A equipe do Sul21 viajou a Buenos Aires para a cobertura das eleições presidenciais graças a um financiamento coletivo dos nossos leitores.
Luís Eduardo Gomes
A troca de dólares é uma questão cultural na Argentina. Com um pouco de exagero, é possível dizer que há mais casas de câmbio por quilômetro quadrado em Buenos Aires do que farmácias em Porto Alegre. Estão por todos os lados. E, nesta sexta-feira (25), ficaram sem dólares. Isso ocorre porque foi o último dia útil antes das eleições presidenciais, que serão realizadas no domingo (27), e a indicação das pesquisas é de que o presidente Maurício Macri, candidato preferido do mercado financeiro, será derrotado já em primeiro turno pelo kirchnerista Alberto Fernández. A reação do mercado é tirar dólares da Argentina, o que faz com que o valor da moeda comercializada pela população aumente.
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“A Argentina está vivendo há algumas semanas uma situação de paranoia cambial. O que significa isso? Que todo mundo quer comprar dólares e buscar refúgio justamente nas divisas porque tem medo que se agrave a situação de crise financeira que hoje afeta o mercado argentino. O medo é que ocorram novas rodadas de desvalorização e inflação”, diz Federico Kucher, economista e articulista do jornal Página 12.
Kucher explica que o dólar funciona como um refúgio para os argentinos, que acabam correndo atrás da moeda americana quando o país se encontra em situação de incerteza. Não é algo inédito em outros países do continente, mas nenhum outro povo trata a troca de dólares como algo tão natural. “A Argentina, digamos, é o jogador número um em ter esse tipo de conduta financeira. É um caso para estudo incrível. Acredito que excede a economia e, inclusive, tem algumas matizes de psicologia social”, diz.
Nesta sexta, a reportagem do Sul21 acompanhou o que foi uma verdadeira corrida às casas de câmbio. Apesar de serem muitas, todas elas tinham filas até o momento que ficavam sem dólares.
Hernán foi um dos argentinos que enfrentou uma fila pela manhã, acompanhado da mãe, para trocar pesos por dólares. Para ele, comprar a moeda americana é justamente uma forma que as famílias argentinas encontram para fazer poupança e se prevenir do que possa acontecer depois das eleições.
“Não sabemos o que pode acontecer, sinceramente. Sabemos que alguns meios de comunicação pendem para o governo, outros não. Tem uns que dizem que [a cotação do dólar] vai se manter, tem os que dizem que vai ganhar o outro e vai subir. No entanto, não sabemos o que vai acontecer. Pode ser que, a partir de segunda, suba tudo de novo, o dólar vá até as nuvens. O que a maioria faz é se agarrar [à cotação atual] para ter uma poupança”, afirma.
Foi essa incerteza que levou o casal de estudantes brasileiras Bárbara e Pâmela, que moram há quatro anos em Buenos Aires, a outra casa de câmbio.
“Tudo aqui é muito incerto. É sempre tudo muito inconstante por toda a situação política, a economia, a inflação. A gente consegue ver nos preços do supermercado a diferença mês a mês, como a inflação influencia na vida da Argentina. Trocar o dólar é mais ou menos como se fosse uma última oportunidade, porque nas eleições primárias, o dólar subiu 10 pesos do dia para a noite. [Agora] Já começou a subir, quanto mais próximo da eleição fica, mais sobe”, diz Bárbara.
O caso das prévias presidenciais, realizada em 12 de agosto para apontar os candidatos que estarão nas urnas deste domingo, é o maior exemplo recente de como a moeda argentina se desvaloriza rapidamente. Como o resultado indicou a tendência de o opositor Fernández chegar ao poder, os mercados “precificaram” a derrota de Macri, que vinha aplicando uma pesada agenda de ajuste fiscal, fazendo com que o peso perdesse quase 30% de seu valor em poucas horas no dia seguinte.
“Nesse dia, o Banco Central teve uma conduta irracional, fugiu do mercado, deixou de intervir para moderar o dólar e o que terminou ocorrendo foi uma desvalorização de quase 30% em poucas horas, em uma tarde. É uma situação que uma revisão de estudos de casos em outros países mostraria ser quase insólita. É uma desvalorização exorbitante para qualquer país do mundo. Bom, essa é a Argentina. Assim que funciona. E parte da explicação é que os argentinos têm uma prática de se dolarizar, de ir até às casas de câmbio, aos bancos, para comprar moeda estrangeira, o que certamente não existe em outros países da região”, diz Federico Kucher.
