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20 de janeiro de 2017
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11:45

Como as polícias definem ‘homofobia’ no Brasil – enquanto ela não é crime

Por
Sul 21
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Como as polícias definem ‘homofobia’ no Brasil – enquanto ela não é crime
Como as polícias definem ‘homofobia’ no Brasil – enquanto ela não é crime
Em 2016, foram registradas 343 mortes de gays, travestis, lésbicas, bissexuais e transexuais no país, segundo levantamento do Grupo Gay da Bahia. As polícias não têm dados oficiais | Foto: Antonio Cruz/Agência Brasil

Fernanda Canofre

A cantora Valéria Houston sofreu uma das piores agressões de sua vida num domingo de sol, em agosto de 2015. Ela, mulher trans, caminhava feliz com o namorado pela Cidade Baixa, em Porto Alegre, quando ouviu um homem gritar palavras de cunho homofóbico em sua direção. Valéria e o namorado tentaram responder. O homem veio na direção deles e agrediu o casal com um chave de fenda. Ela teve o braço perfurado.

O casal ligou imediatamente para a Brigada Militar para que viesse até o local registrar ocorrência. Do outro lado, um policial recomendou que eles segurassem o agressor e aguardassem que uma viatura seria enviada. Segundo Valéria, o carro nunca chegou. Ela saiu procurando por policiais pela Cidade Baixa para relatar o ocorrido. Caminhou por todo o bairro, pelo Parque da Redenção, mas só foi encontrar três brigadianos já perto da Rua Júlio de Castilhos, no Centro. Depois de mostrar o braço sangrando e a blusa rasgada, Valéria ouviu de resposta dos policiais apenas um “a gente não pode fazer nada por ti”. Sem nenhuma informação sobre quem poderia.

“Só consegui fazer o registro 10 dias depois, na Delegacia da Mulher. Só depois que deu muita confusão e saiu na imprensa. O que foi registrado foi uma ocorrência de rua, uma agressão física. Não diz ‘homofobia’ [no boletim de ocorrência]. Eu falei várias vezes – ele me chamou de aberração, de lixo, de traveco – mas em nenhum momento foi registrado”, conta Valéria.

O relato dela é comum para vítimas de homo/trans/lesbofobia* no Brasil. Nem a Brigada Militar, nem a Polícia Civil possuem campos em seus relatórios que permitam incluir orientação sexual ou identidade de gênero como motivações para crimes. O termo homofobia só entra no sistema policial se fizer parte do relato da vítima e, ainda assim, se o agente de segurança que prestar atendimento quiser incluir a questão no registro. O que na maioria das vezes – como foi o caso de Valéria – não acontece.

Sem os registros ou campos que identifiquem as vítimas como LGBTs, não há como puxar dados oficiais ou levantar estatísticas sobre a violência homofóbica. Números oficiais da violência homofóbica no país não existem. A extinta Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, depois Ministério das Mulheres, Igualdade Racial e Direitos Humanos, publicou relatórios desde 2011 tentando levantar alguns dados. No último deles – publicado em 2016, com os dados de 2013 – o grupo responsável pela elaboração do documento admite que há “escassez de fontes confiáveis de dados sobre violências homofóbicas” e explica que baseou o relatório inteiramente em denúncias registradas pelo Disque Direitos Humanos – o Disque 100, pela Ouvidoria do Sistema Único de Saúde (SUS) e pela Ouvidoria da Secretaria de Políticas para as Mulheres. Um dos capítulos tem como título “homicídios e latrocínios – segundo a mídia”.

O próprio relatório também aponta “a ausência de campo relativo à orientação sexual, identidade de gênero ou possível motivação homofóbica em boletins de ocorrências policiais” como um dos fatores que dificulta o levantamento oficial de dados. E questiona a escassez de dados demográficos sobre a população LGBT. O último Censo, realizado em 2010, não incluiu perguntas referentes à orientação sexual ou identidade de gênero, apesar de registrar pessoas do mesmo sexo que viviam juntas.

Dentro do sistema de segurança pública, tecnicamente, a violência contra LGBTs não existe. “Hoje nós não temos esse dado específico. Porque não tem essa tipificação penal. Hoje não existe ‘crime’ de homofobia. Da mesma forma como se fazia antes de existir a lei de racismo, o de homofobia é semelhante ao de racismo. A opção que se tem hoje é de fazer o registro com a tipificação penal [lesão corporal, assédio, injúria], mas relatando que houve homofobia”, explica o Cel Mario Ikeda, sub-comandante da Brigada Militar.

