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1 de agosto de 2015
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18:17

Livro analisa personagens LGBTs em telenovelas de 1970 a 2013

Por
Sul 21
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Foto: Guilherme Santos/Sul21
Livro é resultado da pesquisa de mestrado de Fernanda | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Débora Fogliatto

A mestre em Comunicação Social pela PUCRS Fernanda Nascimento lançou, na última quinta-feira (30), seu primeiro livro, fruto da dissertação de mestrado. Em “Bicha (nem tão) má: LGBTs em telenovelas”, ela analisa todo o histórico de personagens lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais na Rede Globo, desde a primeira aparição, em 1970. A pesquisa culmina na personagem Félix, de Amor à Vida, exibida na faixa das 21h enquanto a jornalista realizava o mestrado.

O interesse pelo tema surgiu ainda na graduação, feita também na Pontifícia Universidade Católica (PUC), em 2011. Na época, a novela que estava no ar era Ti-Ti-Ti, um remake da original, que havia sido exibida em 1985, e que se tornou tema do trabalho de conclusão de curso da jovem. A partir daí, ela percebeu “a possibilidade enorme que tinha de estudar telenovela para entender as identidades LGBT”, segundo explica.

Quando fez seu projeto de mestrado, em 2012, Félix “ainda não existia”, e a ideia inicial era estudar a novela anterior, Insensato Coração, que também tinha um núcleo homossexual. “Mas, quando eu comecei o mestrado apareceu o Félix, e com toda essa questão do personagem ser um protagonista — antagonista, na verdade, essa bicha má — que trouxe à tona toda uma discussão de gênero e sexualidade que não teria acontecido de forma tão grande se ele não fosse um personagem importante”, reflete Fernanda. Ela então fez a pesquisa a partir de Félix, analisando ainda as outras personagens homossexuais, como Niko e Eron, que discutiam adoção e inseminação artificial.

Na narrativa, Félix (Mateus Solano) é o administrador de um grande hospital, dirigido por seu pai. Ele inicia a trama casado com uma mulher, com quem tem um filho. Ao longo da novela, sua sexualidade é descoberta pela esposa e pela família, e ele passa a sofrer rejeição por parte do pai, que não aceita sua identidade. Com isso, passa de rico para pobre, de administrador para vendedor de cachorros-quente, até, no último capítulo, reconciliar-se com o pai. Ele também protagoniza, no mesmo capítulo, o primeiro beijo homossexual de telenovelas da Rede Globo, com seu namorado Niko (Thiago Fragoso).

Foto: Guilherme Santos/Sul21
Lançamento e sessão de autógrafos aconteceram na Aldeia, em Porto Alegre | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Mas para além de Félix, chama atenção o grande apanhado feito por Fernanda de todas as personagens LGBTs, que são 126 em 62 narrativas, desde a novela Assim na Terra Como no Céu (1970). A autora realizou o panorama a partir de pesquisas que haviam sido realizadas anteriormente e com informações da própria Rede Globo. “Não foi simples fazer esse panorama, passa por um estudo bem aprofundado de pesquisas anteriores sobre o tema: foram 10 dissertações e uma tese antes da minha. Então essa construção foi difícil, mas é uma das coisas que eu mais me orgulho no livro, porque a gente consegue perceber que personagens eram esses e que representações eram essas”, aponta.

O quadro inserido no livro não apenas cita as personagens, mas também as classifica de acordo com faixa etária, classe social, etnia e performatividade de gênero. Esse é um dos pontos mais destacados por Fernanda: a forma como as personagens vivenciam sua sexualidade, se são identificadas pelo resto da sociedade como gays (no caso dos homossexuais masculinos). Se são discretas a respeito, e são consideradas ‘bichas’ indiscretas ou se apresentam de forma mais masculina. A partir daí, foi possível fazer algumas constatações. “Tem hegemonicamente uma representação de homossexuais masculinos, são 76 gays, 24 lésbicas e oito mulheres transexuais. E apenas quatro são negras, é uma sub-representação muito grande. E também no quesito geração, a maioria eram jovens, e quando havia mais velhas, sua sexualidade não era demonstrada”, avaliou.

Ela afirma que, ao contrário do senso comum, nem todas as personagens gays são caricatas e espalhafatosas. Pelo contrário, cada vez mais essas personagens estão dentro de um padrão heteronormativo — ou seja, dentro do pressuposto de gênero esperado dentro do que foram designados ao seu nascimento. “As lésbicas são lesbian chic, não vemos praticamente ‘sapatão’ nas novelas. Enquanto os gays transitam mais, entre o heteronormativo e o mais bicha”, avalia. As personagens mais afeminadas normalmente estão nas classes mais populares, observa Fernanda, o que acontece também com o próprio Félix. “As personagens mais ‘sérias’, mais discretas parecem ter mais credibilidade para reivindicar direitos”, aponta, enquanto as menos discretas frequentemente aparecem em papéis de comédia.

Foto: Guilherme Santos/Sul21
Autora falou um pouco do livro antes da sessão de autógrafos | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Da mesma forma, as personagens que mais têm relacionamentos afetivos são exatamente as que são mais heteronormativas. Ou seja, as lésbicas que se vestem e comportam de forma considerada feminina, e os gays que o fazem de forma masculina. “As lésbicas mais masculinizadas ainda não podem viver totalmente sua sexualidade nas novelas, sempre acabam sozinhas. Lésbicas, por serem mulheres, sempre são vistas de forma que seus corpos têm que estar à disposição do masculino”, reflete. Isso também acontece com as poucas mulheres transexuais que estão nas novelas, que raramente vivenciam questões ligadas à afetividade e sexualidade.

Para o “pós-Félix”, a atual novela das 21h, Babilônia, tem um casal lésbico de terceira idade, Teresa (Fernanda Montenegro) e Estela (Nathali Timberg), o que por si só é um fator inovador nas novelas. “Agora temos personagens mais militantes, tem a Teresa, que discute direitos humanos em geral. Muitas das pessoas que conhecemos militam de uma forma geral, e em Babilônia temos isso pela primeira vez”, avalia.

Os planos de Fernanda para os próximos anos já estão traçados: a autora pretende fazer um doutorado, mas prefere não adiantar qual narrativa irá estudar. Ela diz que se interessaria por analisar as formas como o público lê estas representações, mas não entrega maiores detalhes. E, eventualmente, pretende lecionar. “Tem poucos estudos relacionados à mídia e relações de gênero e sexualidade, ao contrário de outras áreas, como educação, psicologia e sociologia, que já tem esses estudos mais concretizados. Mas na comunicação ainda são bem recentes. Então até professores nessa área não são tão fáceis de encontrar”, pondera.

O lançamento aconteceu na Livraria Baleia, na Aldeia, em Porto Alegre. As cópias vendidas na pré-venda e no local praticamente esgotaram, e a autora estima que cerca de 200 pessoas tenham circulado no evento. Agora, a Livraria pretende encomendar da editora Multifoco mais exemplares, que devem chegar dentro de alguns dias. Enquanto isso, também é possível adquirir cópias no site da editora.

 


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