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27 de junho de 2015
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12:51

Após anos de descaso, Museu da Comunicação corre o risco de ‘perder tesouros’

Por
Luís Gomes
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Acervos do Museu da Comunicação estão sob constantes riscos em dias de chuva | Foto: Caroline Ferraz/Sul21
Acervos do Museu da Comunicação estão sob constantes riscos em dias de chuva | Foto: Caroline Ferraz/Sul21

Luís Eduardo Gomes

Jornais do século XIX sob chuva. Latas com fitas dos primórdios da televisão gaúcha atiradas em prateleiras de um depósito coberto de lixo. Infiltrações em quase todas as paredes. Este é o estado em que se encontra o Museu da Comunicação Hipólito José da Costa.

Inaugurado em 10 de setembro de 1974, no prédio histórico do antigo jornal republicano “A Federação” – construído em 1922 -, o museu conta com um vasto arquivo que engloba periódicos, fotografias, vídeos, filmes, discos, material de propaganda, além de objetos e equipamentos ligados aos veículos de comunicação. Contudo, boa parte desse material corre o risco de se perder se o prédio não passar por uma manutenção urgente.

Foi essa situação que Yuri Victorino, jornalista da TVE cedido à Secretária da Cultura (Sedac) do Rio Grande do Sul encontrou no dia 6 de maio, quando assumiu a direção do museu a convite do secretário Victor Hugo. De lá para cá, ele próprio tratou de fazer reparos essenciais e realizou medidas para o quadro da instituição.

“Eu não vou deixar cair em cima dos jornais. Não vou esperar o Estado vir aqui e resolver. Tiro o dinheiro do próprio bolso para comprar telhas e vidros”, diz Victorino, que ainda promete: “O momento de crise está passando, daqui para frente nós temos que pensar na continuidade desse espaço de memória”.

Foto: Caroline Ferraz/Sul21
Victorino está remontando a exposição do museu com itens encontrados em meio ao lixo | Foto: Caroline Ferraz/Sul21

Abandono estrutural

Victorino conta que, quando chegou ao museu, encontrou a situação caótica. Não havia água há 12 dias. O lixo se acumulava por todos os cantos, inclusive na sala da direção. Quando chovia, os furos no telhado faziam com que a água jorrasse sobre os acervos. Por falta de reparos em uma bomba d’água, o andar de baixo sofria com constantes alagamentos, afetando o acervo do Instituto Estadual de Cinema (Iecine) ali armazenado, bem como colocava em risco a rede elétrica, uma vez que os quadros da rede também se encontram ali.

Para piorar, não há como fazer a remoção de nenhum acervo para algum lugar seguro, uma vez que o único elevador de carga da instituição está estragado há oito anos e não há verba para trocar as peças. Aliás, dos três elevadores da casa, apenas um está em funcionamento, mas não recebe manutenção há quatro anos.

Diretor do museu mostra a marca da Foto: Caroline Ferraz/Sul21
Diretor do museu mostra a marca da inundação no subsolo do museu | Foto: Caroline Ferraz/Sul21

“A razão para o museu estar na situação que está é uma continuidade de fatores. Durante 12 anos, não houve manutenção alguma. Quando eu cheguei aqui, no segundo dia descobri que há oito anos não faziam manutenção no telhado. Então chovia, literalmente, sobre os jornais da instituição e também sobre outros acervos”, afirma.

Victorino explica que o museu foi contemplado com verbas do Programa de Aceleração de Crescimento (PAC) que pode vir a sanar alguns problemas estruturais do prédio a médio prazo, mas este dinheiro não deve chegar logo. No momento, está sendo realizada uma licitação para desenvolver o projeto da reforma. Posteriormente, ainda será feita outra licitação para ver quem executará a obra. Com sorte, o diretor espera que as obras comecem em 2017.

Enquanto a reforma não começa, porém, o museu corre riscos. Para sanar os furos dos telhados, o próprio diretor subiu no último andar do prédio e trocou telhas. Ele também está cuidando da substituição de alguns vidros, de reparos nas redes elétrica e hidráulica. Como não há verba, a iniciativa é própria. Victorino diz que a experiência acumulada na construção de duas casas o ajudou a realizar algumas das melhorias. Mas há outras tantas a serem feitas. “Tu tem a parte elétrica deteriorada, a própria estrutura do prédio como um todo precisa ser revista. A parte hidráulica. Isso eu não sei se está contemplado”, afirma.

Foto: Yuri Victorino/Museu da Comunicação
Técnicos fazem vistoria na rede elétrica do museu | Foto: Yuri Victorino/Museu da Comunicação

No dia 2 junho, um dia antes de ser empossado oficialmente como diretor do museu, Victorino entregou ao secretário da Cultura do Estado, Victor Hugo Alves da Silvaa, um relatório de cerca de 300 páginas intitulado “Diagnóstico e Plano Emergencial da Viabilidade do Museu da Comunicação Hipólito José da Costa”. O texto, feito a partir de laudos técnicos de especialistas e dos funcionários de carreira da casa, contempla todas as ações emergenciais que precisam ser feitas em termos estruturais e organizacionais para viabilizar o atendimento ao público a curto prazo. Em momento de corte de despesas no Estado, resta saber se a Sedac terá verba para realizar o mínimo necessário.

