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26 de outubro de 2019
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20:04

‘Nunca Más’: Centro de tortura transformado em museu lembra história da ditadura militar argentina

Por
Luís Gomes
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Foto: Luiza Castro/Sul21
Foto: Luiza Castro/Sul21

“Aqui funcionou o centro clandestino de detenção, tortura e extermínio Esma durante a ditadura cívico militar que assaltou os poderes do Estado desde 24 de março de 1976 até 10 de dezembro de 1983”. É o que diz o letreiro colocado em frente à antiga Escola de Mecanica de la Armada, em Buenos Aires. É um conjunto de 38 prédios para onde foram levados os presos políticos sequestrados pelos militares argentinos. Memória, verdade e justiça, são as palavras que complementam o letreiro do local, hoje transformado em um dos principais espaços de memória do país, conhecido como Ex-Esma. Toda a área da Esma hoje pode ser visitada de forma gratuita, para que se possa conhecer a história.

O prédio principal, em que até hoje está gravado o nome da Esma, está fechado para visitação. Diante dele, faixas trazem as palavras de ordem da luta contra a ditadura e seus apoiadores: “Nunca más”.

A Esma era composta por 38 estruturas espalhados por uma área verde, que tem a aparência de um grande jardim. A maioria delas prédios de dois andares, onde se localizavam as salas de aula e os dormitórios dos estudantes. Hoje, os prédios são pintados de branco. Foram transformados em espaços culturais.

O terreno de 17 hectares foi cedido pela prefeitura de  Buenos Aires em 1924 para a instalação da escola de suboficiais da Marinha Argentina em 1924. A construção do primeiro prédio foi concluída em 1928.

Originalmente, os jovens ingressavam na Esma aos 15 anos. Durante a ditadura, alunos fizeram parte das chamadas “guardias rotativas”, que controlavam os sequestrados pelo regime. Foram apelidados de “verdes”, pela cor de seus uniformes. Um grupo menor de estudantes também tomou parte em ações fora dos muros, como a patrulha de ruas, ações de controle de documentos e até mesmo dos sequestros.

Luís Delpech era um militante estudantil e comunitário. Tinha uma filha chamada Laura e seria pai pela segunda vez. Se fosse menina, se chamaria Victoria. Tinha 25 anos quando foi sequestrado em 11 de dezembro de 1976, ainda no primeiro ano de ditadura. Era membro da guerrilha urbana Montoneros. Está desaparecido até hoje.

Pelas vielas da antiga escola militar, painéis contam histórias de pessoas que foram e ainda permanecem desaparecidas. As paredes são a imprensa dos povos, diz a frase em um banco dos vastos jardins da antiga escola.

Pablo Lepiscopo, conhecido pelos amigos como Pisco, começou a militar na Frente de Luta dos Secundaristas (FLS). Aos 17 anos, fez um curso de torneiro mecânico para pode ajudar a família. Como trabalhador, se uniu aos movimentos do chamado Peronismo de Base (PB). Em 1979, tinha ingressado na universidade para cursar Sociologia. Sonhava com a revolução. Tinha 24 anos quando foi sequestrado em 5 de agosto do mesmo ano. Também segue desaparecido.

O mais importante espaço é o prédio de número 1, onde se localizava o chamado Casino dos Oficiales, a residência dos oficiais que administravam a escola. É hoje o Museu da Memória. O local era um dos mais de 600 centros ilegais de detenção durante a ditadura. Um prédio de quatro andares, mais um átrio, cujas paredes guardam a memória de uma das páginas mais violentas da história argentina. Por ali, passaram mais de 5 mil pessoas que foram presas e sequestradas pela ditadura. Eram homens, mulheres, militantes, políticos, lideranças sociais, revolucionários ou não, trabalhadores, sindicalistas, estudantes, etc. A maioria foi atirada, ainda viva, ao mar.

Foi ali também que os oficiais planejaram os sequestros, mantiveram seus prisioneiros encapuzados e acorrentados. Realizavam sessões de torturas. Abusavam das mulheres. Ao mesmo tempo em que faziam do local sua residência.

As informações que permitiram reconstruir  a história se baseiam, em grande parte, no testemunho de sobreviventes. Uma primeira reconstrução documental foi feita a partir da investigação da Comissão Nacional de Desaparecimentos de Pessoas, em 1984, no ano seguinte ao fim da ditadura. Esse trabalho foi ampliado a partir da desclassificação de documentos em 2003 e dos julgamentos de crimes contra a humanidade que colocaram militares no banco dos réus. As forças armadas nunca entregaram a documentação sobre o que aconteceu com os desaparecidos.

Neste segundo semestre, a exposição do prédio recorda a visita de uma equipe da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) ao local em 1979, momento em que a verdade sobre a Esma começou a vir à tona. Motivada por denúncias de violações feitas por familiares, a comissão da CIDH permaneceu na Argentina entre 6 e 20 de setembro daquele ano. Inicialmente, os militares adotaram uma postura de cooperação, em uma tentativa de negar que o regime promovia as violações. Os membros da CIDH se encontraram com oficiais, com religiosos e até mesmo com o general Jorge Rafael Videla, ditador da época.

No entanto, a partir das 5.580 denúncias recebidas, a CIDH produziu um relatório denunciando graves violações de direitos, alertando para a possibilidade de assassinatos e torturas que teriam sido realizados dentro da Esma. A comissão responsabilizava diretamente os militares. O relatório foi censurado na Argentina, com apenas algumas centenas de cópias tendo sido feitas por representantes de familiares. Mas ajudou a expor os crimes perante o mundo.

O Casino dos Oficiales era apresentado como a casa do Almirante, diretor da Esma. A exposição relata que não há testemunhos de sobreviventes sobre como eram os aposentos dos oficiais. Eles nunca estiveram ali. O segundo e o terceiro andares do prédio eram o dormitório dos oficiais. Havia uma escada central por onde eram levados os presos, encapuzados, para os andares superiores.

A “Capucha” (capuz, em espanhol), localizada no quarto andar, era o principal espaço de prisão, onde os presos eram colocados sobre colchões no pisos, isolados em cubículos, mantidos o tempo todo vendados. Ali, eles eram identificados pelos números, não por nomes. O único momento que conseguiam ter contato entre eles era quando iam ao banheiro, ainda trocavam palavras escondidos dos guardas. Na Capucha, os sequestrados podiam passar semanas, meses ou até anos, nos casos mais extremos, aguardando para serem transferidos. Para a liberdade ou para o fundo do Rio da Prata.

Mas havia um local ainda pior que a “Capucha”, a “Capuchita”, localizada no átrio. Ali, em meio às caixas d’água que abasteciam o prédio, foram instalados cubículos ainda menores para onde os presos eram levados para serem torturados. Era um espaço com uma única janela a 30 cm do chão, mas escurecida, o piso era vermelho e a iluminação artificial permanecia acesa o tempo todo. Os sequestrados permaneciam amarrados, pelos pés e mãos, e deitados ou sentados em um colchonete fino. Havia ainda uma pequena sala onde as ações de tortura física eram realizadas.

Pelo menos 30 mulheres grávidas passaram pelo prédio como prisioneiras. A maioria das crianças foram roubadas e entregues a famílias de apoiadores do regime. Até hoje as Avós da Maio continuam buscando algumas das crianças consideradas “desaparecidos vivos”.

Depois de 1979, o número de sequestros diminuiu. Mas, como lembra a exposição, o trabalho de terrorismo de estado já tá tinha sido praticamente feito, desmontando quase a totalidade dos movimentos sociais.


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