Eleições na Argentina|z_Areazero
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26 de outubro de 2019
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18:54

O que deu errado na economia argentina? Analista indica possíveis falhas do governo Macri

Por
Luís Gomes
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Federico Kucher conversa com o Sul21 sobre o que deu errado na política econômica de Maurício Macri | Foto: Luiza Castro/Sul21
Federico Kucher conversa com o Sul21 sobre o que deu errado na política econômica de Maurício Macri | Foto: Luiza Castro/Sul21

Luís Eduardo Gomes
De Buenos Aires

Quando Maurício Macri venceu o candidato kirchnerista e se tornou o novo presidente argentino, em dezembro de 2015, os principais veículos de comunicação brasileiros saudaram a chegada de um político liberal ao poder como um momento de mudança na América Latina. Saía o que consideravam ser o populismo de Cristina Kirchner, e entrava a visão técnica de mercado.

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Passados quatro anos, a Argentina se encontra em uma situação ainda mais delicada. O PIB deve cair 4% neste ano e, mais grave, há 5 milhões a mais de pobres no país. Essa situação deverá trazer de volta ao poder justamente o kirchnerismo, por meio da chapa Alberto Fernández e Cristina Kirchner, favoritos na eleição deste domingo (27).

O que deu errado no liberalismo de Macri? O Sul21 conversou em Buenos Aires com Federico Kucher, economista e articulista do jornal Página 12 sobre o assunto. Confira a seguir.

Sul21 – O que aconteceu de errado no governo Macri?

Federico Kucher: Basicamente, se tomou três decisões políticas erradas. Um rol de erros no momento de aplicar o plano econômico. A primeira foi abrir a economia de maneira irrestrita. O que significa isto? Permitiu-se que o capital internacional entrasse e saísse do mercado interno a qualquer momento, inclusive em um par de horas ou no própria dia. Até que assumiu o governo, em dezembro de 2015, a Argentina tinha controles importantes justamente para evitar o capital especulativo dos fundos do exterior. Ou seja, não podiam chegar na Argentina e ir embora no mesmo dia, porque cada fundo de investimentos que queria investir na Argentina, não importa se fosse um investimento produtivo ou financeiro, tinha que ficar por pelo menos um ano no país. Quando assumiu o governo, eliminaram essa restrição, então o capital especulativo podia entrar e sair no mesmo dia. Isso funcionou para atrair dólares para a economia argentina até 2017. Mas, em 2018, acabou gerando justamente o processo inverso. Os investimentos, assim como chegaram, se foram muito rapidamente e começou, digamos, a implosão do modelo econômico.

Espaços comerciais para alugar, incluindo prédios inteiros, se espalham pela cidade de Buenos Aires | Foto: Luiza Castro/Sul21
Espaços comerciais para alugar, incluindo prédios inteiros, se espalham pela cidade de Buenos Aires | Foto: Luiza Castro/Sul21

Basicamente, tinha um instrumento da moda nos últimos anos, que se chamava las ‘leguas’, era uma título que oferecia o Banco Central e os fundos do exterior comprovam. Tinha taxas de juros muito altas, então atraía dólares para a economia argentina, porém sem investimentos. Mas, em algum momento, os fundos estrangeiros disseram: ‘Não, não vão pagar, eu tenho medo porque as taxas são altíssimas, a dívida é cada vez maior, por dúvida, garanto meus ganhos e vou embora. No momento em que tomaram essa decisão de ir, explodiu o mercado argentino. Isso foi em abril de 2018. A partir daí, houve uma série de erros ou incapacidades para recuperar a confiança dos investidores, mas também para fazer política estratégica que freassem as decisões dos capitais de deixarem a economia argentina. Nesse momento, o que se fez foi negociar um empréstimo com o Fundo Monetário Internacional (FMI), então basicamente se permitiu que continuasse a fuga de capitais, que continuasse a compra de dólares irrestrita, mas com uma nova dívida, a dívida do FMI. Foram empurrando com a barriga cada vez mais para frente, até que não deu mais. Chegamos a esta situação. Cada vez encontraram um paliativo, mas não se solucionou os problemas estruturais de fundo. E o resultado é hoje uma economia que, em um ano e meio, duplicou e quase triplicou sua taxa de inflação, uma economia que perdeu 30 bilhões de dólares em reservas internacionais, ou seja, caiu um terço do que era no passado, caíram também em 30% os depósitos em moeda estrangeira. Imagina o susto, um de cada três dólares que estavam no sistema financeiro, depósitos em poupanças em dólares nos bancos, saíram do sistema. As pessoas colocaram em casa, em cofres ou foram para o exterior. Um pouco para te mostrar quais são as variações que mostram a deterioração desses últimos anos. Foram muitas decisões, é muito difícil de enumerar, o número de erros recorrentes nos últimos anos é impressionante.

