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26 de novembro de 2016
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11:10

‘Chumbo, aqui não’: população dá o recado em audiências sobre instalação de mineradora

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Sul 21
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A opinião da grande maioria da população nas três audiências foi expressada nas manifestações e nas faixas |Fotos:Jaqueline
A opinião da grande maioria da população nas três audiências foi expressa nas manifestações e nas faixas |Foto: Jaqueline Silveira

Jaqueline Silveira

A defesa da região mais preservada do Bioma Pampa gaúcho falou mais alto diante da possibilidade de instalação de uma mineradora às margens do Rio Camaquã. Esse foi o saldo das três audiências públicas realizadas, nos dias 22, 23 e 24 de novembro, em Santana da Boa Vista, Bagé e Pinheiro Machado para ouvir a população sobre o empreendimento da Votorantim Metais Holding e da canadense Iamgold Brasil, previsto para o território das Guaritas, na Vila de Minas do Camaquã, a cerca de 90 quilômetros de Caçapava do Sul. Encerradas as audiências, a Fundação de Proteção Ambiental (Fepam) tem mais 15 dias para receber sugestões e questionamentos sobre o projeto denominado Caçapava do Sul e, depois, avaliar junto com as manifestações colhidas nos três municípios.

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As audiências públicas em Vila de Minas do Camaquã e em Caçapava do Sul foram realizadas ainda no mês de julho. Já os moradores de Santana da Boa Vista, Bagé e Pinheiro Machado foram excluídos da consulta, apesar de os três municípios fazerem limite com a localidade do empreendimento e, portanto, serem impactados pelo projeto. As audiências só foram promovidas pela Fepam após a intervenção do Ministério Público Federal (MPF). Em cada uma das reuniões, a população expressou seu descontentamento e teceu críticas à postura da fundação por excluir os três municípios do debate, uma vez que alguns terão uma área maior impactada em comparação com Caçapava do Sul, local do empreendimento.

Por intervenção do Ministério público Federal, Foram realizadas audiências em Santana da Boa Vista, Bagé (foto) e Pinheiro Machado
Por intervenção do Ministério público Federal, Foram realizadas audiências em Santana da Boa Vista, Bagé (foto) e Pinheiro Machado | Foto: Jaqueline Silveira

A mineradora pretende extrair a céu aberto 16 mil toneladas de zinco, 5 mil toneladas de cobre e 36 mil toneladas de chumbo por ano. Com prazo de funcionamento de 20 anos, o projeto prevê um investimento inicial de R$ 371 milhões e a geração de 450 empregos somente para Vila de Minas do Camaquã, Caçapava do Sul e Santana da Boa Vista. Na série das três audiências, representantes da empresa revelaram que a intenção também é extrair “prata como subproduto.” Os metais serão extraídos em Caçapava e levados, via Porto de Rio Grande, para Minas Gerais. O destino final de parte dos minérios é o mercado internacional, como a China. A arrecadação ficará só com o município de Caçapava e corresponderá a 2% do lucro liquido declarado pela empresa.

Produção sustentável ameaçada

O temor da população é com a extração do chumbo, metal com potencial tão perigoso quanto o mercúrio, e que, terá como consequência a desvalorização da produção sustentável alicerçada às margens do Rio Camaquã. Desde 2009, há um projeto de desenvolvimento regional com enfoque territorial, sustento e fonte de renda de 500 famílias de oito municípios – Caçapava do Sul, Bagé, Encruzilhada do Sul, Piratini, Santana da Boa Vista, Pinheiro Machado, Lavras do Sul e Canguçu. Baseado na agropecuária familiar, a iniciativa congrega cinco universidades, dois centros da Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária), Emater e Governo do Estado e gera dois mil empregos. A partir do projeto, foi constituída uma rede de produtores e empreendedores, coordenada pela Associação para o Desenvolvimento Sustentável do Alto Camaquã (ADAC), que também administra a marca coletiva com o mesmo nome, reconhecida pela qualidade e sustentabilidade devido às peculiaridades da Serra do Sudeste. Na região, inclusive, foi implantado o Arranjo Produtivo Local de Ovinos (APL), o primeiro do país.

Moradores levaram faixas alertando sobre as consequências à saúde e à natura em detrimento de grandes empreendimentos que visam ao lucro
Moradores levaram faixas alertando sobre as consequências à saúde e à natureza quando se prioriza grandes empreendimentos que visam ao lucro | Foto: Jaqueline Silveira

Nas três audiências, os representantes da Votorantim apresentaram o projeto Caçapava do Sul e o Estudo e o Relatório de Impacto Ambiental (EIA-Rima), que desconsiderou o impacto para os municípios de Santana da Boa Vista, Bagé e Pinheiro Machado e foi alvo de muitas críticas pelas falhas apontadas, como a falta de mapeamento da fauna da região. O gerente do projeto, o Engenheiro de Minas Paul Cezanne, tentou convencer o público que serão tomadas todas as providências para evitar danos ao meio ambiente e à saúde da população, ao mesmo tempo em que admitiu que “todo o empreendimento tem impacto ambiental”. Os rejeitos, explicou ele, serão empilhados a seco e não haverá construção de barragens.  “Não é intenção da empresa implantar o projeto e sair poluindo”, afirmou Cezanne, que foi vaiado em alguns momentos, assim como a Fepam. Se conseguir a licença, a empresa projeta iniciar a operação no final de 2019 ou início de 2020.

