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31 de outubro de 2015
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16:59

Elas na luta pela terra

Por
Sul 21
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Placa homenageia a memória de Roseli Celeste Nunes da Silva, no cemitério onde está enterrada, na Fazenda Annoni. Foto: Gerson Costa Lopes
Placa homenageia a memória de Roseli Celeste Nunes da Silva, no cemitério onde está enterrada, na Fazenda Annoni. Foto: Gerson Costa Lopes

Fernanda Canofre e Gerson Costa Lopes

Roseli Celeste Nunes da Silva queria um pedaço de terra. Tinha 31 anos, dois filhos – Vanisa e Paulo – e sonhava para eles um mundo diferente do que aquilo que havia conhecido na vida em Rondinha. O marido não discutia. Quando Rose decidiu que iria se juntar à primeira ocupação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), na região de Sarandi e Ronda Alta, no noroeste do Rio Grande do Sul, José apenas disse: “Tu que sabe. Se tu quiser ir, se acha que pode ir…”. Rose levantou os olhos negros no rosto marcado de sol, encarou o marido e disparou decidida: “Acha não! Eu posso. E vou”.

Nas primeiras ocupações realizadas nas Fazendas Macali e Brilhante, parte da antiga Sarandi, Rose não conseguiu terra. Nem por isso esmoreceu. O grupo de colonos sem-terra da região estava apenas começando sua luta. E ela era um deles. No final de outubro de 1985, Rose era mais uma das 4 mil pessoas que jogaram algumas mudas de roupa, um punhado de comida e os filhos para cima de um caminhão, prestes a ocupar a Fazenda Annoni e conseguir seu chão. A diferença era a barriga de quase nove meses pronta para trazer gente nova ao mundo a qualquer momento.

Entre os trabalhadores sem-terra que acamparam na Fazenda Annoni há 30 anos, histórias de mulheres que puxaram as famílias para o acampamento em busca de terra são comuns. Mais até do que o inverso. Na época de cerco da Brigada Militar, eram elas que estavam no cordão de frente, de mãos dadas, enfrentando coronéis e baionetas. Se quem entrou na Annoni no dia 29 de setembro de 1985 queria uma sociedade diferente, sabiam que a igualdade entre homens e mulheres era questão inegociável. Embora também soubessem que teriam o duro conservadorismo do meio rural para enfrentar.

 

Ana Maria de Bertoli, Lorene Biazus Maschio e Alcenir Terebinto Santa Catarina: a continuidade de um legado de luta. Foto: Fernanda Canofre

No interior do Rio Grande do Sul, estado com economia agrícola, a tradição entre as famílias de colonos seguia de acordo com o gênero dos filhos. Quando uma filha se casava, antes de trocar a casa dos pais pela dos sogros, ganhava de presente uma vaca para tirar leite e uma máquina de costura. Para os filhos, o esperado era que continuassem vivendo na propriedade para dividir a produção com o pai e assumir as terras quando este partisse. A casa que tinha mais filhos homens acabava tendo de dividir a terra, geralmente pequena, entre mais gente.

A mãe de Lorene Biazus Maschio não conseguia mais ver o marido trabalhar na lavoura noite e dia e nunca ter qualquer esperança de ter sua terra. Toda a produção da pequena fazenda do sogro tinha de ser dividida entre os filhos e não era suficiente. “A mãe foi quem tomou a decisão de vir para cá, o pai só seguiu”, conta Lore. Foi assim que aos 11 anos, ela e os 4 irmãos – com idades entre 14 e 5 anos – subiram num caminhão segurando panelas, poucas roupas, carne do porco carneado especialmente para a viagem e deixaram a casa dos avós paternos. Mesmo com toda incerteza daquela situação, de seguir um movimento que ninguém conhecia, a mãe não ia desistir.

No Brasil da virada entre os anos 1970 e 1980, mulheres e terra eram personagens do mesmo eixo. A terra era tudo o que restava a elas quando a seca no nordeste levava os homens a migrar para o sudeste em busca de uma vida melhor. Para eles, a promessa da partida era a passagem de ida para a família; mas para elas, a realidade (quase sempre) acabava sendo o resto da vida esquecidas no sertão. Eram essas as histórias que Tetê Moraes, cineasta criada nas oficinas do semanário Sol, no Rio de Janeiro, presa e torturada durante a ditadura, queria colocar em filme. Trabalhando como assessora de jornalistas estrangeiros interessados no Brasil que saía da ditadura, Tetê havia viajado por todo o interior nordestino e conhecia bem aquela realidade.