Manifestação pede criminalização da homofobia, no Congresso Nacional | Marcello Casal Jr./Agência Brasil

Dados se misturam a crimes comuns

Para as polícias, essa ausência de dados e estatísticas está diretamente ligada à não-criminalização da homofobia. Enquanto ela não é crime, os protocolos estão mais suscetíveis a ignorar a violência provocada contra orientação sexual ou identidade de gênero de uma pessoa. Uma busca no Google com as palavras “delegado” e “homofobia”, por exemplo, traz como respostas mais comuns manchetes com: “delegado não vê homofobia”, “delegado descarta homofobia”, “delegado não relaciona homofobia”.

O caso mais recente neste rol foi o homicídio do jovem Itaberli Lozano, 17 anos, assassinado pela própria mãe na cidade de Cravinhos, em São Paulo. Apesar de testemunhas do crime, vizinhos e familiares prestarem depoimento dizendo que ela não aceitava a orientação sexual do filho, dois dias depois da prisão da mãe como suspeita, o delegado do caso, Helton Testi Renz, anunciou que a hipótese de motivação homofóbica já estava descartada. O delegado usou uma “rixa” entre mãe e filho para explicar a linha de investigação adotada.

“Como não há criminalização, claro que isso deveria ser colocado ao menos no histórico da violência – no caso de homicídio, qualificadora de motivo torpe ao menos – mas as pessoas, muitas vezes por desconhecimento, sabendo que não existe o crime [na legislação], não colocam”, explica a inspetora da Polícia Civil Valquíria Palmira Wendt.

Na Polícia desde 2012, sem encontrar dados oficiais sobre violência contra LGBTs na corporação, Valquíria levou o questionamento para um mestrado em Direito. Com base nos números de violência levantados pelo Grupo Gay da Bahia (GGB), recortando casos ocorridos em Porto Alegre, ela entrevistou policiais que atuaram na investigação dos homicídios. Todos eles, segundo a inspetora, afirmaram que ter informações sobre a orientação sexual e identidade de gênero das vítimas teria sido relevante para as investigações.

Valquíria aponta ainda outro problema da não-existência de dados oficiais. Em uma pesquisa na delegacia responsável pelos oito homicídios de pessoas LGBT ocorridos na Capital e estudados por ela – um a mais do que o número apresentado pelo GGB – ela descobriu que nenhum deles foi concluído como tendo “motivação homofóbica”. Todos entraram em enquadramentos de “crime passional”, “vítima em desacordo comercial com cliente de prostituição”, “disputa de ponto”. Para a inspetora, isso mostra um problema também na mídia que tende a ligar homofobia a qualquer vítima LGBT.

Mas o papel que a homofobia pode ter em um crime também depende de como o registro policial é feito. Como no caso de Valéria Houston, que relatou homofobia e transfobia diversas vezes, mas não viu a palavra aparecer em seu boletim de ocorrência. A questão não tem abordagem específica nem na formação da Polícia Civil, nem da Brigada Militar. Não recomendações oficiais de como proceder no registro das ocorrências. Enquanto a Polícia Civil oferece cursos complementares sobre o tema para policiais já formados, a Brigada Militar afirma que aborda a questão nas cadeiras de direitos humanos e relações humanas – cada uma delas com 50 horas-aula, de um total de 1.600 horas de formação que BMs têm de passar.

“[A ausência de registros consolidados] pode produzir e alimentar uma mentalidade que minimiza os efeitos da homofobia, como se fosse uma questão menor ou menos importante que outras espécies de violência discriminatória. Esse tratamento desigual, por si só, já é uma espécie de discriminação, no mínimo por omissão, que a sociedade e o Estado dispensam aos indivíduos e grupos vítimas de homofobia”, afirma Roger Raupp Rios, desembargador e professor de Direitos Humanos na UniRitter.

Manifestante durante a 19ª Parada do Orgulho LGBTS, em Brasília | Foto: Elza Fiúza/Agência Brasil

Omissão na criminalização da homofobia

Em 2016, 343 pessoas LGBT foram mortas no Brasil. Uma média de uma pessoa assassinada a cada 25 horas. O dado não foi levantado pelas polícias ou qualquer órgão estatal, mas pelo Grupo Gay da Bahia, que há 35 anos coleta informações das cinco regiões do país através de notícias que circulam na imprensa e de mensagens enviadas a eles por pessoas que conheciam as vítimas. Através destas informações o grupo chega a casos de mortes de LGBTs onde a própria imprensa noticia que a pessoa estava em um relacionamento heterossexual.

