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27 de agosto de 2015
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18:14

População de rua protesta contra higienização e exige políticas públicas

Por
Sul 21
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Foto: Caroline Ferraz/Sul21
Movimento saiu do Largo Zumbi dos Palmares | Foto: Caroline Ferraz/Sul21

Débora Fogliatto

A população mais invisível de Porto Alegre exigiu ser vista nesta quinta-feira (27). Em protesto que faz alusão ao Dia Nacional de Luta da População em Situação de Rua, dezenas de pessoas marcharam no centro da cidade em uma mobilização com música e teatro aliados a reivindicações e luta. As principais exigências da manifestação, que começou pela manhã no Largo Zumbi dos Palmares, são o fim da higienização que acontece com os moradores em situação de rua na Avenida Borges de Medeiros, a existência de políticas públicas efetivas, o não fechamento da Escola Porto Alegre e do Albergue Dias da Cruz e o retorno definitivo do Restaurante Popular.

O Dia de Luta lembra o Massacre da Sé, que completa 14 anos em 2015. Na Praça da Sé, em São Paulo, entre 19 e 22 de agosto de 2004, 15 pessoas em situação de rua foram violentamente atacadas por policiais enquanto dormiam, das quais sete morreram. Desde então, o dia passou a marcar movimentos e organizações para denunciar o massacre e os demais descasos com esta população por todo o Brasil. Inicialmente, a mobilização aconteceria dia 19 em Porto Alegre, mas foi transferida devido à chuva que caía naquela data.

Em Porto Alegre, a manifestação foi organizada pelo braço local do Movimento Nacional da População de Rua (MNPR), e contou com aderência de apoiadores e de pessoas que estavam nas ruas e viam a passeata se deslocar. Com início, por volta das 10h, a concentração teve música e a marcha saiu em direção à Borges, de onde seguiu pela Jerônimo Coelho até a Praça da Matriz. Ao passar pela casa do prefeito José Fortunati, os participantes o vaiaram, da mesma forma como fizeram ao chegar no Palácio Piratini.

Foto: Caroline Ferraz/Sul21
Antes da saída em marcha, momento de música | Foto: Caroline Ferraz/Sul21

Cantando “ôôô, morador de rua também quer virar dotô”, os militantes também se revezavam no microfone de carro cedido pelo Sindicato dos Municipários, criticando recentes ações de “remoções” de pessoas feitas pela Brigada Militar no centro da cidade. “Quero dizer pros comerciantes da Borges que morador de rua não é bandido, não precisa chamar a polícia”, afirmou Veridiana Farias Machado, trabalhadora social e apoiadora do MNPR. “Ao invés de chamar a Brigada Militar, se juntem a nós para pedir uma cidade com acesso a serviços e políticas públicas”, pediu Richard Gomes de Campos, um dos coordenadores do Movimento.

Nos cartazes, reivindicações simples: “População de rua não é entulho para ser removida”; “povo da rua resiste”; “não me bata, me abrace”; “temos direito a ter direitos”. A ideia era conseguir comunicar para a comunidade do centro as pautas do movimento, a partir de falas no microfone e entrega de panfletos. Algumas pessoas se interessavam, perguntavam e pediam para ler a explicação no papel, enquanto outras tratavam os participantes do movimento da forma como a maioria da sociedade os trata no dia-a-dia: ignorando e passando reto.

Chegando ao Palácio Piratini, Veridiana também criticou as políticas voltadas para a saúde mental e dependentes químicos, implantadas pelo governo estadual. “Esse governo prioriza os manicômios, e não os CAPS [Centros de Atendimento Psicossocial]. Mal começou e já tem retrocessos”, afirmou. Já Anderson da Rosa Ferreira, também do MNPR, destacou que “todo dia a população de rua é massacrada, violentada por esse governo que só sabe chamar a polícia”.

Foto: Caroline Ferraz/Sul21
Data marca os 11 anos do Massacre da Sé | Foto: Caroline Ferraz/Sul21

Dentre os participantes, alguns já estiveram em situação de rua, outros ainda estão; alguns passaram pouco tempo, outros muito; alguns preferem dormir em albergues, outros em praças. Dentre as diversas histórias, chama atenção o rosto jovem de Diego Oliveira, de apenas 22 anos, que é integrante da equipe do jornal Boca de Rua. A publicação, que está completando 15 anos, é uma iniciativa premiada, pioneira no país, que coloca a própria população em situação de rua como jornalistas.

