão de todos os contratos do Fundopem e aí agiu corretamente, pois havia erros em praticamente em todos esses contratos.

"O governo Olívio decidiu averiguar esses contratos e descobriu que todos eles tinham subestimado a arrecadação e estavam se beneficiando mais do que deveriam". (Foto: Guilherme Santos/Sul21)
“O governo Olívio decidiu averiguar esses contratos e descobriu que todos eles tinham subestimado a arrecadação e estavam se beneficiando mais do que deveriam”. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

 Sul21: Que tipo de erros?

Carlos Paiva: O Fundopem dá benefícios para aquilo que vai ser de extra na arrecadação. Os empresários diziam: arrecado tanto hoje e o meu excedente será tanto. Ele subestimava o que arrecadava e recebia benefícios para além do que merecia. Não se fazia fiscalização disso no governo Britto. O governo Olívio decidiu averiguar esses contratos e descobriu que todos eles tinham subestimado a arrecadação e estavam se beneficiando mais do que deveriam.

Quando terminou o governo Olívio, os contratos tinham sido renegociados, simplesmente aplicando a lei. O governo Rigotto poderia ter arrecadado R$ 108 milhões a mais com isso. Atualizando esse valor, hoje daria uns R$ 230 milhões a mais para o Estado. Aí entrou uma proposta de mudança do Fundopem na Assembleia para melhorar as vantagens para a metade Sul. Na última hora, incluíram um adicional na proposta dizendo que todos os contratos passariam a funcionar como na época do Britto. E essa proposta foi aprovada. Com isso, o governo Rigotto abriu mãos de R$ 230 milhões por ano para voltar a valer as ilegalidades do governo Britto.

Não sei quantos dos deputados que votaram tinham noção do que estavam votando. Muitos acharam que o Olívio tinha apertado os empresários, que acabaram ficando sufocados, quando, na verdade, o governo apenas havia aplicado a lei. Mas como aquilo havia sido feito no governo Olívio era preciso votar contra, seguindo a mesma lógica que levou o governo Olívio a interromper o programa RS Rural. É assim que funciona o nosso “chimango-maragatismo”. Isso pesa para o desenvolvimento do Estado.

Sul21: Que outros fatores, na sua avaliação, representaram entraves para o desenvolvimento do Rio Grande do Sul nas últimas décadas?

Carlos Paiva: Fizemos apostas erradas pelo borgismo portenho enlouquecido que nos assedia. O espírito lusitano que vigora, com variações, no resto do Brasil, é mais pé no chão, menos quixotista. Você conhece aquela piada do gaúcho que chegou em Minas e foi ver uma rinha e galo? Ele perguntou: qual é o galo bom? E o mineiro respondeu: aquele ali é o bom. A rinha começou e aquele galo acabou perdendo. Irritado, o gaúcho reclamou: – Você me fez perder dinheiro apostando naquele galo. E o mineiro respondeu: o senhor me perguntou qual era o galo bom. Era aquele. O mau foi esse que venceu. Essa piada ilustra um pouco esse espírito lusitano. Santa Catarina seguiu por aí. Apostou em partir do que já tinha: uma sojinha, um milhinho, um porquinho…E foram melhorando essas culturas, vendendo porquinho pra China e assim por diante. Mas o Rio Grande do Sul quer outras coisas: no mínimo, queremos chip, Motorola, Ceitec, nanotecnologia…Para onde isso nos levou até agora? Para lugar algum.

Nós temos vários gênios da lâmpada. Alguém pensou: se nós produzimos fumo, porque não podemos processar fumo e cigarro? E o governo Britto trouxe a fábrica da Souza Cruz. Eu perguntei um dia para o pessoal que teve a ideia genial de trazer a Souza Cruz: “vocês, que são tão geniais, já perguntaram para o pessoal da Souza Cruz porque eles nunca quiseram vir pra cá?” É simples. O fumo, quando seca, é prensado e vira uma madeira como a desta mesa. Aí você leva esse fumo prensado para São Paulo. Uma carreta de fumo prensado se transforma em dez carretas de cigarro. Onde é melhor, do ponto de vista logístico, transformar essa madeira em cigarro, que depois será vendido para o resto do país? Lá em São Paulo ou aqui no Rio Grande do Sul? É melhor produzir o cigarro aqui e vender no Pará? É óbvio que é melhor produzir em São Paulo ou mais ao norte para distribuir para o Brasil inteiro e gastar menos em transporte. Mas trouxeram para cá a fábrica, para produzir o cigarro aqui e vender no Pará.