As audiências indicaram que a favor do projeto está parte da comunidade de Caçapava do Sul e da Vila de Minas do Camaquã, liderados pelo prefeito atual do município, Otomar Vivian (PP), e também habitantes e lideranças de Santana da Boa vista, como o prefeito eleito Arilton Freitas (PT). Na defesa do empreendimento para parte dessas comunidades pesou o aspecto dos empregos em meio a um cenário de crise e de muitas demissões. Mas a ampla maioria da população – foram mais de 1,3 mil pessoas nas três audiências – se posicionou contrária à mineradora, por entender que os 450 empregos, que contemplam só alguns municípios, não compensam as possíveis perdas na produção sustentável já em curso, o retrocesso na evolução histórica e nos prejuízos à riqueza natural da região, de notável exuberância.

Na defesa do Rio Camaquã, misturaram-se velhas e novas gerações, No detalhe, umas das crianças que foi ao microfone dar seu recado
Na defesa do Rio Camaquã, misturaram-se velhas e novas gerações. No detalhe, umas das crianças que foram ao microfone dar seu recado | Foto: Jaqueline Silveira

Gerações mais velhas e mais novas unidas

Nas audiências, os moradores de Bagé e Pinheiro Machado ganharam o reforço dos habitantes de Piratini, São Lourenço do Sul e Candiota na defesa da região do Pampa gaúcho. Em nome da preservação do Rio Camaquã, misturaram-se as gerações mais velhas e as mais novas, além de diferentes segmentos e ideologias políticas. Muitos fizeram a defesa em versos, lembrando o berço de duas capitais farroupilhas: Piratini e Caçapava do Sul. Teve pai que foi às lágrimas ao ver o filho pequeno ir ao microfone e dizer em alto e bom som: “mineradora, aqui não!”

A rodada de audiências encerrou na quinta-feira, em Pinheiro Machado. Logo no início, o gerente-geral de exploração mineral da Votorantim, Lúcio Molinari, ressaltou que a empresa tinha gasto cerca de R$ 1 milhão para a realização das cinco audiências e que esperava que as mesmas fossem “produtivas”. Depois, foi a vez do prefeito de Pinheiro Machado, José Felipe da Feira (PTB), se manifestar, antecipando a opinião dos moradores, que mais tarde iriam ao microfone. “A comunidade não é receptiva ao projeto da Votorantim Metais”, avisou ele.

A série de três audiências se encerrou em Pinheiro Machado
A série de três audiências se encerrou em Pinheiro Machado | Foto: Jaqueline Silveira

Presidente da Associação dos Apicultores de Pinheiro Machado e vice-presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais do município, Júlio César Moreira fez críticas ao empreendimento e às falhas do EIA-Rima. “Fico muito entristecido de ocultarem as abelhas do projeto”, afirmou ele. Atualmente, segundo o presidente, 50% do mel exportado pelo país é produzido na região do Alto Camaquã. “Eu acho esse projeto tão mentiroso quanto o descobrimento do Brasil”, criticou Moreira. Vice-presidente da ADAC, Marcos Sanchez Blanco ressaltou que, a partir da instalação da mineradora, “os frigoríficos terão a obrigação de não comprar carne dessa região”. “Esse projeto deveria ser chamado de cavalo de troia ou de kinder ovo: bonito por fora e cheio de incongruências por dentro”, alfinetou o representante da ADAC.

Presidente da Associação de Apicultores de Pinheiro Machado, Júlio Moreira chamou o projeto de “mentiroso” | Foto: Jaqueline Silveira/Sul21

Preocupação com conflito

Já o Diretor do Instituto de Biologia da Universidade Federal de Pelotas (Ufpel), Althen Teixeira Filho, demonstrou preocupação diante da possibilidade de conflito entre comunidades que são a favor e contra o projeto. Ele se propôs a ir na Vila de Minas do Camaquã esclarecer os moradores sobre os impactos do empreendimento para a região e seus habitantes, convocando a Votorantim a participar, mas o desafio, proposto nas três audiências, não foi aceito pela empresa proponente. Em um dos pareceres elaborados pelo Ministério Público Estadual, inclusive, foi sugerida a realização de uma nova audiência na Vila, por terem os técnicos avaliado que a empresa não forneceu informações suficientes para esclarecer a população (cujo IDH é um dos mais baixos do Rio Grande do Sul) sobre os danos à saúde humana e animal. “Esse atrito entre as comunidades não pode acontecer, tem de ser evitado”, alertou o professor da Ufpel.