Diego morou na rua por poucos meses, mas ficou marcado pela experiência. Atualmente, vive em uma pousada, mas pretende logo conseguir alugar um apartamento, com o emprego que conseguiu em uma lanchonete. Ele foi parar nas ruas quando precisou sair do abrigo onde morou a vida inteira, após sua mãe ter morrido no parto. Quando tinha um ano, foi adotado, mas o pai adotivo o jogou em uma lata de lixo, e ele voltou para a abrigagem. Descobriu sua própria história ouvindo por acidente uma conversa da psicóloga que frequentava, aos 7 anos.

Questionado sobre como foi crescer no abrigo, é difícil responder. “Olha, eu… Não conheci outros jeitos né. Mas eu ia pro colégio, praticava esportes, inclusive já fiz teatro também”, conta ele, que já cursou até o segundo ano do Ensino Médio. Diego pretende completar os estudos, embora por enquanto sua principal preocupação seja conseguir um local fixo para morar. “Tenho um mês para ficar nessa pousada. O problema é que eu tinha perdido meus documentos, mas já me disseram que o emprego é meu, vou começar dia 3”, garante.

Foto: Caroline Ferraz/Sul21
Reivindicações que parecem simples, mas nem sempre são respeitadas | Foto: Caroline Ferraz/Sul21

A história de Júnior Souza é bem diferente: foi graças às drogas que ele foi parar na rua, há três meses. Sem coragem de voltar para a esposa e o filho, perdeu até o aniversário do menino de 7 anos. Foi para as ruas, mas garante que não quer que esse seja seu destino final: acredita que com força de vontade, possa largar o vício e voltar para a família. “Eu tenho família, tenho até carteira de motorista, carteira de trabalho. Eu sei que preciso tomar jeito”, constatou ele, que ficou sabendo da mobilização enquanto estava na rua, na Cidade Baixa.

Povos originários 

Em frente à Assembleia Legislativa, a mobilização se juntou a representantes da Frente Quilombola e de povos indígenas, que foram ao local acompanhar a votação do projeto de lei 31/2015, que garante a agricultores e empreendedores familiares do Rio Grande do Sul, donos de propriedades de até quatro módulos fiscais, e a pecuaristas familiares detentores de propriedades de até 300 hectares, que suas terras não serão demarcadas para formação de territórios indígenas e quilombolas. O projeto é do vereador líder da bancada do PSB, Elton Weber.

O projeto foi aprovado, também nesta quinta-feira (27), pela comissão de Agricultura e agora segue para a de Direitos Humanos. O advogado e militante da Frente Quilombola Onir Araújo destacou que o PL é inconstitucional e fere “os direitos dos povos originários”. “Isso é uma irresponsabilidade muito grande, apenas acirra o conflito entre indígenas e quilombolas e pequenos agricultores”, apontou. O cacique kaingang José Vergueiro defendeu a necessidade de serem feitos estudos para a demarcação das terras.

Ele apontou que o PL apenas cria atritos e incentiva o confronto entre as duas partes de um conflito já existente. “Achamos que tem que ser demarcado, se a terra for do agricultor, ele tem direito a ela. Mas nós temos uma relação diferente com a terra, acreditamos que ela é nossa mãe, por isso acreditamos na preservação do meio-ambiente. Se colocarmos venenos, vamos matar ela”, afirmou.

Nossos mortos têm voz

Diante do cartaz que dizia “Nossos mortos têm voz”, elaborado pelo movimento da população de rua, o cacique concordou: “Nossos mortos também têm voz. E nós somos mortos todos os dias, inclusive pela polícia. Mas preferimos a morte do que parar de lutar”.

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Protesto foi organizado pelo MNPR | Foto: Caroline Ferraz/Sul21

Em seguida, ainda em frente à AL, foi realizada uma apresentação da peça Invisíveis, em que seis atores fizeram uma representação do massacre da Sé. Inicialmente, eles representaram as pessoas em situação de rua, e depois eles mesmos interpretaram os policiais que os mataram. No fim, velas foram acendidas em homenagens aos mortos, não só daquele massacre, mas de outros também. “João, Maria. Quem mais, gente?” perguntou um dos atores. O questionamento foi seguido de uma enxurrada de nomes, sobrenomes e apelidos ditos pelas pessoas presentes enquanto se lembravam de companheiros que morreram. Com as velas ainda acesas no chão, foi feito um minuto de silêncio para homenageá-los.

Voltando ao clima de reivindicações misturado com festa, os manifestantes seguiram pela rua General Câmara, de onde foram até a Borges e chegaram no Paço Municipal. Lá, o protesto segue durante a tarde, com mais apresentações culturais.

 


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