O que a empresa exigiu para fazer isso? Um Fundopem turbinado e a redução do ICMS. Antes, o cigarro produzido em São Paulo que entrava no Rio Grande do Sul nos rendia 7% de ICMS. Sabe quanto a gente recebe hoje? Nada. Sabe o que vai acontecer quando acabar o Fundopem turbinado? A fábrica vai ser desmanchada e vai voltar para Uberlândia, que tem um sistema logístico mais adequado. O Rio Grande do Sul entregou terreno, gastou dinheiro para nada. Ninguém teve a brilhante ideia de perguntar para a empresa porque ela nunca tinha pensado em produzir cigarro aqui.

"Houve uma oferta para implantar uma laminadora aqui no Rio Grande do Sul. Os nossos tecnocratas disseram que não porque queriam que a Gerdau virasse uma laminadora. Mas a Gerdau não queria virar uma laminadora". (Foto: Guilherme Santos/Sul21)
“A equipe econômica do Britto queria que a Gerdau construísse a sua laminadora, queria impor uma estratégia a essa empresa. Isso é liberalismo? Não, não é liberal, é irracional, é algo louco”. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

Há um tecnocratismo cretino que se recusa sistematicamente a ouvir o que os produtores têm a dizer. Nós tínhamos a segunda indústria de transformação do Brasil. Era só ouvir os nossos industriais. Nós temos uma grande demanda de aços laminados porque temos uma indústria de máquinas agrícolas enorme. Houve uma oferta para implantar uma laminadora aqui no Rio Grande do Sul. Os nossos tecnocratas disseram que não porque queriam que a Gerdau virasse uma laminadora. Mas a Gerdau não queria virar uma laminadora. A FEE tem quarenta anos e fica tentando indicar o que é melhor fazer, mas os nossos gestores sempre sabem mais do que nós. Gastaram fortunas para termos o que temos hoje, que é muito menos do que temos aqui do lado, em Santa Catarina e no Paraná.

Não há continuidade. O que foi feito no governo passado é interrompido. Como é que se pode querer que o Estado esteja bem no plano fiscal? E aí querem resolver os problemas, diminuindo o Estado. Ouvimos na televisão o tempo inteiro: “tem que fazer o dever de casa. né?” Não. É preciso parar de dizer asneira, sentar e fazer uma política de desenvolvimento coerente. É preciso ouvir os técnicos que há alguns anos vêm dizendo que está se fazendo uma política de desenvolvimento errada.

Sul21: No início do século XX, havia um projeto de Estado que acabou sendo implementado por Júlio de Castilhos, Borges de Medeiros, Getúlio Vargas e outros líderes. A polarização, ou grenalização como dizem alguns, das últimas décadas não revela a existência de duas concepções de Estado, sendo que nem uma delas consiga se sobrepor a outra de modo definitivo? Seria possível reunir essas concepções em um projeto só?

Carlos Paiva: Eu não acho que o confronto esteja tanto por aí. Se olharmos o que está sendo feito em São Paulo, governada há bastante tucanos, veremos que há políticas defendidas pelo PT aqui. São Paulo vem aumentando o número de funcionários públicos. Estão contratando mais gente em todas as áreas. São Paulo também está perdendo participação no PIB nacional, como o Rio Grande do Sul, e mesmo assim está empregando. O problema nosso é outro e passa pela briga e destruição de projetos um governo após outro e pela incapacidade de perceber onde estão as oportunidades para a nossa economia. Até que ponto podemos chamar de defensor de Estado mínimo quem dá subsídios enormes para atrair montadoras e outras grandes multinacionais? Na verdade, é um Estado intervencionista que gasta milhões para atrair investimentos. Não é um Estado liberal no sentido clássico, que promove a livre iniciativa, diminuindo os impostos. O Britto aumento os impostos, o Sartori agora quer fazer a mesma coisa. E aumentam os benefícios fiscais também.

