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14 de outubro de 2017
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14:31

O CD agoniza, mas não morre

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Sul 21
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O CD agoniza, mas não morre
O CD agoniza, mas não morre
A despeito das supostas deficiências do CD que os fãs dos LPs gostam tanto de divulgar, os disquinhos prateados ainda conservam a identidade do álbum musical enquanto peça artística única, enquanto “declaração” estética, comercial e existencial de um determinado artista ou grupo de pessoas. (SONY CDP-101, por Atreyu/Wikimedia Commons)

zeca azevedo

Quem entrou recentemente em uma loja de discos ou em alguma mega livraria já percebeu que os CDs estão desaparecendo. Lembro que isso aconteceu quando os discos de vinil foram substituídos pelos CDs no final dos anos 1980 e início dos 1990: lojas populares, cheias de LPs, começaram com um balcão acanhado de CDs. Logo em seguida, os outrora onipresentes discos de vinil foram para o balcão específico, enquanto os CDs se refestelavam pelo lugar. A história se repete: o algoz de ontem é a vítima de hoje.

A era de hegemonia do CD, que acabou, foi mais curta que a do vinil. Foram cerca de trinta anos (talvez menos, se pensarmos na chegada tardia dos CDs ao Brasil) de dominação dos biscoitinhos prateados contra mais de cinquenta dos bolachões pretos. Ainda assim, a era do CD trouxe benefícios aos consumidores de música, pois estes puderam readquirir alguns discos favoritos em um formato que prometia maior vida útil e maior fidelidade sonora (isso ainda é motivo de disputa entre fãs de vinil e os que defendem a alta capacidade de definição sonora do som digital). Creio que essa foi a maior vantagem da era do CD: a reedição de discos que estavam há muito tempo fora de catálogo. Acervos inteiros foram recuperados, remasterizados (para o bem e, de vez em quando, para o mal), minuciosamente analisados (as reedições em CD costumavam vir acompanhadas de pequenos ensaios sobre a música e/ou sobre o artista) e relançados novamente no mercado.

Uma das consequências do fim do reinado do CD é a atomização do consumo de música gravada. A despeito das supostas deficiências do CD que os fãs dos LPs gostam tanto de divulgar, os disquinhos prateados ainda conservam a identidade do álbum musical enquanto peça artística única, enquanto “declaração” estética, comercial e existencial de um determinado artista ou grupo de pessoas. Da arte de capa ao encarte e deste à música, a concepção de álbum musical não sofreu mudanças radicais com a chegada dos CDs — apenas o tamanho das capas foi reduzido (essa sempre foi uma das principais críticas aos CDs feitas pelos fãs do vinil). Com a disponibilidade de fonogramas isolados na Internet para audição imediata não há mais razão para adquirir um CD que tem quinze faixas só por causa de duas ou três. O declínio do CD marca a derrocada da era dos álbuns e a reafirmação triunfante dos singles. Nem mesmo a propalada “volta do vinil” (que é um fenômeno muito pequeno comparado ao alcance do streaming musical) é suficiente para recuperar totalmente a popularidade que os álbuns musicais tinham até há pouco.

Abro parêntese para falar sobre a “volta do vinil”. A revalorização de um formato de áudio que parecia ultrapassado deve ser encarada com carinho por todos nós que gostamos de discos e de música, mas isso não significa que não devamos assumir postura crítica em relação ao discurso e as práticas implicadas nessa volta do que não foi. A arenga que defende a superioridade sonora do vinil em relação ao CD ou a qualquer outro formato de áudio é contaminada por sofismas. Como comparar objetivamente o rendimento sonoro dos diferentes formatos de áudio? Esse tipo de comparação é desejável ou necessária? Quando alguém diz que prefere o som dos LPs ao dos CDs ou ao de outros formatos não há o que contestar. No entanto, dizer que um formato de áudio é MELHOR que o outro é afirmação arbitrária que requer provas incontestáveis. O problema epistemológico que se apresenta aqui é: como provar isso? Você pode dizer: peguei edições em LP e em CD do Led Zeppelin IV e comparei. Eu questionarei: comparou em que circunstâncias? Em qual equipamento? Em que espaço físico? Qual a edição em LP e qual a edição em CD do álbum do Led Zeppelin? A saúde do seu sistema auditivo é boa? A quantidade de variáveis é tanta que o resultado final de uma comparação de “qualidade sonora” é mais arbitrário do que objetivo. Há outros elementos a considerar além dos puramente técnicos, como os psicológicos. Dizer a priori que o som de QUALQUER LP é melhor que o som de QUALQUER CD é um bestialógico (assim como dizer o contrário também é). Para provar isso, é preciso comparar o som de todos os LPs do mundo com o de todos os CDs que existem, tarefa impossível de ser realizada. Sim, podemos aplicar o pensamento indutivo aqui, expandindo o alcance de um juízo produzido a partir de um conjunto limitado de experiências, mas é preciso admitir que esse juízo pode ser contestado pelos fatos e, por isso, não pode ser defendido como se fosse absoluto.

