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29 de julho de 2015
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11:46

‘Repertório dos linchadores é compartilhado por boa parte das pessoas’

Por
Sul 21
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Local da Praça Júlio de Castilhos, em Viamão, onde homem de 40 anos morreu linchado. | Foto: Guilherme Santos/Sul21
Local da Praça Júlio de Castilhos, em Viamão, onde homem de 40 anos morreu linchado. | Foto: Guilherme Santos/Sul21


Fernanda Canofre

Era noite de domingo (26) e a praça Júlio de Castilhos, ao lado da Câmara de Vereadores de Viamão, estava escura. Nenhuma das lojas ou bancas de camelôs que costumam movimentar a região durante a semana abre nos domingos e, segundo os moradores, não há muito movimento na praça nos fins de semana. Só no ponto de ônibus próximo aos banheiros públicos. Perto das 19h30, um casal passava por ali quando foram surpreendidos por um homem. Desarmado, ele anunciou o assalto. Com a reação do casal, o assaltante acabou atingindo o homem com uma soqueira na testa. A mulher começou a gritar e pessoas que estavam nas cercanias do local correram para atender. No batalhão da Brigada Militar, telefonemas denunciavam uma “briga generalizada”, “não conseguiam ver o que estava acontecendo”. Em alguns minutos, o homem de 40 anos, desarmado, que havia anunciado um assalto, estava morto.

Algumas versões que correm na cidade dizem que skatistas teriam usado seus skates para espancá-lo. A Polícia Civil espera o resultado da autópsia, mas acredita que o óbito tenha sido causado por socos e chutes, principalmente na região da cabeça da vítima. Um grupo de seis a dez pessoas teriam sido responsáveis pelo linchamento. Alguns boatos circularam sobre a existência de outro assaltante, o que não consta no depoimento do casal. No fim da tarde, circulava inclusive a versão de que a Polícia havia capturado o outro homem e o estava escondendo para evitar que a população soubesse. Em grupos de whatsapp e posts de Facebook, moradores de Viamão comentavam que era “menos um”.

Uma das fotos que circulou nos grupos de Whatsapp mostra o momento em que a SAMU retirou o corpo do local | Foto: Imagem cedida
Uma das fotos que circulou nos grupos de Whatsapp mostra o momento em que a SAMU retirou o corpo do local | Foto: Imagem cedida

A região no entorno da praça Júlio de Castilhos é alvo constante de assaltantes. Basta conversar alguns minutos com qualquer pessoa que vive por ali para ouvir sobre assalto à lotérica, à loja de som, à loja de eletrodomésticos, roubos de veículos. Segundo eles, a Brigada Militar demora para atender os chamados. Um comerciante afirma que a situação piorou desde o verão. “No verão ainda via eles (policiais) de bicicleta pelo centro, andavam por aqui, mas depois da virado do ano piorou”. Durante o tempo que estivemos no local, nesta segunda-feira (27), encontramos um policial andando a pé pelo entorno da praça.

São várias as histórias de comerciantes que optaram por encurtar o horário de funcionamento dos estabelecimentos por medo de assaltos. Um deles, dono de uma lanchonete no mesmo ponto da praça há 18 anos, disse que costumava trabalhar até meia-noite. “Agora a gente larga às 17h30 para não ficar até tarde porque não há muito policiamento”, contou. Ainda assim, ele parece ser um dos únicos assustados com o que ocorreu a poucos metros dali no domingo. “Ninguém tem o direito de tirar a vida de ninguém. Eu vi uma situação dessas uma vez que estava em Porto Alegre. Pegaram um cara e não tinha quem fizesse largar, não tinha o que fazer. Mas acho isso, que ninguém tem o direito de tirar a vida do outro”.

A Polícia Civil está colhendo depoimentos na rua e espera resultado da autópsia. As imagens de câmeras de segurança, de acordo com o delegado Carlos Wendt, responsável pela investigação, não ajudaram. Além do local ser mal iluminado, o horário em que ocorreu o crime e a má qualidade das imagens também não contribuíram com a apuração. Esta semana, o delegado planeja ouvir a Guarda Municipal que teria sido a primeira a chegar ao local. A Brigada Militar relatou que quando chegou à praça o homem já estava morto. Eles não souberam dizer quanto tempo levou para a viatura chegar ao local desde a primeira ligação.

Em março, outro linchamento ocorrido em um dos bairros de Viamão – um homem tentou levar o carro de uma mulher e os familiares dela reagiram – também demorou a ser solucionado por dificuldade em encontrar quem cooperasse com a investigação. “As pessoas já têm dificuldade de aceitar testemunhar em processos criminais. Quando acontece algo assim então, erroneamente na minha opinião, acham que estão fazendo justiça. Mas os cidadãos que fazem isso é que acabam virando criminosos”, afirma o delegado Carlos Wendt.

O que ocorreu no centro de Viamão é apenas o caso mais recente de uma série de homicídios por justiça popular, no Brasil.

Comércio no entorno da praça relata assaltos frequentes | Foto: Guilherme Santos/Sul21
Comércio no entorno da praça relata assaltos frequentes | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Um linchamento e uma tentativa por dia

A justiça popular não é novidade por aqui. O primeiro registro de linchamento no país aparece em 1585. Embora não existam pesquisas oficiais que possam definir números de linchamentos por países, para o sociólogo José de Souza Martins, da Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, há indícios que mostram que o Brasil é o país que mais lincha no mundo. Martins pesquisa sobre o tema há 30 anos e é autor do livro “Linchamentos – A justiça popular no Brasil”, da Editora Contexto. “Linchamentos não são normais, pedem pesquisa, análise, explicitação de causas e consequências”, analisa ele.

