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23 de dezembro de 2017
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10:00

Artistas criminosos

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Sul 21
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Artistas criminosos
Artistas criminosos
Phil Spector foi condenado a dezenove anos de prisão por matar Lana Clarkson. (Foto: California Dept. of Correction Rehabilitation)

 zeca azevedo (*)

As recentes revelações sobre o comportamento sexual abusivo de figurões de Hollywood, entre os quais figura o nome de um ator premiadíssimo, traz de volta às rodas de conversas uma questão antiga e difícil: se um artista talentoso comete um crime terrível, devemos julgar e condenar a obra dele por essa razão?

Casos de artistas criminosos existem desde sempre e acontecem em todos os lugares. Um dos mais famosos e talentosos artistas visuais do Brasil, o gaúcho Iberê Camargo, matou um homem por motivo fútil em 1980. A vítima, Sérgio Alexandre Esteves Areal, tinha 32 anos e quatro filhos. Apoiado por pessoas influentes, entre elas generais da ditadura civil-militar (que ainda estava em vigor), Iberê permaneceu somente vinte e oito dias na cadeia por fuzilar com dois tiros de revólver um homem que não conhecia. Em defesa do artista, podemos dizer que ele sofria de transtornos mentais e que não tinha controle sobre seus atos, mas o fato dele portar uma arma de fogo nessas condições precisa ser severamente questionado, assim como a punição pífia que ele recebeu pelo crime. Hoje, Porto Alegre ostenta um prédio monumental erigido para celebrar a arte e a figura de Iberê Camargo. Obviamente, não há no prédio nenhum tipo de memorial, nem mesmo uma placa, dedicada ao pai de família que Iberê assassinou. O crime estúpido que o artista perpetrou virou assunto tabu no meio cultural, especialmente no Rio Grande do Sul, mas está registrado e, mesmo escamoteado ou tratado com constrangimento, é fato incontornável e precisa ser citado nas biografias de Iberê (a propósito: a pequena biografia do artista incluída em Iberê Camargo/Mário Carneiro: correspondência, livro epistolar publicado pela Editora Casa da Palavra em 1999, não faz menção nenhuma ao crime praticado pelo pintor gaúcho).

Algumas “vozes da Razão” dizem sem titubear que devemos julgar a arte e a vida do artista separadamente, mas o que acontece quando o prestígio da obra ajuda a livrar a cara de um assassino? A impunidade de Iberê no caso do assassinato prova de forma inequívoca que a arte e a vida do indivíduo que a produz têm efeitos recíprocos que nem sempre são aceitáveis do ponto de vista moral e ético. Morre o homem, fica a obra, é fato, mas a permanência do legado artístico de uma pessoa também carrega consigo a lembrança da história dessa pessoa e, por conseguinte, do(s) crime(s) cometido(s) por ela, não importa a quantidade de água que correu ou correrá sob a ponte. Muitos criminosos foram esquecidos pela História, mas artistas de destaque podem ter seus crimes memorados sempre que suas biografias são evocadas. A lembrança é particularmente amarga quando o artista não recebeu punição proporcional ao crime que praticou.

Don Carlo Gesualdo viveu de 1560 ou 1561 a 1613, é lembrado muitos séculos depois pela música de grande beleza que escreveu e também por um episódio terrível, que ocorreu no dia 16 de outubro de 1590, em Nápoles. Ao apanhar em flagrante a esposa com um amante na cama, Gesualdo, com o auxílio de três empregados, matou barbaramente o casal. A mulher, Donna Maria d’Avalos, levou mais de trinta facadas de Gesualdo. Ao voltar ao castelo onde vivia, Gesualdo teria providenciado a morte do segundo filho de Donna Maria, pois acreditava que não era o verdadeiro pai do menino. Logo depois de matar a esposa, o amante dela e o filho, Gesualdo teria posto abaixo com as próprias mãos e sem ajuda uma floresta que cercava seu palácio, em um ato de fúria que durou meses. Como o compositor era príncipe de Venosa, a cidade italiana em que vivia, gozava de imunidade e escapou da punição legal pelos assassinatos.