Esse mesmo trabalho que fazia enquanto tentava arrancar com seus filmes, foi o que a trouxe para o sul. Um repórter do National Geographic, recém-chegado ao Brasil, bateu à sua porta pedindo ajuda para retratar o período de transição do país saindo da ditadura militar. Tetê lembrou então de uma história que havia lido no jornal no outro dia. Uns colonos estavam acampados em uma grande propriedade rural no Rio Grande do Sul, se organizavam com o nome de MST. “Perguntei se ele não queria ver aquela história de perto, que tinha algo diferente acontecendo naquele lugar, mas nem eu sabia o que era. Ele perguntou se não teria perigo, se os agricultores não estariam armados…mas depois topou”, lembra Tetê, numa tarde de domingo na orla de Ipanema anos depois.

 

Roseli acabou virando a protagonista do filme “Terra para Rose”, da cineasta Tetê Moraes. Foto: Reprodução/Terra para Rose

A cineasta conheceu parte dos colonos acampados na Annoni no meio dos 400km de marcha a pé até Porto Alegre. O plano era pressionar deputados e o governador Jair Soares no processo de desapropriação da Fazenda que havia sido declarada improdutiva 13 anos antes da chegada deles. Para isso, o plano dos agricultores era acampar na Assembleia Legislativa. Vendo aquelas mulheres na marcha, Tetê decidiu adaptar sua ideia de documentário para outra região do país. Em pouco tempo, juntou uma equipe de filmagem, tirou dinheiro do próprio bolso e partiu para o sul.

Tetê não lembra da primeira vez que viu Roseli, a Rose. Provavelmente, foi em uma noite de entrevistas e filmagens, em algum lugar onde os sem-terra em marcha paravam para dormir. Sua atenção ficou no grupo de mulheres que eram da organização e estavam sempre juntas. A líder era Luci, única mulher na coordenação do acampamento, que depois assumiu posto na organização estadul do MST no RS. Mas também havia uma morena baixinha falante, tranquila e muito decidida. Nas assembleias internas ou durante as marchas, ela sempre caminhava de passo firme, amamentando o filho de 5 meses.

Rose havia dado a luz ao terceiro filho dentro da Annoni, nos primeiros dias da ocupação. Todos os sem-terra na fazenda se reuniram para escolher o nome do primeiro bebê nascido em um acampamento do MST. Por força do voto, o guri foi batizado como Marcos Tiarajú. Tetê Moraes simpatizou com aquela agricultora de cara. A imagem de Rose marchando e amamentando o filho era algo muito forte para alguém que buscava um filme sobre mulheres e terra. Em sua cabeça, o documentário tinha um nome desde o início, seria “Elas na luta pela terra”. Mas isso logo mudou para uma homenagem a mulher que se abria diante da câmera, se expressando melhor do que o rico latifundiário que queria expulsar aquela gente de suas terras. O filme virou “Terra para Rose”. “Ela só tinha um defeito. Era gremista”, brinca.

Lore não conviveu muito com Rose. No meio das 7 mil pessoas que viviam na Annoni, ela ficava mais próxima daqueles que tinham vindo da mesma região que sua família, o município de Tapejara. Ainda assim, as cenas são parte de sua história também. “As mulheres eram quem pegava a frente. Eram elas quem chamava todos pelo alto-falante nas marchas”, lembra.

Ter mulheres e crianças frente a frente com a barreira da BM era uma tática para inibir a violência policial. Funcionou nos acampamentos da Macali, Brilhante e depois na Encruzilhada Natalino. Funcionou no começo da Annoni também, mas com vida curta. Depois de um tempo, a polícia passou a bater sem discriminação. Mulheres e homens apanhavam da mesma maneira. Alcenir Terebinto Santa Catarina estava sempre nas barreiras encarando os brigadianos e sabe.

