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22 de janeiro de 2016
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23:43

“O Brasil está no momento em que a Jessica caiu na piscina e a dona Bárbara está lá berrando”

Por
Sul 21
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Cine debate do filme Que horas ela volta? teve presença da ministra do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, Tereza Campello, da diretora do filme, Anna Muylaert, da presidenta da UNE, Carina Vitral e da ccordenadora nacional do Fórum Brasileiro de Economia Solidária, Xica da Silva. (Foto: Mariana Carlesso/Sul21)
Cine debate do filme “Que horas ela volta?” teve presença da ministra do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, Tereza Campello, da diretora do filme, Anna Muylaert, da presidenta da UNE, Carina Vitral e da ccordenadora nacional do Fórum Brasileiro de Economia Solidária, Xica da Silva. (Foto: Mariana Carlesso/Sul21)

Marco Weissheimer

Por vezes, alguns filmes têm a virtude de capturar um momento, um sentimento, uma atmosfera de um período histórico de uma sociedade ou de um país. O filme “Que horas ela volta?”, de Anna Muylaert, é um exemplar dessa espécie seleta, conforme ficou mais uma vez demonstrado no Fórum Social Temático de Porto Alegre. Filas se formaram desde às 13 horas desta sexta na Casa de Cultura Mário Quintana para garantir um lugar na exibição-debate programada para o Teatro Bruno Kiefer. Após a exibição do filme, um debate reuniu Anna Muylaert, a ministra do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, Tereza Campello, a presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE), Carina Vitral, e a coordenadora nacional do Fórum Brasileiro de Economia Solidária, Xica da Silva.

“O Brasil está no momento em que a Jessica caiu na piscina e a dona Bárbara esta lá berrando: sai daí! sai daí! Mas acho que não tem mais volta. Uma vez que se adquire consciência de algo, não é possível retornar. Não se trata de dinheiro, mas sim de consciência. Esse filme fala de pequenas coisas que, por sua vez, falam de grandes coisas. E o Brasil ainda tem muitas coisas do passado que precisam ser atualizadas”. A fala da diretora Anna Muylaert sobre o sentido de “Que horas ela volta?” resume bem a poderosa conexão que as pequenas e as grandes coisas têm no filme. Um pote de sorvete, uma piscina, um jogo de xícaras, um suco de lima da pérsia: pequenas coisas como estas compõem uma narrativa que falam do Brasil da desigualdade social, do racismo, do machismo e da segregação.

Promovida pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à fome, a exibição do filme, seguida de debate, lotou completamente o Teatro Bruno Kiefer, dentro da programação do Fórum Social Temático Porto Alegre. O público, formado majoritariamente por jovens, muitos deles universitários, ilustrou uma das ideias centrais do filme: há um país novo nascendo que convive ainda com muitas sombras e monstros cuja origem remonta a um Brasil arcaico, mas que resiste em desaparecer. Esse público também foi representativo de uma das personagens centrais do filme, Jessica, filha de Val, empregada da família de Bárbara.  “O Brasil está mudando mesmo para melhor e o número de Jessicas só vai aumentar. Acredito que essa é a única porta possível de transformação para o Brasil: a educação e o direito à cidadania”, disse Muylaert.

Anna Muylaert: "A ideia de uma elite privilegiada e de uma maioria desprivilegiada não é nada chique e nunca será. O Brasil sempre será um país atrasado enquanto durar essa mentalidade”. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)
Anna Muylaert: “A ideia de uma elite privilegiada e de uma maioria desprivilegiada não é nada chique e nunca será. O Brasil sempre será um país atrasado enquanto durar essa mentalidade”. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