Gesualdo tinha imenso amor pela música, mas era um homem atormentado. Sofria de depressão e praticava diariamente atos brutais de autoflagelação como forma de expiação de pecados. Em vida, Gesualdo compôs belíssimos madrigais e peças sacras que celebram a fé, mas também evocam o aspecto sombrio da psique do artista. Em suas composições, Gesualdo  antecipou procedimentos de escrita musical e incorporou dissonâncias sonoras que só voltariam a ser utilizados no início do século vinte. A vida e a arte do compositor assassino forneceram inspiração para alguns destacados artistas do século passado, como Igor Stravinsky, que visitou o castelo de Gesualdo duas vezes e dedicou obra ao compositor napolitano. Os escritores Aldous Huxley e Julio Cortázar também reconheceram a beleza e a originalidade do legado musical de Gesualdo. A arte de Gesualdo conjura espiritualidade elevada, mas guarda também elementos dos distúrbios mentais do compositor. Por conta disso, há quem afirme que Gesualdo foi um precursor do Expressionismo na arte.

Outro assassinato que envolveu um grande nome da música foi o perpetrado por Phil Spector. Diz o livro The Faber Companion to 20th-Century Popular Music, editado na Inglaterra em 1990 (tradução livre): “Durante os anos sessenta, Spector fez mais do que qualquer outro para estabelecer o papel do produtor de discos como artista criativo”. O compositor e produtor ainda é referência absoluta para a música pop, em especial para Brian Wilson, líder dos Beach Boys e um dos mais prestigiados músicos dos Estados Unidos. Assim como Wilson, Spector teve uma infância problemática, que afetou sua saúde mental para o resto da vida. Só que, ao contrário do líder dos Beach Boys, que é passivo-agressivo e introvertido, Spector é agressivo e sádico. As histórias de abusos cometidos por Spector contra seus músicos, contra artistas de renome com quem gravou (John Lennon, Leonard Cohen, The Ramones) e contra mulheres são bem conhecidas por quem se interessa pela trajetória dessa figura-chave da cultura norte-americana do século passado.

Aos nove anos de idade, Phil Spector perdeu o pai, que cometeu suicídio. O garoto ficou sob os cuidados da mãe, que sofria de distúrbios mentais e praticava atos de abuso emocional. O primeiro sucesso de Spector, “To Know Him Is To Love Him”, tem o título copiado da frase impressa na lápide do pai do músico. Quando Phil Spector despontou na cena musical, o rock’n’roll selvagem e libertador dos anos 1950 já havia se transformado em produto de consumo em escala industrial. Diz o livro Vocabulário de Música Pop, escrito por Ray Shuker e publicado no Brasil em 1999: “No final da década de 1950 e início da de 1960, um modelo fabril de composição, combinado com um forte senso estético, evidenciou-se no trabalho de um grupo de compositores (e editores musicais) agrupados no Brill Building, em Nova Iorque”. A arte de Spector e de outros expoentes deste período rico, porém subestimado, da história da música popular equacionou o permanente conflito entre acessibilidade comercial e expressão artística e produziu muitas canções que se tornaram standards do pop.

Depois de trabalhar com alguns experts em produção fonográfica e composição musical como Lee Hazlewood, Jerry Leiber e Mike Stoller, Spector estava pronto para apresentar ao mundo a sua proposta estética inovadora, a “parede de som”, abordagem que transplantou a avassaladora massa sonora das obras orquestrais de Richard Wagner para as canções pop juvenis de dois minutos e meio de duração e, assim, levou a concepção musical do pop a um novo estágio. O projeto estético de Spector, hiperbólico e arriscado, foi imediatamente bem recebido pela mídia especializada e pelo público consumidor de discos. Ao desenvolver um conceito musical próprio, Spector tornou-se o mais original e o mais destacado “produtor autor” de sua época e abriu caminho para o trabalho de artistas inovadores na área como Brian Wilson e Brian Eno.  De acordo com o livro Vocabulário de Música Pop, “Em meados dos anos 1960, os produtores de estúdio passaram a ser considerados autores por empregarem a tecnologia dos múltiplos canais de gravação e do som estereofônico de maneira a tornar as gravações “uma forma de composição em si, e não um simples meio de documentar uma atuação (Negus: 1992; pg. 87)”.