"Os nossos liberais sempre foram muito particulares e têm uma política industrial muito peculiar também". (Foto: Guilherme Santos/Sul21)
“Os nossos liberais sempre foram muito particulares e têm uma política industrial muito peculiar também”. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

O mais próximo desse Estado liberal clássico foi o governo da Yeda Crusius, que queria déficit zero com menos impostos. Em um certo sentido, o Britto era intervencionista, queria entregar o Estado para os empresários. Nem os tucanos são liberais neste sentido clássico. Acho que são mais intervencionistas entreguistas seletivos. Os nossos liberais sempre foram muito particulares e têm uma política industrial muito peculiar também. A equipe econômica do Britto queria que a Gerdau construísse a sua laminadora, queria impor uma estratégia a essa empresa. Isso é liberalismo? Não, não é liberal, é irracional, é algo louco. É assim que funciona o Rio Grande do Sul.

Sul21: Com algumas variações e mudanças, todos os últimos governos se utilizaram do instrumento os benefícios fiscais. Qual sua opinião sobre esse tipo de política?Isso ajuda ou atrapalha?

Carlos Paiva: Nós não podemos abrir mão completamente dos benefícios fiscais. Mas, evidentemente, há abusos absurdos. Nós temos alguns tipos de atividades nas quais temos vantagens competitivas relativas e absolutas. A cadeia produtiva leiteira é um exemplo disso. O Rio Grande do Sul tem grandes vantagens competitivas neste setor. Não estou falando apenas de vaca e leite, mas de fornecimento de insumos para essa cadeia, como ordenhadeiras mecânicas altamente tecnificadas, caminhões de transporte, beneficiamento. Há, portanto, um conjunto de elos industriais que permite uma alta tecnificação. A Nova Zelândia, que eu cito no meu artigo, vive fundamentalmente de turismo e da cadeia leiteira, possuindo uma renda per capita três vezes maior que a do Rio Grande do Sul.

Eu não fiz essa citação por acaso. A Nova Zelândia produz carne, lã, vinho, turismo e leite. É praticamente o Rio Grande do Sul, tem o mesmo tamanho inclusive. Ela soube apostar nestas culturas e agregar valor a elas, dominando as cadeias produtivas completas em cada uma delas, com alta tecnologia. Quando se tem foco e sabe se identificar os setores onde há vantagens comparativas, não é preciso gastar milhões em benefícios fiscais, de uma forma errada. Quando é que eu tenho que dar muito subsídio? Quando piro na maionese e quero atrair uma empresa que não tem muito cabimento.

Sul21: No caso da Ford, você acha que a decisão do governo Olívio foi um acerto?

Carlos Paiva: Foi. O Britto queria vender o Banrisul e já havia negociado com Malan. Era o único jeito de arrumar dinheiro para fazer o porto do outro lado do Guaíba e todas as rodovias de acesso que seriam necessárias, como a Ford queria. Ele tinha certeza que iria ganhar as eleições e fazer a negociação com o Malan. Houve um fato que ficou meio escondido nesta história. No governo Olívio, nós obtivemos um parecer judicial que indicava que podíamos reaver a Ford, mas não quisemos reavê-la, porque isso envolveria vender o Banrisul por cerca de R$ 500 milhões, sendo que ele nos dava um lucro de mais de R$ 100 milhões por ano. Se aceitássemos a Ford de volta, teríamos que vender o Banrisul. Era o único jeito de arrumar dinheiro para cumprir tudo o que o Britto havia dado.

Sul21: Qual deveria ser, na sua opinião, a estratégia central para o desenvolvimento econômico do Estado?