Nesta sexta, o dólar oficial começou o dia valendo 63 pesos e terminou sendo cotado a 65. Nas casas de câmbio, era possível comprar dólar por valores entre 59 e 62 pesos. Já a venda variava entre 65 e 69. O real também está se valorizando. Quando a reportagem do Sul21 chegou a Buenos Aires, na quinta-feira, quase todas as casas trocavam 14 pesos para cada real. Na sexta, era possível encontrar vários locais com a cotação de 15 por 1.
Bárbara conta que, até hoje, nunca tinha aderido a esse costume de comprar dólar. Mas, diante da expectativa de que a moeda americana possa valer 70, 80 ou até mais pesos na próxima semana, acabou decidindo encarar a fila. “Eu sei que piora a situação econômica comprar muito dólar, porque você tira muito dólar do país e coloca muitos pesos, mas por uma questão de segurança mesmo em relação a essa instabilidade, por imediatismo, comprar dólar é necessário. É mais ou menos uma poupança”, diz. “Na pré eleição, o dólar já subiu muito, agora eu acho que vai subir mais, então é uma questão de segurança. A gente não sabe o que vai acontecer. A inflação aqui é muito absurda”, complementa Pâmela.
O ‘dólar azul’
“Cambio, cambio”. “Dólares, dólares”. Essa é a trilha principal do centro de Buenos Aires. A cada poucos metros, há um arbolito (pequenas árvores, na tradução do espanhol), como os argentinos chamam os “cambistas” de dólares que operam moeda estrangeira no mercado paralelo. Alguns compram e vendem moeda na rua mesmo, outros estão ali apenas para atrair clientes para as casas de câmbio paralelas que operam escondidas em salas comerciais de galerias.
O mercado paralelo, que negocia o chamado “dólar blue” (azul), é ilegal. Mas os arbolitos estão por todos os lados. Homens, mulheres, jovens, idosos, quase sempre de braços cruzados, sentados junto a bancas de revistas ou de pé na porta de galerias. A presença da polícia não assusta esses mercadores de moeda. Pelo contrário, encontramos alguns operando a poucos metros de agentes de segurança.
Segundo relatos de funcionários das casas de câmbio oficiais, grande parte da fila desses locais é composta por pessoas contratadas por esses arbolitos. Recebem 100 pesos ou mais para comprar dólares nas casas de câmbio em troca de registrarem seu DNI — o equivalente ao nosso RG –, o que os operadores do “dólar blue” não querem ou não podem fazer.
Kucher diz que o mercado paralelo ganhou força na Argentina desde o início de setembro, quando o governo impôs medidas de restrições cambiais limitando a compra de dólares a US$ 10 mil mensais e apenas para pessoas físicas.
“O que ocorreu? Dividiram-se os dólares de referência no mercado. De um lado, ficou o câmbio oficial, que hoje vale 65 pesos. De outro, nasceu um dólar paralelo. É um dólar ilegal, que usam as empresas que perderam a oportunidade de comprar dólares no mercado legal ou oficial justamente para buscar refúgio em moeda estrangeira. As empresas dizem: ‘Eu tenho pesos, não quero ficar com pesos, o governo e o Banco Central não me deixam comprar dólares, a saída que tenho é ir ao mercado paralelo para comprar essas divisas e me proteger’. O que imaginam é que a situação vai continuar se desgastando, vai continuar piorando, virão mais desvalorizações, mais inflação, e a única coisa que resguarda o valor são os dólares”, diz.
O economista explica ainda que os mercados paralelos não são exatamente uma novidade na Argentina, mas aparecem toda vez que o dólar passa por período de aumentos bruscos. Ele avalia, no entanto, que o agravamento da situação econômica do País e a manutenção de uma conduta “errática” pelo Banco Central argentino para lidar com a fuga de capitais só está aumentado a pressão para a variação cambial.
“Até setembro, a diferença entre o mercado paralelo e o mercado oficial era quase zero, cotavam ao mesmo preço. No momento que colocaram controles cambiais, começou a se separar. São mercados que passam a ter valores diferentes, porque nem todo mundo pode ir ao mercado oficial. Nas últimas semanas, isso ficou mais caro. Hoje, a cotação do dólar paralelo chegou a quase 80, ou seja quase 15 pesos de diferença. Na semana passada, eram sete”, diz Kucher.
As casas de câmbio devem abrir as portas neste sábado e domingo, mas os locais que a reportagem visitou durante a tarde e já estavam sem dólares indicavam que a reposição só deverá ocorrer a partir de segunda, provavelmente já com outro valor.
Em uma dessas casas, a cada poucos minutos, novas filas se formaram, para se desfazerem em poucos segundos quando chegava a informação de que não havia mais dólares a serem comprados. Uma dupla de brasileiros que aguardava para trocar reais por pesos, aí sem fila, perguntou porque ocorria esse fenômeno, no que a funcionária da casa respondeu: “Aqui, o dólar sobe, sobe e sobe, mas não baixa nunca”.