“Que horas ela volta?” foi lançado na Europa e despertou reações de ceticismo em relação a algumas cenas, relatou a diretora. “Mas isso existe mesmo? A pessoa fica sentada e pede ‘me dá um copo d’água’? Isso é da época do meu tataravô”. Anna Muylaert respondia que isso ainda existe, sim, e que o Brasil está precisando atualizar essas regras de comportamento de séculos atrás. “O país está atravessando uma fase de transição. Expliquei a eles que tivemos há alguns anos a eleição do primeiro presidente oriundo das classes de baixa renda, que foi o primeiro a olhar para essa questão e conseguiu produzir uma guinada histórica no navio, que ainda é muito pequena perto do que precisamos fazer, mas que deixou sementes para um novo Brasil e para uma ideia de nação. Nós vivemos muitos anos sem que o Brasil pudesse ser chamado de nação na medida em que ele não protegia os seus próprios filhos. A ideia de uma elite privilegiada e de uma maioria desprivilegiada não é nada chique e nunca será. O Brasil sempre será um país atrasado enquanto durar essa mentalidade”, assinalou.

Anna Muylaert explicou que procurou não fazer julgamentos individuais no filme, mas sim mostrar o esquema geral de um jogo social. “Eu procurei não julgar, nem mesmo os patrões. É verdade que, em determinados momentos, dona Bárbara tem certas atitudes que são difíceis de não julgar. Doutor Carlos é um cara liberal, pode até ser alguém de esquerda. Mas essa cultura separatista é muito profunda. Como a Jéssica pergunta para a Val: em que livro você leu isso? A gente toma essas regras na mamadeira, tendo nascido na cozinha ou na sala. O filme tentou tirar essas regras de baixo do tapete e colocá-las em cima da mesa para que todo mundo pudesse olhar e ver se essas regras ainda estão valendo tanto para um lado como para outro”.

Tereza Campello: "Filme mostra a transição difícil que a sociedade brasileira vive, com a presença de um stress entre o que já mudou e o que ainda não mudou, entre a noite e o amanhecer". (Foto: Guilherme Santos/Sul21)
Tereza Campello: “Filme mostra a transição difícil que a sociedade brasileira vive, com a presença de um stress entre o que já mudou e o que ainda não mudou, entre a noite e o amanhecer”. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

A ministra Tereza Campello disse que a decisão de exibir o filme e convidar a diretora Anna Muylaert para um debate nasceu de uma avaliação de que esta atividade seria uma oportunidade para discutir o que é mesmo o Fórum Social Mundial. “Eu tive a alegria de ajudar a construir a primeira edição do Fórum, há 15 anos, e olhar esse filme é, de certa forma, dizer: sim, é possível construir outro mundo. Ele mostra a transição difícil que a sociedade brasileira vive, com a presença de um stress entre o que já mudou e o que ainda não mudou, entre a noite e o amanhecer. É nesta hora do lusco-fusco que os monstros todos aparecem. Os monstros da nossa sociedade vieram à tona e o filme mostra esse momento de stress, de ruptura e da dificuldade do novo nascer, ainda convivendo com tantas coisas velhas. A Jessica é este novo. A gente acaba chorando não só porque o filme é lindo, mas porque ele cavoca um monte de coisas lá dentro da gente”.

Na avaliação da ministra, o Brasil vive hoje uma disputa, onde os que eram privilegiados olham a chegada da população de baixa renda como uma ameaça aos seus privilégios. “A disputa por uma vaga na universidade representa essa disputa que a sociedade vive hoje”, assinalou. “Essa é quinta vez que vejo o filme. Para mim, o que é mais revelador está relacionado às duas mulheres nordestinas, que vieram para o sul deixando seus filhos com parentes, para cumprir trajetórias completamente diferentes. Uma naquela condição de retirante e a menina Jessica vindo para se colocar fora do lugar. O que desestrutura e incomoda a família é que ela está fora da ordem e chega para quebrar aquela ordem que existia. O que eu acho mais importante no filme é que a Jessica não é uma história única e diferente. Certamente nós temos um monte de Jessicas aqui. Todos os dias a gente vê jovens do Bolsa Família, filhos de mulheres do Bolsa Família, jovens de baixa renda que chegaram à universidade. Nós não temos apenas centenas de Jessicas, temos Jessicas passando em primeiro lugar para Medicina, como aconteceu agora no Ceará. Creio que isso é o mais forte hoje no processo de transformação que está em curso no Brasil”.