Carlos Paiva: O Rio Grande do Sul deveria focar em fortalecer arranjos produtivos regionais de base agropecuária. Não temos que ter vergonha da nossa base agropecuária. Martinho Lazzari, diretor técnico da FEE, diz duas coisas que são muito importantes. A primeira é que até as pedras do terceiro andar sabem que o Rio Grande do Sul cresce quando crescem a agricultura e as exportações e isso não é dissociável. Nos só podemos sair da crise fiscal em que nós estamos com crescimento. Não tem que ter nenhum plano mirabolante neste momento. Temos que fazer uma média de 5 ou 6% de crescimento durante quatro ou cinco anos. É preciso crescer para fazer crescer a arrecadação. E como é que o Rio Grande do Sul cresce? Com agricultura e pecuária de exportação para o exterior e para os outros estados. Isso é estatisticamente comprovado. Não conseguiremos crescer no curto prazo com apostas em nanotecnologia ou indústria automobilística. Precisamos voltar para a terra.

"Nós podemos ser duas vezes mais competitivos do que a Nova Zelândia e nos tornarmos o maior produtor de leite do mundo". (Foto: Guilherme Santos/Sul21)
“Nós podemos ser duas vezes mais competitivos do que a Nova Zelândia e nos tornarmos o maior produtor de leite do mundo”. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

É preciso pensar no curto e no médio prazo conjuntamente. Existem algumas atividades agropecuárias que promovem o curto, o médio e o longo prazo ao mesmo tempo. As culturas de soja e do tabaco são as duas piores, pois não promovem o longo prazo. Os compradores não querem que a gente agregue valor, processando esses produtos. Querem só a matéria-prima mesmo. Então, para agregar valor, é preciso apostar em toda a agropecuária, procurando o mais rápido possível apostar naqueles que, ao contrário da soja e do tabaco, não se locomovem sem agregação de valor, como é o caso do frango e do leite. O melhor de todos é o leite. Nós somos a Nova Zelândia da América Latina.

Quando eu estive lá e contei o que tínhamos aqui no Rio Grande do Sul, me disseram: “Vocês são melhores do que nós em condições edafoclimáticas. Como é que vocês não exploram isso?”. É inacreditável. Eles ficam pasmos. Nós podemos ser duas vezes mais competitivos do que a Nova Zelândia e nos tornarmos o maior produtor de leite do mundo. Nós temos uma vantagem competitiva com o leite que se tornará ainda maior se integrarmos bovinocultura de corte e de leite. Se conseguirmos fazer isso, movimentamos as economias da metade Sul e da metade Norte do Estado.

Precisamos investir em arranjos produtivos regionais de base agropecuária, que abarquem desde o rural até o industrial e movimentem já a economia. Esses arranjos já existem, não é atrair a empresa “x” que vai dar retorno daqui a dez anos. É preciso movimentar já a economia, pois precisamos crescer já. E, ao mesmo tempo, vamos desenvolvendo projetos de longo prazo.

Sul21: Além do leite, há outras culturas que apresentem essa vantagem competitiva?

Carlos Paiva: Sim. Muitas outras. O turismo, por exemplo, tem um potencial enorme. Temos o turismo de Serra e o nosso turismo de litoral e lagoas não é desprezível. Nossa população está envelhecendo o que abre um grande potencial para o chamado “turismo permanente”, que consiste basicamente em atrair aposentados. Miami e o sul da Califórnia já vivem disso. Nós temos um número de aposentados do setor público muito grande, que está indo para Santa Catarina e para o Uruguai. Precisamos investir no nosso turismo permanente na Serra e no Litoral. O vinho também não é uma atividade desprezível. Essa cadeia hoje está concentrada espacialmente, mas ela é totalmente gaúcha. Não é só Serra. Se tiver políticas adequadas, ela pode se espalhar pela metade Sul. A única coisa que não é produzida aqui é a garrafa. Todo o resto é. A cadeia do leite hoje é responsável por cerca de 2,5% do PIB e a cadeia da uva e do vinho por cerca de 1,5%. Isso não é pouco. A orizicultura é outra área em que se pode fazer muita coisa. O que se faz com arroz no Oriente é uma coisa inacreditável. Fazem os mais diferentes tipos de doces, saquê e outras bebidas. Aqui só produzimos arroz pra comer com feijão.

Essas conexões entre a metade Norte e a metade Sul são importante inclusive do ponto de vista político para romper o isolamento alimentado por essa disputa entre maragatos e chimangos. O problema da crise fiscal do Estado também tem essa dimensão cultural e política.


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