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25 de novembro de 2017
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11:50

O melhor de Ringo Starr

Por
Sul 21
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O melhor de Ringo Starr
O melhor de Ringo Starr
A coletânea de Ringo Starr é um dos melhores exemplares do tipo “The Very Best of” que podemos encontrar por aí. (Divulgação)

zeca azevedo

Quem sabe dizer qual é a diferença entre discos do tipo Greatest Hits para os do tipo The Best ou The Very Best? Fácil: Greatest Hits são discos que reúnem os maiores sucessos de um músico ou de uma banda; The Very Best são edições que compilam as melhores faixas produzidas por um artista ou grupo. Sabemos que nem sempre as melhores canções de um artista são as que fizeram mais sucesso. Claro que a indústria fonográfica embaralhou esses dois conceitos, tratando-os como se fossem a mesma coisa. Durante muito tempo, foram lançadas compilações sem critérios rigorosos de seleção de repertório, sem arte de capa decente e sem o mínimo de informações acerca da música e de quem a produziu.

Por conta desse permanente descaso das gravadoras, muitas vezes endossado pelos artistas, as coletâneas foram quase sempre vistas como subprodutos fonográficos que tinham como única função catar uns caraminguás dos consumidores com um repertório já editado previamente. Os Greatest Hits e The Very Best da vida foram percebidos pelas gravadoras por muito tempo como tapa-buracos que mantinham o artista em evidência no mercado enquanto ele estava de férias ou em período de baixa produtividade.

Na era do CD que ora se esvai, um selo norte-americano especializado em reedições elevou dramaticamente o padrão de qualidade de coletâneas de artistas e bandas: Rhino. Desde que surgiu nos anos 1980, a Rhino tornou-se referência mundial no que diz respeito à edição de coletâneas por conta do extremo zelo com que tratava cada título que colocava no mercado. Da seleção criteriosa de repertório à recuperação do material sonoro, passando pela pesquisa de fichas técnicas das gravações e pela publicação, nos encartes dos discos, de ensaios bem escritos sobre o artista e seu trabalho, o esforço empreendido pela Rhino na produção de coletâneas de reconhecido valor histórico e estético se tornou um modelo a seguir para outros selos fonográficos. A Rhino soube explorar o que as coletâneas tinham a oferecer de melhor: uma perspectiva única sobre a obra de um músico ou de uma banda.

O foco da indústria fonográfica no que diz respeito a formatos físicos de áudio agora é o LP. Enquanto os relançamentos em LP crescem em volume, as edições em CD diminuem consideravelmente. A maior parte das reedições em vinil é de álbuns originais e não de coletâneas. As coletâneas em formato físico, que já foram um importante item de arrecadação de fundos para as gravadoras, são tratadas hoje com descaso. Na era do streamingque vivemos, a produção de compilações como as da Rhino é uma arte quase perdida.

Muitas coletâneas cumprem exemplarmente o papel de resumir o legado fonográfico de um artista. Uma dessas edições é Photograph: The Very Best of Ringo Starr. Trata-se de um disco que sumariza muito bem a carreira individual do músico que vive o paradoxo de ser percebido por muita gente como uma lenda viva do rock e, ao mesmo tempo, como um cara que venceu na vida porque teve mais “sorte” do que talento. Não é tarefa fácil, visto que a música que o Ringo criou por conta própria (ou com a ajuda de alguns amigos) é sempre soterrada pelo legado gigantesco de sua banda de origem (preciso mesmo dizer de qual banda estou falando aqui?).

Em formato físico, os melhores álbuns de Ringo Starr estão fora de catálogo no Brasil, seja em LP ou em CD. No Spotify podemos encontrar alguns dos títulos mais destacados da discografia de Ringo Starr: Beaucoups of Blues (1970), Goodnight Vienna (1974), Ringo (1973, o melhor disco do ex-beatle, um verdadeiro clássico) e Time Takes Time (o “comeback” do Ringo, de 1992) e Vertical Man (1998). Títulos como Stop and Smell the Roses(1981), Ringo Rama (2003) e Liverpool 8 (2008), também oferecidos pelo Spotify, têm faixas ótimas e merecem consideração (destaco especialmente “R U Ready?”, faixa de Liverpool 8 que trata de forma inteligente e bem-humorada da morte). Os discos de Ringo Starr que o Spotify omite são considerados por muita gente os piores que ele lançou: Ringo’s Rotogravure (1976), Ringo the 4th (1977), Bad Boy (1978) e Old Wave (1983), feitos em um período difícil da vida do baterista, no qual ele estava sob o domínio do alcoolismo. Mesmo esses discos “malditos” têm faixas que podem agradar aos fãs dos Beatles, ainda que não atraiam os ouvintes que não têm um vínculo afetivo forte com o músico e com a banda de Liverpool. O álbum mais recente de Ringo Starr, Give More Love, lançado em CD no Brasil em 2017, é simpático, mas esquecível.