No dia 19, técnicos da CEEE, do Iphae, da Secretária Estadual de Obras e do DEP visitaram o museu para tratar das ações que precisam ser realizadas com urgência. “Se cai uma enxurrada, cai na rede elétrica. Antes, tinha um grande risco de incêndio”, afirma, salientando, porém, que as medidas corretivas estão sendo tomadas.

Falta de pessoal

Os problemas do museu não se limitam à estrutura. O Hipólito José da Costa conta com 12 setores, mas vários deles estão fechados por falta de pessoal. Victorino diz que seriam necessários, no mínimo, três servidores por setor, totalizando 36. Só há sete, e dois estagiários.

Além disso, Victorino diz que, antes dele assumir, não existia nenhuma organização de pessoal. “Isso aqui era virado numa bagunça. Cada um fazia o que queria, ninguém conversava com ninguém, não tinha horário, não tinha nada”, afirma.

Ele diz que, antes de ser indicado para dirigir o museu, o cargo estava vago desde novembro passado. Contudo, afirma que o descaso com o museu não é obra dessa gestão, nem da passada, mas sim de um abandono de, no mínimo, 12 anos. “As gestões não priorizavam nenhuma tipo de ação, eram políticas. Eles não tinham a noção de que isso aqui era um museu e como que funcionava”, afirma.

De acordo com a Sedac, não existe uma verba específica para o museu Hipólito. Todos os recursos destinados ao museu são compartilhados pelas outras entidades vinculadas à pasta. A secretaria também informa que, após receber o relatório de Victorino, o secretário Victor Hugo começou a tomar as primeiras medidas para fazer reparos emergenciais de curto prazo e que, a longo prazo, a expectativa é contar com os recursos do PAC.

Procurado para falar sobre a situação do museu na gestão passada, o ex-secretário de Cultura Luiz Antônio Assis Brasil preferiu não comentar o assunto.

Foto: Caroline Ferraz/Sul21
Victorino exibe um exemplar do jornal Século, do tempo do império | Foto: Caroline Ferraz/Sul21

Um museu que não é museu

O Hipólito José da Costa possui um verdadeiro tesouro guardado em suas dependências. Uma coleção quase completa de todos os principais jornais de Porto Alegre e do Estado, inclusive daqueles que já fecharam as portas, como o raríssimo Século (foto), do tempo do Império; coleções de latas de vídeos da finada TV Piratini, fundada por Assis Chateaubriand no Estado, da TVE; coleções fonográficas do século 19; máquinas e equipamentos históricos, como uma antiga rotativa do jornal A Federação, proprietário original do prédio; entre outras tantas preciosidades.

O problema é que não há um catálogo de tudo que o museu possui. Muitos itens raros, inclusive, estavam jogados em cantos e foram encontrados apenas recentemente, quando Victorino promoveu uma grande limpeza nas dependências do museu. “Hoje em dia isso aqui não é um museu, é um depósito, com muito ouro a ser garimpado”, diz Victorino, acrescentando que é preciso implementar uma política museal que possa estabelecer a documentação completa do acervo, além de identificar “quem é o museu, qual o objetivo e aonde ele quer chegar no futuro”.

Revitalização já começou

Aos poucos, porém, Victorino diz que a equipe tenta qualificar o museu para o atendimento ao público. As exposições permanentes estão sendo reorganizadas e atualizadas com materiais que foram encontrados junto aos montes de lixo.

“A exposição que eu tenho hoje não reflete nada. Ela simplesmente é uma mostra de peças que não conta nada”, diz. “A gente está equalizando para ter uma mostra constante do que é o museu e para que tu consigas trabalhar ações educativas em função dessa exposição de longa duração, recriando a área do campo gráfico, buscando o contexto dos outros setores para que a exposição converse com outras áreas”, diz.

Ele salienta que realizar ações educacionais é justamente o foco do museu daqui para a frente. Se antes os visitantes não contavam com o acompanhamento adequado durante suas visitas ao Hipólito, agora já há um funcionário que trata de contextualizar o que há no museu com a história da comunicação no Estado e no País.

“A gente criou outro setor, de Educação e Planejamento, e esse setor de educação trabalha diretamente com escolas e visita de grupos. Isso está dando um resultado muito bom”, afirma Victorino. Ele conta que, nos últimos dois meses, têm aumentado o interesse de visitas de grupos de escolas e universidades.

