Cortes Na Educação|z_Areazero
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5 de setembro de 2019
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16:37

Em oito meses, Governo Bolsonaro toma série de medidas que colocam em xeque a autonomia universitária 

Por
Sul 21
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O presidente Jair Bolsonaro dá posse ao novo ministro da Educação, Abraham Weintraub, em cerimônia no Palácio do Planalto.
Foto: Valter Campanato/Agência Brasil

Felipe Prestes

Iniciado há pouco mais de oito meses e caótico em várias áreas, o Governo Bolsonaro tem se mostrado bastante eficiente na apresentação de medidas que atentam contra a autonomia das instituições federais de ensino superior (IFES). Em março, um decreto extinguiu centenas de funções gratificadas em universidades. Em maio, outro decreto determinou que a nomeação para cargos como o de vice-reitor e pró-reitor das instituições passasse pelo crivo do Governo. 

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Enquanto essas medidas mais claramente afrontam funções que cabem às universidades – ambos os decretos são contestados pelo Ministério Público Federal, e, no caso da extinção de funções gratificadas, as instituições sediadas no Rio Grande do Sul já obtiveram liminar a seu favor – outras iniciativas são mais controversas do que ilegais. É o caso da nomeação de diversos reitores que não foram os primeiros colocados da lista tríplice apresentada pela comunidade acadêmica. 

O Governo Federal já nomeou cinco reitores que não foram primeiros colocados das consultas nas universidades, e nomeou o primeiro colocado em seis oportunidades. Em outro caso, na Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), o Governo não reconheceu as eleições da entidade e nomeou uma reitora temporária que sequer estava na lista tríplice. Isto porque a UFGD encaminhou apenas o nome do primeiro colocado da lista, já que os demais se retiraram da disputa. Iniciou-se uma disputa judicial, mas, enquanto isto, a reitora temporária nomeada pelo Governo está exercendo o comando da universidade. Caso semelhante ocorreu no Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca (Cefet-RJ). O MEC contesta a consulta pública para diretor-geral e nomeou um funcionário do Ministério para o cargo de diretor interino, o que tem gerado fortes protestos dos estudantes.

A autonomia universitária está definida pelo artigo 207 da Constituição Federal, que diz que “as universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial”. Por outro lado, a Lei 9192/1995 define que a universidade deve encaminhar lista tríplice e o presidente fica livre para nomear qualquer dos três candidatos. E é o que aponta o secretário de Ensino Superior do MEC, Arnaldo de Lima Barbosa de Lima Júnior: “A autonomia didático-pedagógica está garantida na Constituição Federal. O que está sendo feito é respeitar a lei, que diz que é preciso eleger um dos nomes de lista tríplice. É a democracia”. 

“A gente está estarrecido”, afirma o presidente do Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (ANDES-SN) Antônio Gonçalves Filho. Para o dirigente sindical, a Lei 9192/1995 é uma norma infraconstitucional e não pode estar acima da Constituição. Ele entende que a autonomia universitária deveria passar pela escolha do reitor. “A gente acha que tem que ser eleição direta e a escolha se encerrar dentro da instituição”. 

Professora do Departamento de Direito do Estado da Faculdade de Direito da USP Nina Beatriz Stocco. Foto: USP Imagens

Para a professora do Departamento de Direito do Estado da Faculdade de Direito da USP Nina Beatriz Stocco, porém, a escolha do segundo ou terceiro colocados na lista tríplice não fere a autonomia das instituições, embora considere uma decisão política que desprestigia as universidades. “Em princípio eu diria que não fere a Constituição, porque o órgão mantenedor, que é o Estado, acaba interferindo. Não existe autonomia absoluta, não estamos falando de independência ou soberania. Se fosse independência, aí sim estaria ferindo. O órgão mantenedor tem algum tipo de controle. Isso é em todo lugar. Todos os países que têm um modelo semelhante são assim”, explica. 

Entretanto, quando o assunto é a interferência do Governo na nomeação dos cargos de segundo escalão das universidades, a professora tem outra opinião. “Aí sim eu vejo que fere a autonomia. Não há previsão legal (para interferência do Governo), como há na escolha do reitor. A organização interna era sempre feita pelas universidades”, afirma a professora da USP. Nina Beatriz Stocco cita também o projeto Future-se como um possível risco à autonomia das instituições federais de ensino. “O que se percebe é que as organizações sociais terão muita influência no ensino e na pesquisa, e então as universidades vão ter um problema de autonomia”. 

Para o MPF, o decreto que retira dos reitores a livre nomeação de pró-reitores e diretores, “viola frontalmente as disposições constitucionais pertinentes à Autonomia Universitária” e significa “verdadeira intromissão na administração destas instituições”, pois “toda a atividade administrativa, de gestão ou didática cientifica passa a ser determinada pela Presidência da República e não mais pelas próprias universidades e institutos federais”. Já a extinção de funções gratificadas, “em número impressionantemente alto, compromete quase que em absoluto o funcionamento administrativo” das universidades. 

Lucia Pellanza. Foto: Luiza Castro/Sul21

A reitora da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre, Lúcia Pellanda, demonstra preocupação em conscientizar a população sobre a importância da autonomia universitária. “As pessoas podem confundir às vezes, ‘ah, querem fazer o que bem entendem’. A autonomia é muito importante para nós. Significa que não vamos estar sujeitos a um partido político, a um indivíduo, ao mercado. Vamos abrigar todas ideias”. 