A “parede de som” concebida por Phil Spector requeria um verdadeiro batalhão de músicos no estúdio. Spector costumava usar dois bateristas, cinco pianistas e muitos guitarristas e percussionistas em uma só gravação. Mandar em tanta gente certamente satisfazia o complexo de Napoleão de Spector.

Aos vinte e dois anos de idade, Spector era um homem rico e uma potência na indústria musical norte-americana. Algumas produções assinadas por ele nos anos 1960 tornaram-se verdadeiros clássicos do pop, entre elas “He’s a Rebel” e “Then He Kissed Me” do grupo vocal The Crystals, “Be My Baby” e “Baby I Love You” das Ronettes, “Christmas (Baby Please Come Home)” de Darlene Love (cantora de voz magnífica que Spector usou em inúmeras gravações sem dar a ela o crédito de solista), “You’ve Lost That Lovin’ Feeling” e “Unchained Melody” dos Righteous Brothers e “River Deep, Mountain High”, creditada a Ike & Tina Turner, mas que só tem participação da cantora. Isso sem falar em A Christmas Gift For You From Phil Spector: lançado em 1963, incluído com frequência nas infames “listas de melhores de todos os tempos”, esse título não é apenas  o mais festejado álbum de Natal da era do rock, é também um dos mais celebrados álbuns de rock da história.

Além dos hits, Phil Spector produziu gravações antológicas que ainda hoje impressionam pela escala wagneriana do som e da emoção, como “I Wish I Never Saw the Sunshine”. Gravada em 1965, esse registro teve o vocal completado por Ronnie Spector em um só take. A voz de Ronnie, encarcerada e sufocada pela sonoridade over the top e psicótica concebida por Phil Spector, antecipa a dor e o desespero que a cantora sentiu alguns anos depois, quando percebeu que havia se tornado prisioneira do marido obsessivo e controlador.

Pode-se especular o quanto do talento musical de Spector e de Brian Wilson tem origem nas disposições mentais “fora do padrão” que ambos apresentam. Pistas podem ser encontradas no som que lhes é característico: a “parede de som” de Spector é asfixiante, opressiva e expressionista, enquanto a música de Brian Wilson é onírica, delicada, melancólica, impressionista e envolvente. Desde o início, a obra de Spector foi marcada pela morbidez romântica.

Em meados dos anos 1960, o pop “maior do que a vida” de Phil Spector deu lugar ao rock, que expandiu de forma radical o vocabulário musical e temático do “velho” rock’n’roll. O último compacto das Ronettes, grupo vocal feminino que era uma das mais importantes commodities de Spector, foi publicado em 1966. No final daquela década, Spector foi convidado a “dar um jeito” no álbum inacabado dos Beatles, Let It Be. John Lennon e George Harrison eram fãs do trabalho do produtor e permitiram que ele aplicasse sua “parede de som” nas gravações do quarteto de Liverpool, fato que desagradou a Paul McCartney (em 2003, McCartney teve sua “vingança” ao lançar Let It Be Naked, edição do álbum que apagou completamente as contribuições de Spector).

Enquanto mexia em gravações dos Beatles e produzia os primeiros (e mais importantes) discos solo de John e de George lançados depois do fim do mais famoso grupo de rock da história, Spector infernizava a vida da mulher dele, Ronnie (John Lennon, à época engajado na defesa do feminismo por influência de Yoko Ono, não se deu conta de que o diabo estava ao lado dele no estúdio de gravação). Ronnie foi obrigada por Phil Spector a abdicar da carreira de cantora e a viver como prisioneira na mansão do produtor de 1967 a 1972. Spector tratava a esposa de forma abusiva, não permitindo que ela saísse da casa. Ronnie Spector disse em entrevista à revista Mojo que só podia ir para a rua “comprar coisas de mulher” uma vez por mês e tinha que levar ao seu lado, no carro, um boneco inflável parecido com Phil Spector para que os outros pensassem que ela estava acompanhada por um homem. Depois de sofrer por mais de cinco anos, Ronnie conseguiu fugir da prisão imposta a ela por Phil Spector. Detalhe: ela fugiu descalça, pois o marido abusivo acreditou que ela não iria longe sem sapatos.