Carina Vitral: "Há muito tempo que o movimento estudantil tem consciência que a universidade é um espaço estratégico e que o povo precisa estar dentro dela". (Foto: Guilherme Santos/Sul21)
Carina Vitral: “Há muito tempo que o movimento estudantil tem consciência que a universidade é um espaço estratégico e que o povo precisa estar dentro dela”. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

A presidenta da União Nacional de Estudantes (UNE), Carina Vitral, destacou que o filme tem um significado histórico para o movimento estudantil brasileiro que luta, há décadas pela democratização da universidade. “A UNE está completando 80 anos este ano e, desde que ela foi fundada, a principal pauta do movimento estudantil sempre foi a democratização da universidade. A universidade é um instrumento de poder ideológico muito forte. Há muito tempo que o movimento estudantil tem consciência que a universidade é um espaço estratégico e que o povo precisa estar dentro dela”. E, às veze, conforme lembrou Anna Muylaert, a universidade é mais inacessível do que a piscina da casa da família onde Val trabalha.

“Que horas ela volta?”, disse ainda a presidente da UNE, é um alento para todos os que lutam. “O filme mostra que a nossa luta está transformando o Brasil. Essa mudança está apenas começando, mas estamos conseguindo mudar a nossa realidade e isso é mostrado no filme com muita doçura, beleza e bom humor. Na minha visão, ele mostra também esses dois Brasis que ainda convivem e que tem uma marca geracional muito forte. Há o Brasil de ontem, representado pela Val, que é um país de muita exclusão social e desigualdade, e o Brasil da Jéssica, que é um novo país representado por uma jovem mulher nordestina de cabeça erguida. Esse novo Brasil é representado pela fala da Jessica que diz: eu não me considero melhor do que ninguém, mas também não me considero pior do que ninguém”.

Xica da Silva: "O filme coloca o bode na sala e cutuca todo mundo. Ele incomoda, mas é um incomodamento bom". (Foto: Guilherme Santos/Sul21)
Xica da Silva: “O filme coloca o bode na sala e cutuca todo mundo. Ele incomoda, mas é um incomodamento bom”. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

Mediadora do debate, Xica da Silva, coordenadora nacional do Fórum Brasileiro de Economia Solidária, ficou emocionada com a cena na qual Val presenteia a patroa com um jogo de xícaras e com o desprezo como Bárbara tratou o presente. “A minha patroa fez aniversário e eu dei de presente a ela um jogo de copos lindo. Paguei um dinheirão na época. Ela disse que iríamos guardar os copos para um dia especial. Mas eles acabaram sendo usados pelas empregadas da casa mesmo. Eu olhava para aqueles copos com tanta tristeza. Eles não usavam os copos nem para tomar água na cozinha. Eu me emocionei muito porque a minha vinda aqui não estava nada planejada, foi de última hora”.

Xica da Silva começou a trabalhar como babá aos 12 anos de idade, sofreu assédio sexual do patrão, foi vítima de violência doméstica e cárcere privado por parte de seu ex-companheiro, mas deu a volta por cima, separou-se e hoje é chefe de cozinha formado pelo Serviço Nacional do Comércio (Senac). Para ela, o filme coloca o bode na sala e cutuca todo mundo. “Ele incomoda, mas é um incomodamento bom. Eu mudei a minha maneira de pensar depois que eu vi o filme. E, a cada vez que vejo de novo, descubro uma nova abordagem, uma nova reflexão. É um filme que provoca reflexões de vários ângulos e para o bem. Para mim, de ensino fundamental incompleto, formada na faculdade da vida, é um filme que mostra como as coisas são e a realidade que está caminhando para o futuro”.

Foto: Guilherme Santos/Sul21
Foto: Guilherme Santos/Sul21

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