Martins defende também que, apesar de não serem novidades, há 20 anos os episódios de linchamento passaram a ser “espetáculo frequente” para a mídia. “No Brasil, os linchamentos têm tido surtos de crescimento, ao contrário de outros países em que os surtos cessam depois de algum tempo. Aqui, não. Os linchamentos cresceram após a ditadura do Estado Novo, voltaram a crescer após a ditadura militar, cresceram mais após as manifestações de rua de 2013, quando passaram de 4 linchamentos e tentativas por semana, para um linchamento e tentativa por dia”, conta.

Também pesquisadora da USP, no Núcleo de Estudos sobre a Violência, a doutoranda em Sociologia, Ariadne Natal, estudou mais de 500 casos de linchamentos ocorridos na região metropolitana de São Paulo entre 1980 e 2009. Para ela, o contexto brasileiro tem traços que ajudam a entender a ocorrência deste fenômeno. “Por uma lado, temos uma percepção compartilhada por parte da população, de que o Estado não é capaz de cumprir suas funções e garantir a lei e a ordem; por outro lado, predomina um discurso que deslegitima direitos humanos e valores civis básicos como o direito à vida e à dignidade daqueles que são suspeitos de cometer crimes. Esta é uma combinação que estimula soluções violentas, como os linchamentos”.

Os dois pesquisadores apontam um mesmo perfil para os casos: a maioria dos linchamentos é motivada por crimes contra a vida – para Martins eles são 60% dos casos, para Natal 40% – seguidos por crimes contra patrimônio e contra costumes. Ou seja, na maioria das vezes linchamentos não estão ligados a taxas de criminalidade urbana, mas ao que a população considera aceitável ou não. Isso se reflete no sistema penitenciário. Segundo a socióloga, enquanto 40% dos linchamentos foram provocados por crimes contra a vida, 8% dos presos no estado de São Paulo respondem por esses crimes.

Há ainda um outro dado levantado por Martins: nos últimos 60 anos, entre um milhão e um milhão e meio de brasileiros participaram de linchamentos. “Não se trata de falta de empatia com o outro. Ao contrário, os brasileiros estão convencidos de que o outro, que estupra, fere, mata, rouba pessoas inocentes, é que não tem nenhuma empatia com os que são de bem, os que trabalham e respeitam valores. É a população que se considera injustiçada e abandonada pelas instituições de que se julga no direito de receber atenção e proteção. O linchamento é violência socialmente autodefensiva. Os linchadores julgam que estão defendendo a sociedade desprotegida”, analisa o sociólogo.

Local foi isolado pela perícia durante toda a manhã de segunda-feira (27) | Foto: Guilherme Santos/Sul21
Local foi isolado pela perícia durante toda a manhã de segunda-feira (27) | Foto: Guilherme Santos/Sul21

“Os linchamentos indicam quem são os extermináveis”

No Rio Grande do Sul, no entanto, os crimes da chamada justiça popular não são tão frequentes. A pesquisa de Martins aponta que as regiões que mais praticam linchamentos são o Sudeste e o Nordeste. Na região Norte as ocorrências vem crescendo nos últimos anos. “Os linchamentos ocorrem em regiões e bairros de ocupação relativamente recentes, onde as regras de sociabilidade, vizinhança e convivência não se cristalizaram nem se estabilizaram”, diz Martins. De acordo com ele, ainda que o Sul seja a região com menor ocorrência, o índice aqui guarda outra característica. “O Sul é a região que menos lincha, mas é a região em que ocorrem 8,6% dos linchamentos de alta atrocidade em comparação com apenas 0,7% dos de baixa atrocidade. Os linchamentos do Sul são mais graves do que os das demais regiões do país”.

No caso de Viamão, ainda deve ser investigado o papel da Guarda Municipal no episódio. Como a Polícia Civil ainda não escutou a Guarda, não está esclarecido se quando eles chegaram ao local a vítima já estava morta. No entanto, tanto Ariadne Natal quanto José de Souza Martins defendem em suas pesquisas que a polícia tem papel fundamental no salvamento das vítimas.

Para Natal, “a polícia tem um papel importante em evitar ou minimizar os danos causados às vítimas de linchamentos, pois quando ela se faz presente diminuem as chances de um desfecho fatal”. Já Martins aponta que 90% das pessoas linchadas no país foram salvas por ações da polícia. “Nos vários países em que houve declínio na ocorrência de linchamentos, como nos Estados Unidos, a ação prudente da sociedade foi decisiva. Aqui essa ação tem sido a de alguém, que não tenha sido contaminado pela loucura temporária da violência coletiva, que chama a polícia possibilitando a interrupção da ação violenta. Só a polícia está preparada para isso”.

O escritor russo Fiódor Dostoiévski disse certa vez que o grau de civilização de uma sociedade poderia ser medido ao entrar nas suas prisões. O que então as taxas de linchamento identificadas no Brasil dizem de nós? “Aqui os linchamentos indicam uma sociedade derrotada no afã de civilizar-se ou de disseminar os valores próprios da civilização. Quem lincha imagina-se um cavaleiro andante da civilização”, acredita Martins.

Assim como os índices de violência identificados em inúmeros levantamentos e recentemente em uma CPI, os linchamentos também têm endereço e suas vítimas estão dentro de um mesmo perfil social. “Os linchamentos não podem ser entendidos como ações irracionais ou bárbaras. Os dados mostram que as vítimas de linchamento não são aleatórias, os alvos preferenciais são os mesmos já acometidos pela violência policial, execuções e homicídios”, defende Ariadne. “Neste sentido, os linchamentos acionam um repertório de valores que indica quem são os extermináveis e este repertório não é exclusivo dos linchadores, ele é compartilhado por boa parte das pessoas que estimulam e apoiam este tipo de ação”.

 


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