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4 de janeiro de 2014
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14:01

Montevidéu, cidade de todos os ventos

Por
Sul 21
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Foto: Iuri Müller/Sul21
Foto: Iuri Müller/Sul21

Iuri Müller

Montevideo quince de noviembre
de mil novecientos cincuenta y cinco 
Montevideo era verde en mi infancia 
absolutamente verde y con tranvias

(Dactilógrafo, Mario Benedetti)

Entre as capitais do continente, Montevidéu pode parecer distinta, em um primeiro olhar, por certos fatores: é a capital mais ao sul da América, já que se localiza um pouco abaixo de Santiago do Chile e Buenos Aires; é banhada, em sua costa, por duas águas que se encontram e se misturam, a do Atlântico e a do Rio da Prata. Para o turista que por ali permanece poucos dias, Montevidéu é a cidade dos prédios antigos, do vento frio que sopra do Rio e, às vezes, a que se confunde com o próprio país. Aos olhos do morador, que cresceu enquanto crescia Montevidéu, talvez seja uma cidade que destoe do que se pensa de uma capital latino-americana. Mas, como disse um dia o poeta e escritor argentino Jorge Luis Borges, a cor de uma cidade é mais uma invenção estrangeira, uma impressão dos que não vivem ali, do que algo pensado por seus habitantes.

Em um continente em que as capitais se diferem explicitamente, algo deve ter Montevidéu para ser vista como ainda menos semelhante às demais. Além da sua organização urbana – uma cidade iniciando pelo porto, voltada ao mar – a afirmação se refere também ao estilo de vida da sua população. Seus habitantes (hoje quase um milhão e quatrocentos mil) reconhecidamente vivem sem pressa – mesmo que nas últimas décadas os montevideanos tenham corrido mais, como aconteceu na maior parte do mundo. As avenidas antigas do Centro e as largas ramblas que contornam o litoral dificilmente enfrentam congestionamentos – problema comum das demais metrópoles latino-americanas. Nas ruas centrais, o pedestre ainda encontra a tentação de diminuir o passo e entrar em um dos tantos cafés ou pequenos restaurantes da área, ainda que parte dos famosos bolichos da capital, autênticos símbolos da cidade nas primeiras décadas do século passado, tenham perdido espaço na modernidade. Nos calçadões das ramblas, no entanto, são muitos os que escolhem o caminho para correr, andar de bicicleta ou sentir a brisa do Rio da Prata.

No romance autobiográfico Andaimes, do escritor montevideano Mario Benedetti (1920-2009), o protagonista Javier Montes, um articulista uruguaio que envia matérias para Madrid, escreve que “nenhum europeu terá inconvenientes em reconhecer a sua cor pseudo-europeia, que começou sendo postiça, minimamente hipócrita, e que acabou por construir uma inevitável sinceridade”. No porto de Montevidéu, desembarcaram em maior número italianos, espanhóis e judeus – as três influências responsáveis pelo mosaico arquitetônico de uma cidade que, ainda segundo a obra de Benedetti, “de costas à América e ao resto do país, (…) apenas mira ao mar, ou a isso que chamamos mar e é apenas rio”. Pelos romances, contos e poemas de Benedetti, aparece a sua Montevidéu, a da infância e a da velhice – e a que enxergou do exílio quando obrigado pela ditadura a deixar o Uruguai. Cidade que parece pulsar em outra frequência, ainda alheia ao desumano ritmo de vida já consolidado em outros pontos do continente e que preservou hábitos quase que provincianos.

Foto: Reprodução
Foto: Reprodução

Uma cultura de bar

A vida nos cafés, além de determinar uma enorme pausa no ritmo diário, servia como encontro para a sociedade da época – em Montevidéu, os bares e cafés foram uma referência da cidade do final do século XIX às últimas décadas do século XX. Nos locais de sempre, reuniam-se jornalistas, escritores, atores, advogados, jogadores de futebol e operários, cada classe com os seus temas específicos e os comuns, como eram a política, o futebol e a cultura. Além das conversas despretensiosas ao fim de cada jornada de trabalho, muito da produção intelectual uruguaia teve início nas mesas de madeira antiga ou mesmo nos balcões que se esparramavam pelo Centro. Greves de trabalhadores, versos de um poema, as primeiras linhas de um conto ou uma audaciosa decisão política, há mais de cem anos, cresciam, por exemplo, no Tupí Viejo, que se localizava na Plaza Independencia.