Alce, como é chamada pelas vizinhas no assentamento da Área 1 da Annoni, se juntou aos sem-terra por decisão própria. Os pais tinham medo, ela não. Nascida numa família com cinco filhas, em casa trabalho nunca foi poupado às mulheres. “Meu pai bebia, então sobrava para nós fazer tudo”, diz. Alce e as irmãs se dividiam entre lavar roupa, cozinhar e arar a lavoura, ensacar e carregar os sacos de 50kg de feijão, soja, milho. Como o marido dela era um dos líderes do grupo de Ronda Alta, nem pensou duas vezes antes de juntar as coisas em casa e partir para o acampamento, viver em um barraco de lona com mais 7 pessoas. Na mesma hora, a diocese de Frederico Westphalen, onde Alce era catequista, a expulsou. A igreja não tinha lugar para “baderneira”. Boa parte da família, também a via assim: “uma comunista que ia tirar terra dos outros”. Quatro anos depois, uma das irmãs também veio viver no acampamento.

Depois que as terras da Annoni foram distribuídas e as famílias assentadas, os nove mil hectares de latifúndio se dividiram em oito comunidades. Apenas uma delas conseguiu se adaptar ao sistema cooperativista. As demais são lotes de agricultura familiar. Darci Maschio, um dos líderes da ocupação e hoje presidente da Cooperativa de laticínios Coperlat, conta que muitos homens desistiram da cooperativa quando descobriram que suas esposas ganhariam o mesmo salário que eles no final do mês. Treze famílias ficaram.

Na cooperativa, todo o dinheiro do mês é dividido igualmente entre os sócios-funcionários. Não há hierarquia entre os cargos para influenciar. Darci, por exemplo, ganha o mesmo como presidente que a menina que ajuda a cuidar das crianças. O valor equivale a R$ 1 mil. Além disso, todos têm a mesma carga horária, com uma diferença: as mulheres podem sair uma hora mais cedo para fazer trabalho doméstico. “A gente sabe que homem não vai limpar a casa todos os dias. Então, saímos mais cedo para fazer isso, mas é uma hora de trabalho pago. Porque estamos fazendo para todos né”, explica Lore.

E talvez não seja assim para sempre. “Nossos homens também mudaram. Antes se escondiam para lavar uma louça, agora ajudam”, conta Alcenir. “Ainda têm aqueles que passam fazendo piadinha. Veem um homem varrendo a área de casa e falam: mudou de profissão? Mas queria saber onde é que tá escrito que só a mulher é que tem que fazer o trabalho da casa?!”.

Para ela, no começo todos achavam que era só ter um pedaço de terra. Depois, viram que não poderia ser só isso, que precisavam ir além. E assim que começaram a quebrar as próprias barreiras. “Isso foi uma escola, porque todo mundo vinha de comunidades muito tradicionais. Abriu a cabeça das mulheres ao chegar aqui”, completa Lore.

No espaço do acampamento, as mulheres viram que estavam em situação de igualdade. As ruelas de barracos de lona preta e costaneira, habitadas por 7 mil pessoas, eram como uma cidade. O acampamento na Annoni tinha mais habitantes que a localidade de Pontão, só emancipada depois que o assentamento foi incorporado. Como uma cidade, enfrentava os mesmos problemas sociais que qualquer município. Inclusive violência doméstica. Quando isso acontecia, antes que vazasse para a Brigada, que esperava uma desculpa para entrar na área, o acampamento tinha suas própria punições. Um homem que batia em uma mulher ali era expulso temporária ou permanentemente da Fazenda. Em alguns casos, a mulher era retirada do meio do agressor e levada a um barraco seguro.

Isso não garantia uma sociedade perfeita, mas coibia a violência contra as mulheres. Nas palavras de Lore: “Aprendemos que em briga de marido e mulher a gente mete a colher, sim”. Mesmo na casa de Rose, uma das mais determinadas entre os colonos do movimento, havia problemas. O marido tinha problemas com alcoolismo. Ela seguidamente estava sozinha com os três filhos em roda dos pés. Era por eles que Rose estava ali.

 

Rose sonhava em ter espaço para criar algumas vacas leiteiras e plantar verduras que pudesse vender a preços justos na cidade. Foto: Reprodução

Quando Tetê Moraes lançou “Terra para Rose”, o Brasil possuía 140 milhões de habitantes. Destes 4,5 milhões eram proprietários rurais, mas apenas 170 mil eram donos de quase metade da área agrícola total do país, contribuindo com 16% da produção agropecuária. Doze milhões de famílias não tinham terra. Vinte e quatro milhões de pessoas, entre 1974 e 1980, sem ter outra alternativa, acabaram migrando para a cidade.