Para o desembargador Raupp, junto à ausência de dados, a “omissão na criminalização da homofobia” também colabora para o elevado número de casos de violência contra LGBTs.

Diante da intensidade e da frequência da violência homofóbica no Brasil, essa falta de proteção jurídica implica, imediatamente, restrições e constrangimentos ao livre desenvolvimento da vida e da personalidade de todos aqueles e aquelas que não se pautam pela heterossexualidade como norma social. Ela também atinge outras pessoas, heterossexuais inclusive, que, por serem percebidas como homossexuais, ou por defenderem direitos sexuais, acabam sofrendo discriminação”, explica ele.  ​

O caso do ambulante Luiz Carlos Ruas, assassinado no metrô de São Paulo, na noite de Natal, ao tentar defender duas travestis, por exemplo, teve hipótese de homofobia descartada pelo delegado responsável. A morte de Ruas também serve para questionar: o que afinal define a homofobia? Como ela não abrange jovens LGBTs que cometem suicídio por não serem aceitos ou um homem que é assassinado ao tentar parar um ataque de cunho homofóbico ou uma travesti que tenha sofrido lesão corporal enquanto discute com um cliente? Ainda que os crimes não sejam diretamente de motivação homofóbica, é difícil desviar o olhar do preconceito presente em todos eles.

“​A falta de um tipo penal específico criminalizador da homofobia tem várias consequências, pessoais e institucionais. Pensemos na experiência de uma pessoa vítima de homofobia, ao ir a uma delegacia noticiar a violência. ​Os agentes de segurança pública, se dispusessem de uma tipificação, teriam melhores condições de identificar, acolher e responder a essas situações, ao passo que a inexistência da criminalização pode levar vários servidores da segurança pública a minimizar, e até mesmo desconsiderar, a gravidade desse quadro”, analisa Roger.

Para o coordenador do coletivo Somos, o jornalista Gabriel Galli, porém, a criminalização – que teve o projeto complementar de lei arquivado na Câmara, no final de 2014 – ainda que importante,  não pode ser vista como solução única. “Não é uma questão que se pode resolver em uma canetada ou realizando um curso em uma instituição. Ela está conectada diretamente ao nosso sistema mesmo, como a gente organiza nossos sistemas de valores quanto ao que é diferente, o que não é. A gente precisaria de um investimento forte em educação, é preciso que se trate essa questão nas escolas, que se possa falar sobre isso”, diz ele.

Conseguir incluir a identidade de gênero, nome social e orientação sexual em ocorrências policiais e visualizar os dados da violência mais próximos à realidade, pode ser um começo. Na Assembleia Legislativa, há um projeto de lei do deputado Pedro Ruas (Psol) que tenta incluir essas mudanças.

Apesar de a agressão de 2015 ter sido a primeira violência física que Valeria Houston sofreu por ser uma mulher trans, não foi a primeira violência homofóbica. Pouco tempo antes, depois de ter sido assaltada em um ponto de ônibus, quando foi registrar a ocorrência, ela teve de ouvir de um policial: “mas ele te roubou mesmo ou tu estava provocando?”. “Pequenas micro-agressões, que a gente fala, é todos os dias. Chega a virar até coisa comum. A gente ouve tanto que vira coisa comum”, explica ela. Vira coisa comum, ainda que seja crime. E é crime mesmo que não reconhecido na lei.

*Nesta reportagem adotamos o critério do Relatório de Violência Homofóbica, produzido pelo Ministério das Mulheres, Igualdade Racial e  Direitos Humanos. O relatório explica: “O termo homofobia é constantemente problematizado em decorrência de sua possível homogeneização sobre a diversidade de sujeitos que pretende abarcar, ocultando violências e discriminações cometidas contra lésbicas e pessoas trans (travestis, mulheres transexuais e homens transexuais). (…) Neste relatório entende‐se homofobia como preconceito ou discriminação (e demais violências daí decorrentes) contra pessoas em função de sua orientação sexual e/ou identidade de gênero presumidas. A lesbofobia, a transfobia e a bifobia, serão compreendidos pela homofobia, para melhor fluência no texto”. Assim, também nesta reportagem o termo “homofobia” também foi adotado para melhor fluência do texto, embora reconheçamos a problematização do uso do mesmo para englobar a diversidade do público LGBT. 


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