A outra área aberta ao público do museu, o setor de pesquisas – talvez a parte que mais interesse ao público em geral -, também está passando por mudanças. Victorino diz que, no ano passado, aproximadamente 36 pessoas visitavam por dia o setor para pesquisar nos milhares de exemplares de jornais e revistas que constam no acervo do Hipólito. Contudo, não havia condições de os funcionários do setor – um servidor e um estagiário – fornecerem qualquer tipo de suporte ao público e nem fazer o controle adequado do acervo.

Por isso, o horário de visitação foi reduzido – opera atualmente apenas nas tardes de terça a quinta, com a possibilidade de grupos marcarem horários extra – e o número de pessoas que ocupam o setor ao mesmo tempo foi reduzido para oito. Para quem chega pelas 15h, talvez já não haja mais vagas na pesquisa, mas Victorino diz que a medida era essencial para melhorar a prestação de serviços

Foto: Yuri Victorino/Museu da Comunicação
Boca de Rua em reunião no Museu da Comunicação na última terça-feira | Foto: Yuri Victorino/Museu da Comunicação

Busca de parcerias

Outro foco de Victorino é buscar ações de integração da sociedade com o museu. Uma delas foi trazer o jornal Boca de Rua, escrito por moradores de rua de Porto Alegre, para realizar reuniões de pauta dentro das dependências do museu. “Conversando com eles na rua, me disseram: ‘agora, chega o inverno, é um horror, porque a gente não consegue fazer as nossas reuniões de pauta porque é muito frio'”. “Eu disse: ‘vocês precisavam de um lugar’”, conta Victorino.

O diretor do Hipólito diz que, além de passar a abrigar as reuniões de pauta nas noites de terça-feira, a ideia também é realizar uma mostra para marcar os 15 anos do jornal, que se completam neste ano.

Além do Boca, o museu recebe à noite aulas do pré-vestibular Zumbi dos Palmares, em que professores voluntários dão aulas para adolescentes que não têm condições de pagar por um cursinho.

Mas Victorino não quer para por aí, ele também retomou as atividades de oficinas de histórias em quadrinhos, roteiro de cinema e fotografia e diz que as portas estão abertas para qualquer organização que deseje integrar suas atividades com a do Hipólito.

Desde junho, o museu conta, inclusive, com uma inusitada parceria com a Pipoca do Bira, carrocinha que sempre para em frente ao museu, que oferecerá desconto para os visitantes.

Victorino fez até uma parceria com a carrocinha de pipoca | Foto: Yuri Victorino/Museu da Comunicação
Victorino fez até uma parceria com a carrocinha de pipoca | Foto: Yuri Victorino/Museu da Comunicação

Falta apoio dos interessados

Uma das principais reclamações de Victorino é quanto ao descaso de instituições que deveriam ter interesse na manutenção do museu: os jornais de grande circulação e as universidades, de onde provêm grande parte dos estudantes e pesquisadores que utilizam das dependências do museu todos os dias.

“Quem é o maior beneficiário dentro da instituição? 90% do que nós temos aqui dentro diz respeito às grandes empresas de comunicação. Muitas delas estão ativas e nós continuamos armazenando até hoje. O acervo do museu já produziu milhares de teses, TCCs e trabalhos. Todas as universidades, independente de serem da comunicação ou não, usufruem diretamente dessa instituição”, diz Victorino. “Está na hora desse povo olhar para cá e ver que, se o Estado não tem condições de manter, eles têm que ajudar”.

Victorino salienta que o apoio seria benéfico para estas próprias instituições. Ele explica que não quer que as empresas de comunicação deem dinheiro para o Hipólito, mas gostaria de vê-las assumindo a responsabilidade de fazer a manutenção dos seus jornais que ocupam o acervo do museu.

Além disso, gostaria que universidades pudessem oferecer, como contrapartida pela utilização do museu por pesquisadores, algum retorno material, como prover um retroprojetor para uma das salas do museu. “Se eu fechar hoje a instituição, vai acabar essa ‘teta’ em que mamam há 40 anos. O pesquisador vai enlouquecer”, diz.

Veja mais fotos do Museu Hipólito José da Costa:

Foto: Caroline Ferraz/Sul21
Vicros quebrados estão sendo consertados pelo próprio diretor do museu | Foto: Caroline Ferraz/Sul21
Foto: Caroline Ferraz/Sul21
Estrutura do museu está em situação precária | Foto: Caroline Ferraz/Sul21
Foto: Caroline Ferraz/Sul21
Paredes trazem as marcas das infiltrações | Foto: Caroline Ferraz/Sul21
Foto: Caroline Ferraz/Sul21
Rotativa do jornal “A Federação” é uma das relíquias do museu | Foto: Caroline Ferraz/Sul21
Foto: Caroline Ferraz/Sul21
Latas com rolos de filme foram encontradas preservadas em meio ao lixo | Foto: Caroline Ferraz/Sul21
Foto: Caroline Ferraz/Sul21
Apesar de limpeza recente, ainda se encontra lixo jogado em cantos da instituição | Foto: Caroline Ferraz/Sul21

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