No conto “Velho Tupí”, do livro “Correio do Tempo”, Mario Benedetti iguala em importância o lugar com os grandes atrativos da capital: “o Tupí Velho, situado em frente ao Teatro Solís, não era apenas um café com tradição, era antes uma instituição nacional. Naquela época (final dos anos 1950), o turista que chegava a Montevidéu sabia que as atrações da cidade, os postais imprescindíveis, eram o Palácio Legislativo, o Mercado do Porto, o monumento ao Carroção, o Jardim Botânico, o cassino do Parque Hotel, o Estádio Centenário, o Teatro Solís, a Rambla de Pocitos e, claro, o Tupí Velho”. Na mesma década em que o escritor reivindica a importância do citado café para Montevidéu, iniciou-se um processo de mudanças que acabaria no fechamento de muitos destes espaços.

O livro “Boliches Montevideanos – Bares y Cafés en la memoria de la ciudad”, de Mario Delgado Aparaín, conta que já em 1955 iniciou um “primeiro lento e mais tarde acelerado processo de enfraquecimento dos vínculos sociais e de tendências de segregação e desarticulação de um tecido até então fortemente integrado (…). Espaços qualificados da cidade perderam o protagonismo e áreas centrais se esvaziaram”. As alterações no comportamento tiveram um impacto também no cenário urbano – o governo chegou a iniciar uma reformulação drástica das edificações da Cidade Velha e de parte do Centro. Por sorte, a tarefa não foi cumprida até o final. Foram sacrificados, no entanto, lugares como o Tupí Velho, cujo fim aparece no mesmo conto de Mario Benedetti:

“A construção do imponente maciço do edifício Ciudadela determinou a agonia e a morte do Tupí Velho. (…) A agonia propriamente dita durou quatro ou cinco semenas. Biancamano, que fora o grande oficiante naquele templo do ócio criativo e agora tinha a aposentadoria garantida, não podia aceitar a abolição de um espaço que fora o seu lugar durante vinte anos. (…)

Além disso, começou a notar um estranho desajuste nas rodas de sempre. Agora os operários falavam de teatro; os jornalistas, de artesanato; os atores, de futebol; os advogados, de palavras cruzadas; os ambulantes, de política. Como se cada um quisesse fugir da sua realidade imediata.

No último dia só restava Biancamano, com o olhar fixo na imensa praça que ia perder para sempre. É claro que podia ser vista de outro lado, mas a praça que ele gostava era a que aparecia nas vidraças do café. Então entrou o último cliente, mas não era dos habituais. Era apenas um jornalista brasileiro que, informado desse final digno de Norma, viera fazer uma nota para “O Globo” e crivou de perguntas o pobre Biancamano, que no final lhe implorou que o deixasse em paz. E o bom homem optou por se retirar (…)”.

Hoje, restam certos redutos da resistência. Um dos últimos sobreviventes da geração dos velhos cafés seja o Café Brasilero, fundado em 1877 e o preferido entre os escritores. Nos últimos de anos de vida, foi cenário da produção literária de Benedetti; nos primeiros anos de casa, José Enrique Rodó era presença certa em uma das duas mesas próximas à janela; atualmente segue sendo o local escolhido por Eduardo Galeano, outro dos grandes nomes da literatura oriental. O piso e a mobília de madeira, assim como a luz alaranjada que surge de antigos lustres e luminárias, dão ao café a impressão de situar-se em outra época – impressão que também é a comum de todo o bairro, a Cidade Velha que escapou da modernidade forçada há décadas atrás. Ao longo da Avenida 18 de Julio e nas ruas que a cortam, ainda erguem-se motivos, como também é o Café Brasilero, para o antigo hábito do montevideano de interromper a caminhada e ver a cidade passar através das vidraças.

 

Foto: Iuri Müller/Sul21
Foto: Iuri Müller/Sul21

Montevidéu cabe em uma Avenida

Em seus quase três quilômetros, a Avenida 18 de Julio atravessa quatro bairros: Cidade Velha, de onde parte, no limite da Plaza Independencia, Centro, Cordón e Tres Cruces, já em seus últimos metros. Nela se localizam, por exemplo, a prefeitura de Montevidéu e o Palacio Salvo, imponente edifício de mais de cem metros que, durante a final da década de 1920 e o início dos anos 1930, foi o mais alto da América do Sul. No esplendor da Avenida, eram diversos os cinemas de rua e as opções de lazer em um Centro muito mais movimentado. Por décadas, a 18 de Julio foi o grande eixo da capital, o maior reduto econômico e ponto de encontro dos montevideanos. Ainda hoje, segue sendo uma das rotas de maior movimento – e é ocupada por uma multidão nos festejos esportivos, nas manifestações políticas e nas greves sindicais, quando é o tradicional cenário escolhido.

Mesmo que tenha sido caminho para moradores de todos os bairros e de diversas classes sociais, na Avenida, para Mario Benedetti em “Andamios”, curiosamente todos pareciam conhecidos – retrato de uma capital que por anos preservou características de interior: “Montevidéu mantém (quase diria que por sorte) um estilo de vida bastante provinciano. Caminhar pela 18 de Julio é como se mover pelo pátio da casa familiar. Sempre aparece alguém que, desde a calçada em frente, levanta o braço como uma antena racional, como a comunicação de uma presença”. Hoje, a Avenida parece um pouco mais cinza, desprovida dos atrativos de antanho, ainda que possa haver mais luz dependendo do quarteirão e do sentido com que se caminha. “Se não ilumina como antes, se deve simplesmente ao fato de que somos mais pobres”, opina o personagem Javier Montes no mesmo livro.

