Cortes Na Educação
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6 de setembro de 2019
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16:17

Equipamentos sem manutenção, menos pesquisadores e projetos adiados: como os cortes afetam a ciência brasileira

Por
Sul 21
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Laboratório de Fisiologia Celular da Ufrgs. Foto: Luiza Castro/Sul21

Felipe Prestes

A proteína HSP70, produzida pelo corpo humano, possui um efeito anti-inflamatório que ajuda no combate a diabetes, doenças cardiovasculares, Mal de Alzheimer, Mal de Parkinson, entre outras enfermidades. O Laboratório de Fisiologia Celular da UFRGS vem há cerca de quinze anos desenvolvendo um medicamento que busca induzir o corpo a um aumento da produção desta proteína, em um projeto chamado de LipoCardium. Testada apenas em camundongos, a formulação farmacêutica precisa passar por experimento em seres humanos. “Pode ser que não funcione, então é um investimento de risco. A indústria farmacêutica não se interessa por esses investimentos, precisamos de dinheiro público”, explica o professor Paulo Ivo Homem de Bittencourt Júnior, coordenador do laboratório. 

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Em um passado recente, recursos públicos para projetos como este eram acessados com mais facilidade. “Já foi possível, o próprio desenvolvimento do LipoCardium foi feito com dinheiro do CNPq”, conta Paulo Ivo. Em 2007, o laboratório obteve R$ 1,5 milhão para desenvolver um projeto. E entre 2010 e 2012, mais R$ 1,1 milhão. Os recursos possibilitaram a compra de equipamentos e reformas importantes para o laboratório, como na parte elétrica. “De lá para cá não teve mais nada”, lamenta o professor. 

Hoje, alguns equipamentos que estão com peças estragadas estão parados. Outro problema é que de dez aparelhos de ar-condicionado do laboratório apenas dois estão funcionando. Existem equipamentos que só podem ser utilizados em um local com determinada temperatura. Sem ar-condicionado, uma das salas do laboratório se tornou um mero depósito, enquanto utensílios caros ficam sem uso. 

Sequência de cortes chega a seu momento mais grave para a pesquisa. Foto: Luiza Castro/Sul21

O Laboratório de Fisiologia Celular chegou a ter 30 pesquisadores há cerca de cinco anos. Hoje, são apenas dois professores e cinco estudantes. “Os alunos foram saindo e eu não fui pegando mais aluno. Até tinha bolsa, mas o equipamento está quebrado, não tem dinheiro para comprar reagente. Como eu não tenho dinheiro para fazer os experimentos, eu não vou pegar aluno”, explica Paulo Ivo. “Com trinta pessoas, a gente conseguia dar volume para as coisas, os projetos iam conversando entre si e a gente conseguia fazer muita coisa legal”, lamenta o professor. 

No Programa de Pós-Graduação (PPG) de Biologia Celular e Molecular da UFRGS as coisas não estão muito diferentes. Cerca de R$ 400 mil que já estavam aprovados pelo CNPq não foram repassados. Em um dos laboratórios, duas centrífugas que permitem separar diferentes elementos para que o pesquisador possa analisá-los separadamente estão danificadas e sem perspectiva de manutenção. O coordenador do programa, Hugo Verli, explica que ainda há resíduos de verba de pesquisas anteriores, mas que, em breve, a situação deve piorar. “Por enquanto ainda está funcionando. Eu diria que estamos queimando gordura do corpo que estava guardada”, explica.

No entanto, este funcionamento só é possível com muita readequação dos projetos. “Como a gente já está sem receber parcela significativa dos recursos há algum tempo, tem um monte de coisas que tiveram que ser reajustadas para trabalhos de menor custo. Muita coisa deixou de ser comprada, tem vários equipamentos parados. Então a gente realoca as coisas, tenta compensar de uma outra maneira para que os alunos não parem de trabalhar, mas a gente já tem teses e dissertações impactadas por essa falta de recursos, tanto pela impossibilidade de executar os experimentos, quanto pelo corte das bolsas. Vários colegas já decidem por não receber alunos. Não tem equipamento para fazer, como eu faço para apoiar o sonho deste estudante?”, questiona o professor. 