Modelo paulista de autonomia traz vantagens 

Nas universidades estaduais de São Paulo, também se estabeleceu a autonomia universitária no processo de redemocratização do país. A diferença é que por lá foi estabelecido que 9,57% da arrecadação de ICMS iria para as três universidades públicas (USP, UNICAMP e UNESP). “Uma vez que são repassados esses recursos, eles são administrados livremente. Existe uma previsibilidade. No modelo federal, não há essa previsão. Não há nada que garanta mesmo recursos básicos para manutenção”, afirma Nina Beatriz Stocco. 

Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. Foto: Marcos Santos/USP Imagens

Passados trinta anos desde a medida, USP e UNICAMP costumam ocupar as primeiras posições nos rankings que definem as melhores universidades do país. Mas nem tudo deu certo. A professora de Direito de Estado da USP conta que houve momentos em que a folha de pagamento das universidades excedeu o montante arrecadado com ICMS e foi preciso fazer planos de demissão voluntária. “Houve erros e acertos, mas os resultados são positivos”, diz.

Para Nina Beatriz Stocco o modelo aplicado em São Paulo poderia ser implementado nas universidades federais. “É um modelo já testado e que tem 30 anos. O Governo talvez pudesse fazer isso com algumas universidades que fazem mais trabalho de pesquisa, para que se organizassem”, afirma. 

Presença militar em universidades chama atenção 

Além das medidas do Governo Federal que atentam contra a autonomia universitária, chamaram atenção alguns episódios com relação à presença militar nas universidades federais. Em fevereiro, a reitoria da Universidade Federal Fluminense (UFF) criou um cargo de assessoria militar,  “para fins de articulação e cooperação com o Ministério da Defesa e as Forças Armadas”. A assessoria era composta por dois professores da instituição e pelo capitão-de-mar-e-guerra Gustavo Bentenmüller Medeiros Pereira. Com a pressão da comunidade acadêmica, porém, a reitoria voltou atrás e desfez o órgão. 

Em julho, uma servidora da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) foi designada como assessora da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS). Embora seja uma instituição civil, a Abin tem forte presença militar e está sob o guarda-chuva do Gabinete de Segurança Institucional, comandado pelo General Augusto Heleno. Também na UFMS, no mês de julho, um militar filmou de maneira bastante ostensiva a palestra do cientista Sidarta Ribeiro, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), durante a 71ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). A palestra falava sobre os cortes no financiamento da ciência brasileira. Embora os militares do Comando Militar do Oeste tenham sido convidados para a reunião e tivessem até estande no evento, chamou atenção a forma como a palestra foi filmada, com um militar se aproximando bastante dos presentes que faziam perguntas ao palestrante para filmá-los.  

“O fato é que uma simples participação dos militares na Academia não pode ser vista como perseguição”, afirma o advogado Rodrigo Lentz, ex-coordenador da Comissão de Anistia e doutorando em ciência política da Universidade de Brasília, onde estuda a Escola Superior de Guerra (ESG). “Militares fazem estudos, mestrado, doutorado. No ano passado, em encontro da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS), apresentei um trabalho sobre a ESG, havia militares participando e não houve qualquer problema”, complementa. 

Rodrigo Lentz. Foto: Luiza Castro/Sul21

Lentz afirma que no caso das nomeações para a UFF e UFMS não havia interferência dos militares e acredita que pode ser estratégia política das próprias universidades. “Nesses dois casos, pelo que apurei, não se trata de ingerência. Pelo contrário, é mais um desdobramento das interações dos militares com a Academia”. Quanto ao caso da filmagem, ressalta que a área de ciência e tecnologia tem grande interação com os militares. “Eles se sentem à vontade para irem fardados neste tipo de evento. Pode ser intimidação ou não. Pode ter tido alguma prática individual também”. 

Embora minimize esses casos, Lentz compreende o receio da comunidade acadêmica. “Esse receio é normal por conta do histórico e da falta de autocrítica dos militares de seus próprios atos. A gente tem um grande trauma com relação às Forças Armadas, inspiram pouca confiança quanto à garantia da democracia. Tem um histórico e não há nada que garanta que isso não possa ocorrer de novo”, diz. 

Se nestes pequenos episódios Rodrigo Lentz acredita que não há uma ingerência do comando militar, quando o assunto são as políticas do Ministério da Educação que afrontam a autonomia universitária, como a interferência nas nomeações de pró-reitores e diretores, o pesquisador acredita que há, sim, participação das Forças Armadas: “Neste ponto identifico uma política com dedo da doutrina dos militares. Eles estão pensando o Governo, estão pensando a universidade e isso vai envolver o controle de quem ocupa os cargos”, afirma. 

Lentz explica que a Escola Superior de Guerra tem um manual básico de doutrina de ação política. “Essa doutrina tem uma visão funcional, sistêmica. Quando há parte desse organismo que cause perturbação é preciso agir. Se eles acharem que a postura da universidade está em desacordo, eles vão agir. Mas não vai ser num arroubo, se dá com informação, com estratégia”, relata. De acordo com a doutrina da ESG, o poder nacional se divide em várias formas de expressão, que são o meio para se chegar ao fim, que é o bem comum. “Neste manual a universidade faz parte da expressão psicossocial do poder nacional, junto com mídia, família, escola, associações”, explica o pesquisador da UNB. 

Para Lentz seria um erro as universidades se fecharem para as Forças Armadas, apesar de pontuar que é um cenário “onde as universidades precisam se defender”. “O melhor cenário seria uma integração, mas que parta da garantia de plena autonomia das universidades. O conservadorismo militar certamente vai gerar choques, mas as universidades poderão influenciar uma instituição que precisa muito do pensamento democrático das universidades”.

Manifestações contra os cortes na educação em Porto Alegre. Foto: Luiza Castro/Sul21

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