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10 de novembro de 2016
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17:42

Modelo para o governo do RS, contêineres para presos são denunciados como ‘sub-humanos’

Por
Sul 21
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Presos mantidos em estruturas de contêineres e monoblocos no Pará (Foto: Divulgação/Pastoral Carcerária)
Presos mantidos em estruturas de contêineres e monoblocos no Pará (Foto: Divulgação/Pastoral Carcerária)

Fernanda Canofre

“Eu desço nas celas e só consigo ficar pouco tempo. Você é assado vivo ali dentro. É um calor terrível, um sufoco só, porque não tem ventilação”, conta padre Valdir João Silveira, ao lembrar de quando entrou em um contêiner utilizado para abrigar presos em Belém do Pará. padre Valdir conhece a vida dentro dos presídios há 26 anos, há 14 começou a viajar pelo país visitando o sistema prisional como integrante da Pastoral Carcerária, instituição que hoje coordena.

Em mais de duas décadas, padre Valdir viu o suficiente para fazê-lo afirmar taxativo, sem meias-palavras, que “presídio é feito para torturar e matar presos”. A adoção de contêineres para abrigar presos por alguns estados brasileiros já foi denunciada por ele para o Conselho Nacional de Justiça, para o Ministério da Justiça e para a Corte Interamericana de Direitos Humanos. Quando conquista uma interdição, raramente vê os governos estaduais a cumprindo. “Isso é inconstitucional e está totalmente fora de lei”, diz ele. “Condenamos essa prática. O sucesso está nisso. É tortura 24 horas, você é sufocado para ter doenças físicas e psicológicas”.

A prática condenada pela Pastoral Carcerária pode ser adotada agora pelo governo do Rio Grande do Sul para tentar atacar o problema da falta de vagas no sistema prisional. No começo do mês, a Secretaria de Segurança Pública anunciou que a adoção de contêineres para receber presos provisórios era uma possibilidade. O anúncio veio logo após denúncias de casos de presos que seguem sendo mantidos em delegacias e viaturas policiais – em um dos mais graves, um homem detido por 40 horas dentro do camburão de uma viatura e reclamou ter ficado sem comida.

Em uma entrevista coletiva sobre a crise do sistema prisional, o secretário de segurança pública, Cezar Schirmer, disse que teriam que lhe provar que os contêineres não eram uma boa ideia. “Se der problema, por alguma razão, suspendemos. Mas não vamos partir de uma visão preconceituosa só porque é contêiner. É muito melhor do que o Presídio Central ou viatura. (…) Eu estou tratando de uma emergência. A população vê horrorizada isso, a imprensa vê horrorizada e eu, pessoalmente, vejo”, declarou Schirmer.

Segundo dados da Pastoral Carcerária, pelo menos quatro estados do país adotam a prática de colocar presos temporários dentro do contêineres. Santa Catarina, Mato Grosso, Pará e uma cidade do Paraná – em Londrina, segundo o padre, as estruturas foram utilizadas também para menores de idade apreendidos. O Espírito Santo utilizava essa prática, mas abandonou em 2014, quatro anos depois de o Estado ter sido denunciado à ONU (Organização das Nações Unidas) e à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA (Organização dos Estados Americanos) pelas condições de seus presídios. Os contêineres com superlotação e problemas de falta de ventilação estavam entre os problemas apontados nos relatórios das entidades e do Conselho Nacional de Justiça.

Agentes penitenciários trabalhando com presos mantidos em contêineres em Belém do Pará. A estrutura proposta no RS é similar (Foto: Divulgação/Pastoral Carcerária)
Agentes penitenciários trabalhando com presos mantidos em contêineres em Belém do Pará. A estrutura proposta no RS é similar (Foto: Divulgação/Pastoral Carcerária)

O modelo de Santa Catarina

Quando a possibilidade dos contêineres foi apresentada, a Secretaria de Segurança Pública citou a experiência de Santa Catarina como “bem sucedida” e que a fez considerar a alternativa como “opção válida para o Rio Grande do Sul”. Dois técnicos do governo gaúcho visitaram locais do Estado vizinho que ainda tem contêineres.

Porém, a “solução catarinense” está longe de ser unanimidade. Quando foi implantada, em 2003, uma das primeiras experiências com contêineres para abrigar presos no país, o governo do Estado também falava em “emergência”, “temporário”, assim como o governo gaúcho. No entanto, 13 anos depois, as estruturas seguem ativas apesar de denúncias de entidades ligadas a direitos humanos, do Ministério Público e da OAB. Depois de determinação judicial interditando o uso de contêineres, a Penitenciária de Florianópolis segue com a utilização, aguardando julgamento pendente no Supremo Tribunal de Justiça.