Hoje, com 200 milhões de habitantes, o Brasil viu diminuir o número de colonos sem-terra para 4 milhões de famílias. A concentração de terras em grandes propriedades privadas, porém, aumentou 2,5% nos últimos cinco anos. Segundo pesquisa divulgada este ano pelo Sistema Nacional de Cadastro Rural, os grandes latifundiários passaram de 238 milhões de hectares para 244 milhões. Atualmente, 130 mil imóveis rurais concentram 47,23% de toda a área agrícola registrada pelo Incra. O Atlas da Terra de 2015 revelou que 175,9 milhões de hectares estão improdutivos.

Rose sonhava em ter espaço para criar algumas vacas leiteiras e plantar verduras que pudesse vender a preços justos na cidade. “A gente está lutando por um objetivo que não é só nosso, mas de todos nossos companheiros pobres que temos no Rio Grande e no Brasil também. A gente está lutando também por eles”, diz ela para a câmera de Tetê. Rose sabia que a luta não terminava com a terra conquistada. Apenas começava ali.

Para reunir material suficiente para o filme, Tetê viajou quatro vezes para o Rio Grande do Sul. A primeira entrevista com Rose não foi nada extraordinária. Ela ainda precisava encontrar o personagem em quem iria se aprofundar. Nove meses depois do primeiro encontro com aquela gente que fazia berço ao MST, ela estava perdida em meio a latas e latas de filme 16mm, quando recebeu a notícia do atropelamento de um grupo de sem-terra da Annoni. Três pessoas morreram. Tetê ficou chocada. Além da simpatia entre as duas durante as filmagens, ela estava convivendo com o sonho de Rose há dias nas telas da ilha de edição. “Quem poderia admitir que a Rose morresse? Não estava no roteiro”.

 

Darci Maschio, um dos líderes da ocupação da Fazenda Annoni, no túmulo de Rose. Foto: Gerson Costa Lopes

Os sem-terra fecharam uma parte da estrada próxima a Annoni para um protesto contra o governo Sarney e seu atraso com a reforma agrária. Tratores serviam como bloqueio e vinham sinalizando o trecho interrompido a 1km de distância de onde estavam os colonos. Ainda assim, um caminhão que trafegava no local se jogou por cima da manifestação. Rose que estava em cima de um trator, foi, segundo o filme de Tetê, despedaçada. Dois outros agricultores que estavam em frente ao trator, também morreram no local. O motorista fugiu. Mais tarde, ele alegou problema com os freios do veículo. Engenheiros da Ford de São Paulo foram chamados para fazer perícia: não encontraram nenhum defeito.

O Fórum de Sarandi, onde corria o processo para investigar as mortes, pegou fogo dois meses depois do acidente. Todos os documentos do caso estavam lá. Adão Pretto, então deputado estadual, deu início a uma Comissão Parlamentar de Inquérito para investigar o incêndio e as mortes. Mas depois de a empresa proprietária do caminhão fechar acordos de indenização com as famílias das vítimas, o caso foi encerrado sem nunca ter sido esclarecido.

Como deputada constituinte, Bete Mendes defendia que a reforma agrária era uma causa prioritária para as mulheres. Ainda é. Dentro do MST, elas já garantem o mesmo número de cargos de representantes que os homens. Foi o movimento também que impulsionou a conquista da licença-maternidade para mulheres agricultoras. Nos encontros estaduais e nacionais de mulheres, são elas que pautam e realizam ações ligadas às raízes do movimento.

Para as filhas, Lore, Alce, Rose e outras milhares de mulheres deixaram um mundo diferente. “Elas não vão ser como nós. Ninguém vai pisar nos calos delas”, afirma Lore. “Agora só não é diferente se elas não quiserem. Por que vale a pena tudo isso? Porque agora eles percebem as injustiças”.

 

Esta é a segunda de três reportagens especiais sobre os 30 anos da ocupação da Fazenda Annoni, um marco para o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra.

Leia as outras reportagens: ‘O sonho era ter um pedaço de terra’ e “Ocupar, resistir e produzir”: Um novo modelo de vida nasce


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