Pela Avenida, em um tempo já tido como remoto, passavam bondes que levavam o passageiro por um trajeto inteiramente arborizado. A transformação da 18 de Julio, opaca em sua modernidade, foi descrita por Benedetti em uma frase: “a ditadura a deixou sem árvores; a televisão, quase sem cinemas; a crise, sem grandes lojas” Os responsáveis pela retirada das árvores, culpados também pelo período mais obscuro da história uruguaia, por vezes fizeram da Avenida um campo de batalha. Passeatas multitudinárias da Convención Nacional de Trabajadores (CNT), de alunos e professores da Universidad de la República, da Frente Ampla e de tantos outros independentes foram interrompidas pela forte repressão policial e militar nos anos 1970 e no início da década de 1980. Em diversas vezes, nos doze anos de ditadura, a 18 de Julio foi palco de confrontos e de manifestações.

Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

Breve biografia de um montevideano

Mario Benedetti não nasceu em Montevidéu, mas em Paso de los Toros, pequena cidade do departamento de Tacuarembó, em setembro de 1920. Mudou-se para a capital com a família aos quatro anos e logo passou a estudar em um colégio alemão – “porque meu pai era químico farmacêutico, e admirava muito os alemães da química”. Com oito anos, escreveu poemas em alemão que não eram aceitos pelos professores, que duvidavam da dita autoria. Decidiu aos dezoito anos que seria poeta quando, em uma manhã, sentou-se na Plaza San Martín em Buenos Aires e leu, de uma só vez, um livro do argentino Baldomero Fernandéz Moreno. Aos vinte e quatro anos passou a integrar a redação do semanário Marcha, que seria extinto quase trinta anos depois pela ditadura militar uruguaia.

Até lançar “Poemas de la oficina”, em 1956, seu oitavo livro, todas as publicações haviam sido pagas pelo próprio autor. Quatro anos mais tarde, escreveu o seu mais aplaudido romance, “A Trégua”, que se passa em Montevidéu. Benedetti foi um dos integrantes da chamada Generación del 45, um movimento literário bastante amplo que reuniu escritores uruguaios contemporâneos – além de Mario Benedetti, a poeta Idea Vilariño e o romancistas e contista Juan Carlos Onetti fizeram parte da mesma geração. Em Montevidéu, Mario Benedetti viveu em um apartamento em que pelas grandes janelas via a Avenida 18 de Julio; era figura certa nos cafés montevideanos até o golpe de 1973 – por suas posições políticas, teve de abandonar o país. Perseguido pela ditadura, Benedetti buscou o exílio em Buenos Aires, Lima, Havana e Madrid. Voltaria quase vinte anos depois. Morreu em maio de 2009, aos 88 anos, em Montevidéu.

“Frio e sol. Sol de inverno, que é o mais afetuoso, o mais benévolo. Fui até a Plaza Matriz e me sentei num banco (…) Creio que, até agora, eu nunca havia tido consciência da presença da Plaza Matriz. Devo tê-la atravessado mil vezes, talvez tenha amaldiçoado, em outras muitas ocasiões, o desvio que é preciso fazer para contornar o chafariz. Eu a vi antes, claro que a vi, mas não me havia detido para observá-la, para senti-la, para captar seu caráter e reconhecê-lo. Fiquei um bom tempo contemplando a alma agressivamente sólida do Cabildo, a face hipocritamente lavada da Catedral, o desalentado cabecear das árvores. Creio que nesse momento afirmou-se definitivamente em mim uma convicção: eu sou deste lugar, desta cidade. Nisso (e provavelmente em nada mais), creio que devo ser um fatalista. Cada um é de um só lugar na terra e ali deve pagar sua cota. Eu sou daqui. Aqui pago minha cota. Esse que passa (o de sobretudo comprido, orelha de abano, passo capenga e raivoso), esse é meu semelhante. Ainda ignora que eu existo, mas um dia me verá de frente, de perfil ou de costas, e terá a sensação de que entre nós existe algo secreto, um recôndito laço que nos une, que nos dá forças para nos entendermos. Ou talvez esse dia nunca chegue, talvez ele não atente nunca para essa praça, para este ar que nos faz tão próximos, que nos emparelha, que nos comunica. Mas não importa; seja como for, é meu semelhante.”  Trecho de “A Trégua”, de Mario Benedetti

(Este texto foi anteriormente publicado na revista Fora de Pauta, de Santa Maria, em 2011)


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