A essa altura do texto, os três leitores regulares da minha coluna aqui no Sul21 devem estar se perguntando: vale a pena perder tempo com as gravações solo de Ringo Starr? Muita gente considera o baterista um cantor incompetente e um compositor incapaz de produzir material transcendente, opiniões das quais discordo. Sim, a discografia de Ringo Starr tem momentos constrangedores, mas também tem gravações excelentes que permanecem desconhecidas por causa do modo desdenhoso com que o músico é tratado por comentaristas de rock, especialmente em relação aos outros ex-beatles (estou falando de George, John e Paul, não de Pete Best e nem de Stuart Sutcliffe). O fato de Ringo ter sido indicado ao Hall da Fama do Rock DEPOIS de seus três colegas de banda e até do empresário Brian Epstein prova que o baterista não tem o respeito que merece.

Há quem insista em dizer que Ringo é um baterista “medíocre”, a despeito de todas as evidências em contrário. Muita gente acha que um grande baterista precisa fazer solos imensos, tocar com grande rapidez e realizar figuras rítmicas complexas no instrumento. Ringo é um músico da escola original do rock’n’roll, que exige submissão à canção e precisão rítmica absoluta. O som que Ringo Starr tirava de sua Ludwig e as viradas inteligentes que fazia nos discos dos Beatles informou bateristas do mundo todo. O padrão rítmico hipnótico de “Ticket to Ride” antecipou o som psicodélico de “Tomorrow Never Knows”. O auge de Ringo como baterista dos Beatles pode ser ouvido no álbum Abbey Road. Além da precisão rítmica admirável e da capacidade de extrair o máximo de significado com o mínimo de gestos musicais, o som da bateria de Ringo nesse álbum clássico é inegavelmente bonito.

Para quem não sabe, durante um curto período de tempo, entre 1973 e 1974, Ringo Starr foi o mais bem sucedido ex-integrante dos Beatles nas paradas de sucessos. “It Don’t Come Easy” ocupou o quarto lugar da parada pop dos EUA em 1971. “Photograph”, composta por George Harrison e Ringo, chegou ao número um da parada pop dos Estados Unidos em 1973, assim como “You’re Sixteen”. Em 1974, “Oh My My” ficou em quinto lugar no hit parade norte-americano e “The No-No Song” emplacou o terceiro lugar. Todas essas faixas foram sucessos mundiais.

Em 1973, Ringo estava em estado de graça: além de ter colocado duas canções em primeiro lugar na parada pop dos EUA e de ter lançado um álbum aclamado por crítica e público, o baterista encontrou tempo para produzir e dirigir o filme Born to Boogie, sobre o amigo Marc Bolan (um dos melhores documentos sobre o auge do glam rock). Considerando isso tudo, causa perplexidade o fato de que muita gente continua a fazer pouco caso do Ringo Starr enquanto artista solo.

Para quem nunca se deu ao trabalho de ouvir com cuidado os discos de Ringo, o primeiro contato com Photograph: The Very Best of Ringo Starrpode provocar surpresa pela qualidade das canções e das gravações. Sim, Ringo tem uma voz de barítono limitada, por vezes monocórdia, mas em faixas como “Photograph” e “King of Broken Hearts”, por exemplo, os produtores (respectivamente, Richard Perry e Mark Hudson) driblam a carência vocal do baterista com recursos inteligentes de gravação (Perry cerca a voz do Ringo com belos vocais de apoio e arranjos elaborados; Hudson usa filtros para tornar a voz do ex-beatle mais melodiosa).

As duas canções mencionadas no parágrafo acima estão entre os pontos altos da coletânea publicada em 2007, que também traz as sensacionais “It Don’t Come Easy”, “Back Off Boogaloo” e o emocionante tributo ao amigo George Harrison, “Never Without You”. O trabalho solo de Ringo Starr sempre se caracterizou pela valorização dos aspectos positivos da vida. Há muito humor e amor nos discos do baterista. É difícil não sorrir e não ficar de bem com a vida quando se ouve canções pra lá de divertidas como “The No-No Song” ou “Hey Baby”. Música serve pra isso também.

A edição em CD de Photograph: The Very Best of Ringo Starr tem encarte informativo e arte de capa elegante. Não existe edição em vinil desse título, infelizmente. O Spotify oferece o disco aos seus usuários, mas a lista de faixas é diferente (e inferior) da lista do CD. Junto com o já citado álbum de 1973, é o disco essencial do Ringo para adicionar a sua discoteca ou coleção virtual de música. A coletânea de Ringo Starr é um dos melhores exemplares do tipo “The Very Best of” que podemos encontrar por aí.

zeca azevedo é produtor cultural e colecionador de discos.


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