Quando Phil Spector deixou de ser um nome forte na indústria musical e virou um astro do passado, o produtor e compositor, notório misantropo, encerrou-se em sua mansão. Nas poucas vezes em que foi visto em público, comportou-se de modo bizarro. Spector, que havia apontado revólveres para Leonard Cohen, para os Ramones e para outros artistas com quem trabalhou, sempre teve fascinação pelo poder que as armas de fogo conferiam a ele. Episódios de violência contra mulheres envolvendo Spector e armas de fogo repetiram-se com frequência assustadora, mas o produtor, um homem rico, permaneceu impune até o dia 3 de fevereiro de 2003, quando a atriz Lana Clarkson morreu com um tiro na boca na mansão dele.

Nascida em 1962, Lana Clarkson era conhecida por participar de uma série de filmes B e possuía um fã-clube pequeno e fiel, mas a carreira cinematográfica havia empacado. Ela trabalhava em uma casa noturna quando Spector a encontrou. Talvez motivada pela fama de Spector, Lana Clarkson aceitou o convite para ir à mansão dele. Os dois ficaram na casa por pouco mais de uma hora. O motorista brasileiro de Spector, Adriano de Souza, que estava do lado de fora, ouviu um estampido. Logo em seguida, viu o músico sair da casa portando uma arma. Em depoimento à polícia, Souza disse que Spector falou neste momento: “Acho que atirei nela”. O produtor musical alegou que Lana Clarkson colocou por conta própria a arma na boca e acidentalmente puxou o gatilho.

Depois de dois julgamentos, Phil Spector foi condenado a dezenove anos de prisão por matar Lana Clarkson. Hoje, Spector tem setenta e sete anos de idade. Ele só poderá pedir liberdade condicional quando tiver oitenta e oito anos. É grande a possibilidade de que ele morra encarcerado. É o fim da linha ao estilo de Norma Desmond (personagem principal do filme Crepúsculo dos Deuses, de Billy Wilder) para um artista cuja importância para a história da música popular mundial não pode ser subestimada, mas Spector é responsável pela própria derrocada e precisa permanecer preso pelo resto da vida por conta do feminicídio que cometeu.

O crime de Phil Spector lança uma sombra sobre o legado artístico dele, mas as gravações que fizeram a fama do produtor representam não só o talento dele, mas também o dos cantores, músicos e técnicos que participaram delas. A beleza e a potência das vozes de Darlene Love, de Ronnie Spector, dos Righteous Brothers e de outros cantores, os arranjos elaborados feitos por Jack Nitzsche para as canções e os extraordinários resultados técnicos obtidos pelo engenheiro de som Larry Levine, que conseguia capturar a massa sonora do wall of sound à perfeição, arrancam das garras da condenação moral eterna as produções de Spector. Eis aí a vantagem que o artista cuja obra é realizada por um grupo de pessoas tem sobre aquele que produz sozinho a sua arte: a imputação de crime costuma ser individual e não coletiva. Phil Spector orientava com rigor seus cantores e músicos e tinha a palavra final sobre o resultado do produto, mas esse resultado era obtido através de esforço coletivo. Um artista como Iberê Camargo responde sozinho por seu trabalho; por isso, a sombra do crime que ele cometeu projeta-se com mais força sobre as obras dele.

Não estou dizendo que devemos boicotar ou arremessar na fogueira as obras de Iberê, de Gesualdo, de Spector ou de artistas com histórias parecidas com as deles, pois a obra de arte pode ser compreendida e apreciada sem que saibamos detalhes sobre a vida do autor. Além disso, como disse Oscar Wilde,  “Vício e virtude representam para o artista a matéria-prima da sua arte.” No entanto, a arte não tem o poder de inocentar um criminoso. Muitas vezes o discurso do tipo “jornada do herói” é usado para descrever a trajetória pessoal de artistas consagrados pelo sistema de artes ou pelo público, mesmo que esses artistas tenham cometido crimes contra a vida. O mínimo que podemos fazer é garantir que artistas criminosos não sejam tratados como “heróis” e que as vítimas deles não sejam esquecidas.

(*) zeca azevedo é produtor cultural e colecionador de discos.


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