Um dos poucos defensores do projeto na audiência, Martial Coelho Souza, que é morador da Vila de Minas do Camaquã, disse que a intenção não é criar conflito com outras comunidades, mas que a localidade está “abandonada” e precisa de investimentos. “São 426 moradores que vivem às suas custas e a seu trabalho”, argumentou. Ele pediu à Votorantim que inclua os habitantes da Vila no programa de saúde da empresa. Por fim, Souza frisou que acredita no projeto e na “análise honesta” da Fepam. “Nós não queremos mineração a qualquer preço”, concluiu o morador.

Moradores da Vila de Minas do Camaquã e de Caçapa são os que se manifestam favorável ao projeto da mineradora
Moradores da Vila de Minas do Camaquã e de Caçapa são os que se manifestam favorável ao projeto da mineradora | Foto: Jaqueline Silveira

Prefeito eleito de Pinheiro Machado, José Antônio Duarte Rosa (PMDB) enfatizou que a população está preocupada com o fato de que haveria 168 registros de lavras no subsolo da região do Alto Camaquã.  “Se existem todos esses registros é um sinal que nosso subsolo tem muito minério”, avaliou Rosa, alertando que deve ser priorizado o desenvolvimento das riquezas acima do solo, como as extensas paisagens naturais, a água do Rio Camaquã e a paisagem exuberante da Serra do Sudeste. A pecuária familiar, exemplificou o futuro prefeito, “vai sustentar pela vida toda” os habitantes da região. “Isso é para nossos filhos, nossos netos. É incomensurável”, argumentou o político, sobre a valorização da produção e a ameaça de perder o “certificado de origem” com a instalação de uma mineradora.

Impugnação da audiência

Ao final da audiência pública, a professora de Direito Ambiental Débora Peter comunicou à Fepam e aos representantes da Votorantim que pedirá a sua impugnação por avaliar que a reunião não conseguiu informar o projeto de forma adequada à população, o que era o propósito, devido à excessiva linguagem técnica e à falta de dados, principalmente do EIA-Rima. “A audiência não comunicou, e as respostas foram evasivas”, justificou a advogada, enfatizando a importância de o Ministério Público Estadual estar acompanhando as audiências. Responsável pela condução das audiências públicas pela Fepam, Renato das Chagas e Silva destacou que a fundação está procurando atender “as demandas encaminhadas” e que os aspectos técnicos do empreendimento “estão no processo de análise”. “Nós vamos tomar uma posição que terá um embasamento que defenderemos”, respondeu Silva, sobre os questionamentos feitos pela população quanto à postura da Fepam.

Designado pelo procurador-geral de Justiça, Marcelo Dornelles, para acompanhar o projeto Caçapava do Sul, o promotor Ricardo Rodrigues acompanhou as três audiências do começo ao fim. “Foram bem positivas e foi muito válido mesmo”, comentou o promotor, sobre o acompanhamento das três reuniões bem de perto. Isso porque, segundo Rodrigues, foi possível o contato direto com os moradores tanto a favor quanto contra o empreendimento – aliás, os dois lados procuraram conversar com o representante do MP. Também foi possível constatar, avaliou ele, que muitos dos questionamentos apontados pelos técnicos do MP vão ao encontro dos aspectos levantados pela população.

Designado pelo procurador-geral de Justiça para acompanhar projeto da mineradora, promotor Ricardo Rodrigues acompanhou as três audiências e conversou com moradores
Designado pelo procurador-geral de Justiça para acompanhar projeto da mineradora, promotor Ricardo Rodrigues acompanhou as três audiências e conversou com moradores | Foto: Jaqueline Silveira

Pareceres técnicos elaborados pelo MP questionam, entre outros pontos, o fato de o EIA-Rima não detalhar sobre as técnicas de uso e reuso das águas do Camaquã, bem como o tratamento dos rejeitos contaminados, a definição de um plano de recuperação da área degradada, além da instalação de uma unidade de conservação. Todas essas questões já foram encaminhadas à Fepam, que as repassou à Votorantim. Conforme o promotor, a empresa tem 120 dias para responder aos questionamentos, prazo que vence no início de janeiro. Depois, a resposta será avaliada por ele e os técnicos que elaboraram os pareceres. Enquanto isso, Rodrigues irá fazer reuniões com entidades e órgãos; uma delas já está marcada e será com o Comitê da Bacia do Rio Camaquã, que reúne 28 municípios.

Do ponto de vista da maioria da população que esteve presente nas audiências, a intenção é resistir ao empreendimento, e o recado foi claro: “Chumbo, aqui não”, frase mais ouvida nos três dias de longas reuniões.


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