Sul21 – Alberto Fernández provavelmente vai ganhar no domingo. O que ele está propondo para contornar os problemas econômicos?

Kucher: É uma pergunta difícil, porque ainda não há um programa econômico claro para os próximos anos. O que se pode dizer é que a prioridade no discurso da próxima gestão é recuperar o mercado interno, dar mais espaço para o consumo, aos investimentos, à produção, a políticas que possam gerar emprego, e menos espaço para os setores financeiros, digamos. De alguma maneira, pode ser feita uma distinção muito forte entre o que passou nos últimos anos e o que se propõe pelos que vêm. A proposta de governo foi primeiro tentar estabilizar a economia para depois crescer. A proposta de próximo governo é de que primeiro precisa crescer, incentivar o consumo, incentivar o mercado interno, e é isso que vai permitir a estabilização. O que dizíamos antes, dentro dos erros ideológicos, das políticas equivocadas dos últimos anos, uma foi a de tentar atacar a inflação antes de atacar os problemas estruturais que têm a Argentina. Um deles é justamente a tendência a dolarizarmo-nos, a comprar divisas e tirá-las da economia. Em vez de atacar isso, o governo propôs um programa ortodoxo com meta de inflações a questão dos preços. O resultado foi que a inflação começou o mandato em 26% e vai terminar na casa dos 55%. Hoje temos a taxa de inflação mais alta dos últimos 30 anos. Então, um pouco da proposta para os próximos anos é isso, não vamos estabilizar para crescer, mas crescer para depois estabilizar. Acredito que é uma mudança de paradigma importante.

Sul21 – Pode dar certo?

Kucher: Deixa-me colocar nestas palavras: é realmente difícil a situação que teremos nos próximos anos. Não temos acesso aos mercados de financiamento internacionais, existe um empréstimo do FMI e parece que a negociação vai ser muito complicada, porque os problema macroeconômicos não foram resolvidos. Seguimos tendo déficit fiscal, déficits de conta corrente, uma dívida que se duplicou ante o que havia em 2015, a qual nos ata de pés e mãos para fazer diferentes tipos de políticas econômicas. Por isso, a situação é sensível. Mas sempre há saída, sempre existe a possibilidade de se encontrar medidas pragmáticas, que eu gosto de chamar de ecléticas, que não se casam com nenhuma teoria econômica, para tentar dar uma solução aos problemas que vivem os argentinos. Quais são os problemas que mais afetam? Acredito que essa é a grande questão. A inflação é um grande problema, mas não é o principal. A grande tensão é que aumenta o desemprego, a economia está caindo 4% e o consumo está despencando. Por isso, primeiro é preciso resolver essas situações que fazem com que os argentinos vivam mal. Uma vez que se recupere a renda, as pessoas podem melhorar sua condição de bem-estar social, pode-se voltar a pensar em como resolver as outras situações.

Sul21 – Caiu muito o consumo interno?

Kucher: Na Argentina, 70% do PIB é oriundo do consumo interno, das pessoas. No último ano e meio, nos últimos dois anos, houve uma queda notável. São indicadores que caem dois dígitos. Isso se explica porque as pessoas perderam capacidade de compra, ou seja, os salários perderam poder aquisitivo, caíram em termos reais. Se explicam porque a desvalorização gerou um efeito inflacionário notável sobre todos os alimentos, que representam grande parte do gastos das pessoas, sobretudo dos que dependem de renda física, assalariados, indivíduos que recebem “asignaciones universales por hijo” [programa semelhante ao Bolsa Família brasileiro], cuja renda não aumentou no mesmo ritmo dos preços. Essa situação terminou impactando o nível de consumo da economia. Quando cai a demanda, também cai o conjunto do mercado interno que compõe o PIB. Outro fator que afetou fortemente a economia foi o aumento selvagem das tarifas, principalmente de gás e eletricidade. Acredito que esse é um dos grandes erros cometidos nos últimos anos. Foi feito sem cuidado, sem que houvesse um diagnóstico claro de como poderia afetar o bolso das pessoas. Uma parte muito importante do mal-estar social se explica justamente por essa política errática no momento de atualizar as tarifas.

A equipe do Sul21 viajou a Buenos Aires para a cobertura das eleições presidenciais graças a um financiamento coletivo dos nossos leitores.


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