O professor Paulo Ivo Homem de Bittencourt Júnior. Foto: Luiza Castro/Sul21

O PPG de Biologia Celular e Molecular tem grupos que trabalham com saúde humana, saúde animal e com melhoramento de plantas. Na área da saúde humana, há pesquisadores estudando a doença do pombo, uma doença fúngica que pode levar os pacientes a óbito. “Tem um grupo de especialistas neste fungo tentando desenvolver medicamentos para esta doença”, conta Verli. Há também tentativas de desenvolver uma ferramenta de diagnóstico clínico de Parkinson e novos tratamentos para a doença, e pelo menos dois grupos que trabalham com câncer.  

Um grupo trabalha em uma vacina contra carrapatos, para auxiliar na agropecuária. Há grupos atuando também com melhoramento de plantas, como eucalipto, arroz, entre outros cultivos. “Quando o dado é promissor, você deposita um pedido de patente no Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) e a partir dessa proteção a gente pode negociar com empresas. No Centro de Biotecnologia da UFRGS nós temos uma incubadora de empresas, algumas delas envolvendo ex-alunos”, explica Hugo Verli. 

Laboratório de Biologia Celular. Foto: Giulia Cassol/Sul21

Cortes começaram há alguns anos, mas seguem se aprofundando

De acordo com o relato dos professores, os cortes começaram a ser sentidos no segundo mandato de Dilma Rousseff, mas se aprofundaram com Michel Temer, e agora chegam a uma situação dramática. Os relatos se aproximam dos dados do próprio Governo Federal. O dispêndio em ciência e tecnologia no ministério de mesmo nome, responsável pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), teve seu pico em 2013, cerca de R$ 11,9 bilhões (valores atualizados com base em 2016). Em 2014, cai para R$ 8,3 bilhões; em 2015 para 7,6 bi e em 2016 para 5,8 bi. Em 2019, os recursos discricionários do Ministério estão em apenas R$ 2,9 bilhões, após um contingenciamento de 42% do volume previsto para a pasta. O CNPq anunciou recentemente que, a partir de outubro, pode não ter mais dinheiro para pagar seus bolsistas. 

“O CNPq vem sendo depreciado há bastante tempo, pelo menos desde o segundo Governo Dilma, mas as bolsas nunca foram ponto de dúvida, elas eram pagas e a gente ainda tinha algum dinheiro de fomento. Agora, além das bolsas não serem pagas, há a perspectiva de que nenhum fomento será pago, isso é pavoroso”, lamenta o coordenador do PPG de Biologia Celular e Molecular da UFRGS, Hugo Verli. 

Além do CNPq, o principal órgão de fomento à pesquisa no país é a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), que fica sob o guarda-chuva do MEC. A CAPES teve seu maior orçamento em 2015, quando mais de R$ 7 bilhões foram executados. No ano seguinte, caiu para R$ 5,9 bilhões. Em 2017, para R$ 4,6 bilhões. No ano passado, para R$ 3,8 bilhões. Para 2019, o orçamento previsto era de R$ 4,2 bilhões dos quais R$ 800 milhões já foram bloqueados. Além disto, o Governo Federal anunciou nesta semana o corte de 5.613 bolsas de mestrado e doutorado da CAPES. A medida não atinge bolsas em vigor, mas prejudica novos bolsistas que passariam a receber os recursos. “A CAPES não ter dinheiro para bolsa, significa que a pesquisa vai parar”, afirma o professor Paulo Ivo Homem de Bittencourt Júnior.  

Para o coordenador do Laboratório de Fisiologia Celular, alunos que não têm bolsa e que acumulam outro emprego além do seu trabalho de pesquisa acabam realizando estudos de menor relevância. “O aluno vai fazer uma tese meia-boca, ele precisa estar no laboratório full time, tem que fazer experimentos, às vezes é necessário virar a noite fazendo um experimento. Sem bolsas tu começa a ter profissionais de baixa qualidade”.  

Hugo Verli. Foto: Giulia Cassol/Sul21

O coordenador do PPG de Biologia Celular e Molecular da UFRGS tem opinião semelhante. “Alguns alunos preferem não ter a bolsa e trabalhar simultaneamente e quase sempre impacta em um rendimento menor”, afirma. Hugo Verli aponta ainda que o corte de bolsas pode gerar um recorte de classe na área de pesquisa. “Eu entendo que o sistema vai se tornar muito mais elitista. Só vai fazer pós-graduação uma pessoa muito apaixonada e que tenha uma estrutura familiar que permita fazer isso independentemente da bolsa”. 