Em entrevista por e-mail, o promotor Fabrício Cavalcanti, que entrou com pedido de desativação dos Centros de Observação e Triagem (COT) onde ficam os contêineres, disse que moveu a ação por entender “ser ilegal a prisão de pessoas em contêineres e também por existir problemas estruturais e de salubridade no local, que ainda persistem, agravando-se a cada dia”.

“A medida foi apresentada com fundamento em precedente do Superior Tribunal de Justiça, que já havia se manifestado pela ilegalidade da utilização de contêineres para fins prisionais, e também por contrariar garantias do cidadão e dos presos estabelecidas na Constituição da República”, afirma ainda o promotor.

O professor de criminologia e presidente da comissão de direitos humanos da OAB de Santa Catarina, Sandro Sell, acompanha a situação dos contêineres desde o início. Para ele, a situação a que presos são submetidos ali – não tão diferente dos próprios presídios – é “sub-humana”. Ao contrário do governo gaúcho, Sell acredita que o modelo seja “uma vergonha para o Estado de Santa Catarina” e lembra que esteve entre as reivindicações dos presos durante a rebelião que atingiu todo o Estado em 2009.

“Quando iniciou era pra ser provisório, mas quando se trata sobretudo de acolher presos, o provisório acaba virando permanente. Isso aumenta o grau de raiva daquela população que está encarcerada. O que você vai esperar dessas pessoas quando elas saírem de lá? É o  que faz o sistema prisional, a questão de tirar o resto da dignidade que sobrou para os apenados, deixando subentendido que a única solução é se tornar aquilo que para os outros eles já são: pessoas que só podem ganhar a vida através do crime”, critica Sell.

A pior reclamação que ouviu dos presos, segundo ele, é algo que pode ser preocupante se o modelo for aplicado em Porto Alegre. “A pior [reclamação] é justamente relacionada à questão climática. A questão climática é terrível, tanto no inverno, que faz muito frio, quanto no verão, que esquenta demais, quase como uma cela de tortura. Não é algo que pode ser usado ou apontado como modelo de sucesso”, conta.

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Presos dentro de contêiner no Pará (Foto: Divulgação/Pastoral Carcerária)

Outras soluções

Para especialistas que trabalham na área, há outras soluções que poderiam ser melhores do que o uso dos contêineres. “Me chamou muita atenção como o Estado queria tratá-los como uma carga transitória. Há outras alternativas, inclusive mais baratas. O Rio Grande do Sul tem que procurar soluções que são sustentáveis a longo prazo. Isso é um gasto, com grau de experiência, que se sabe que não vai dar certo. Aqui [em Santa Catarina] não apresentou melhoras”, afirma Sandro Sell.

Na coletiva de imprensa realizada na última quarta-feira (9), Cezar Schirmer citou como exemplo a gestão de Rudolph Giuliani como prefeito de Nova York no combate ao crime. Para o secretário, Giuliani foi criticado, mas teve resultados. Porém, em uma matéria recente, o jornal norte-americano The Washington Post cita a gestão de Giuliani e suas políticas “duras contra o crime” como pouco eficientes e lembra que suas práticas foram consideradas “inconstitucionais”.

“É um assunto contraditório. A minha experiência de vida diz o seguinte: se você não faz, critica. Eu prefiro fazer e discutir a frente a crítica que é feita, então, o que é mais desumano em sã consciência? O camarada ser amarrado em uma lixeira, ficar no carro da polícia em um calorão infernal, durante um longo tempo ou ficar numa pequena cela de uma delegacia de polícia, 20 pessoas amontoadas em seis metros quadrados? Eu, sinceramente, tenho muita dúvida dessa crítica. Como estão criticando sem saber? Já foram ver um contêiner? Vão lá em Santa Catarina, lá tem contêiner”, declarou o secretário.

Schirmer, que repetiu diversas vezes ser alguém preocupado com os direitos humanos, apresentou em sua proposta de melhoria do sistema prisional expansões que garantem o aumento de número de vagas nos presídios e a ideia do uso de monoblocos – estruturas pré-moldadas, similares aos contêineres, porém feitas de material diferente do metal. “Aqui nós estamos trabalhando no provisório e no emergencial. Essas coisas que eu estou falando tem início, meio e fim. Não é uma medida solta, ela tem lógica. Pode ser que a lógica esteja errada e nós não somos donos da verdade, estamos aqui dispostos a discutir e melhorar. Se me provarem que o contêiner não serve, abandona-se o contêiner. O que precisa é quebrar paradigmas”, concluiu.

Porém, os paradigmas apresentados como solução pela SSP, ainda estão longe de ser quebrados, segundo o padre responsável pela Pastoral Carcerária. “O que tem de acelerar são as audiências de custódia, para frear a entrada no sistema prisional. O número de pessoas com transtorno mental dentro dos presídios, por exemplo, é muito alto. Assim como há vários presídios interditados que não poderiam, mas continuam funcionando”, afirma padre Valdir.


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