O professor também ressalta que a interrupção de trabalhos em andamento pode gerar enorme impacto. “Há experimentos que você pode ficar meses fazendo, se isso paralisa no meio eu perco todo o trabalho. Além disso, leva em torno de dez anos para formar um pesquisador. Se de repente o aluno está a graduação inteira fazendo isso, mestrado, parte do doutorado e de repente ele perde a bolsa, ele perdeu um investimento de seis a oito anos, o trabalho dele se perde”. 

Para o doutor em Educação e Pós-Doutor em Sociologia Gregório Grisa, o prejuízo causado pelos cortes na ciência brasileira é imensurável. “Os impactos são os mais variados. Estamos falando de investigações muitas vezes que constituem séries históricas longas, que demandam uma lenta e gradual maturação de análises e testes, isso tudo se perde. A sociedade perde diretamente quando os serviços públicos ofertados pelas instituições são precarizados, quando a extensão, a pesquisa e o ensino se inviabilizam. Perde também indiretamente em função do volume de produtos, serviços e descobertas que deixam de ser produzidos”. 

Apesar dos cortes, produção científica brasileira segue crescendo

O Scopus é um banco de dados que reúne resumos e citações de artigos acadêmicos em todo o mundo. O Brasil vem aumentando sua participação na produção mundial de artigos indexados pelo Scopus. Em 1996, a produção brasileira era 0,78% da produção mundial. Em 2018, o Brasil atingia 2,63%. Em 2019, na lista de pesquisadores mais citados no mundo (Highly Cited Researchers), o Brasil apareceu com doze pesquisadores, melhor do que nas edições anteriores, mas ainda ínfimo, já que mais de 6 mil estudiosos aparecem na lista. O país é hoje o décimo terceiro que mais publica pesquisas no mundo, tendo ultrapassado nas últimas décadas nações como Rússia e Holanda. 

“A gente ainda vai continuar melhorando, mas daqui cinco anos a gente vai notar o impacto dos cortes”, afirma a professora do Instituto de Física da UFRGS e diretora da Academia Brasileira de Ciências (ABC), Marcia Fernandes Barbosa. Este período entre os cortes e um impacto nos indicadores internacionais se dá porque há artigos já prontos, mas não publicados; ou já publicados, mas ainda não indexados, entre outros motivos. Mas alguns indicadores já apontam piora. Relatório da empresa Clarivate Analytics aponta que nos últimos dois anos há menos trabalhos produzidos no Brasil nos grupo de 1% e 10% de trabalhos mais citados no mundo. 

Impacto dos cortes atuais deve aparecer nos próximos anos. Foto: Giulia Cassol/Sul21

A diretora da Academia Brasileira de Ciências afirma que o Governo Federal tem de onde tirar recursos para financiar a pesquisa: “Existem diversas maneiras de retornar esse dinheiro, não retorna porque não é prioridade”. Márcia Barbosa relata parte do financiamento à pesquisa no Brasil vem do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), que é formado por recursos como a Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (CIDE), parcela sobre o valor de royalties de petróleo e gás natural, receita operacional líquida de empresas de energia elétrica, entre outras fontes. “Esse dinheiro não é pouco. O que vem acontecendo é que o dinheiro desse fundo está sendo usado em outra coisa e a gente não sabe o que é”. 

A professora da UFRGS acredita que há intenção ideológico do Governo em prejudicar as Ciências Sociais, mas não tem meios para fazê-lo sem atingir outras áreas. “Em princípio, acredito que não queriam matar as Ciências Exatas, só o fazem porque não conseguem desacoplar os recursos. Queriam matar as Ciências Sociais”. 

A diretora da ABC conta que quando os Estados Unidos entraram em recessão, em 2008, o país ampliou os investimentos em ciência e tecnologia. “Obama disse: ‘a gente não tira o motor do avião quando o avião não está bem’”, relembra. Donald Trump, por sua vez, tentou diminuir os investimentos nesta área em 2018 e o Congresso norte-americano barrou a medida. “O Congresso é a única saída para nós também, temos esperança de que nossas articulações no Congresso impeçam a destruição do CNPq e da CAPES”.

 

Foto: Luiza Castro/Sul21

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