O maior problema ocasionado pela “volta do vinil” é o preço absurdo dos LPs e dos compactos. Muitas pessoas compram discos de vinil não pela música, mas porque são “troféus”. A cultura do colecionismo tem essas distorções. Saí de todas as comunidades de colecionadores de discos do Fakebook (sic) porque a maioria dos membros delas era do tipo exibicionista. É um fenômeno próprio da nossa época, a tentativa de definir a própria personalidade ou de fazer propaganda de si mesmo pelo consumo. No caso, valoriza-se o objeto por suas características físicas e mercadológicas e não pelo uso que se pode fazer dele. A “volta do vinil” é uma reação à “desmaterialização” dos suportes de música gravada. Na hora de eleger um objeto, a escolha de muitas pessoas recaiu sobre aquele que é mais “vistoso” e “grande”, ou seja, o critério é também visual. Todo fã de vinil enfatiza esse ponto, o do “tamanho das capas”. Para mim, tamanho nem sempre é documento. Algumas edições em vinil são lindas e merecem ser celebradas — não importa se são “sofisticadas” ou raras —, outras são péssimas e merecem ser criticadas (o mesmo vale para o CD e para outros formatos de áudio). Comerciantes safados, que não fazem distinção entre edições em vinil boas e ruins, tiram proveito da paixão que muitas pessoas têm pelo formato e da ingenuidade de consumidores jovens para praticar preços francamente escandalosos. Assim como existe uma bolha imobiliária no Brasil, existe uma bolha dos discos de vinil. Vejo muitos jovens comprando LPs escangalhados por preços exorbitantes porque introjetaram o discurso da “volta do vinil” espalhado pelos comerciantes matreiros, pela mídia e até pela indústria fonográfica, que vê na abertura de uma nova linha de produtos mais uma forma de ganhar dinheiro (os artistas certamente não são bem remunerados pelas reedições de seus álbuns e compactos em vinil).

Há alguns meses, um amigo virtual postou uma imagem que dizia “Save the vinyl, fuck the CD“. Odeio esse tipo de coisa. Por que um formato deve destruir o outro? Há quem ame os velhos e lindos discos de 78 rotações (que são de goma-laca, não de vinil). Há quem prefira CDs a LPs. Muitas pessoas que conheço dedicaram muito esforço para construir uma bela coleção de música em mp3 ou em FLAC. Prefere LPs? Ótimo. Fitas cassete? Eu as amo muito. A mania de colocar os formatos de áudio em um esquema de competição é uma bobagem porque eles são complementares, todos estão aí para oferecer o máximo de música e de sons para todos nós. É bom lembrar que os LPs não conseguiram recuperar todas os registros que foram lançados em 78 rotações, assim como os CDs não resgataram tudo o que saiu nos discos de doze, dez e sete polegadas de vinil. Os novos LPs não trarão de volta todos os álbuns que foram publicados somente em CD. Todos os formatos de áudio têm algo especial a oferecer e valem a pena. Fecha parêntese.

Na época em que os discos de vinil dominavam o mercado, quem quisesse comprar uma só faixa de um determinado artista levaria para casa um compacto simples ou um compacto duplo (com duas faixas de cada lado do disco de sete polegadas). Com a chegada dos CDs ao mercado, as gravadoras praticamente extinguiram os compactos, obrigando os consumidores a comprar os álbuns, fossem eles coletâneas de hits ou não. No início dos anos 1990, boa parte dos artistas pop se viu obrigada a lançar discos com mais de sessenta minutos de duração porque, segundo as gravadoras, era esse o desejo dos compradores de CDs: adquirir discos “cheios” de música. Nunca houve tanto filler, tantas canções dispensáveis e indiferentes nos discos como nesta época, uma prova de que o formato do produto afeta e muito o resultado artístico.

Ainda falando sobre o início dos anos 1990: neste período, discos como II, dos Boyz II Men, e a trilha do filme O Guarda-Costas, puxado pelos hits de Whitney Houston, venderam cerca de dez milhões de CDs no mercado norte-americano. Jagged Little Pill, de Alanis Morissette, ultrapassou as vinte milhões de cópias só nos EUA. São marcos históricos de consumo de um produto exclusivamente de áudio que, acredito, não vão mais se repetir. A prova está nas paradas de sucessos atuais: os discos mais vendidos dos últimos anos mal chegaram ao milhão de cópias em formato físico. Estamos falando aqui dos principais nomes da música atual, não de artistas menos conhecidos.

O surgimento dos gravadores de CD domésticos nos anos 1990 provocou um grande abalo na indústria fonográfica. As cópias, que tinham fidelidade sonora igual ou muito próxima à do CD original, começaram a se multiplicar. Logo em seguida surgiram os programas online de compartilhamento de arquivos de áudio como o Napster e a pirataria tornou-se incontrolável. É importante lembrar que não teríamos o fenômeno de troca de arquivos musicais pela Internet sem o CD. Enquanto a digitalização de faixas registradas em discos de vinil é demorada e requer um equipamento mais sofisticado, qualquer pessoa com um gravador de CDs acoplado em seu computador pode ripar dezenas de CDs em um só dia. Para o desgosto dos executivos da indústria fonográfica e até mesmo dos artistas, o CD revelou-se mais vulnerável à pirataria do que as mídias de áudio que o antecederam. A troca de arquivos musicais pela Internet abalou a hegemonia do CD no mercado fonográfico. Para combater essa situação, as gravadoras, em parceria com empresas de tecnologia, tentaram impor como padrão comercial a venda online de faixas digitais preparadas para rodar em computadores ou em aparelhos compactos de reprodução sonora como os iPods. Como opção de consumo musical, o streaming substituiu esse modelo e, ao que tudo indica, será o esquema dominante de consumo de registros fonográficos pelos próximos anos.

Serviços de streaming como o Spotify produzem distorções graves no mercado fonográfico. Os valores que os serviços de streaming repassam aos artistas são irrisórios. Mesmo artistas mundialmente famosos recebem pouco em relação ao que recebiam no passado, quando seus discos de catálogo vendiam com regularidade em toda parte. O encolhimento drástico dos royalties recebidos pelos artistas por conta da mudança no modo de comercialização de suas gravações obrigou muitos veteranos a voltar à vida na estrada. Atualmente, são os shows que garantem a sobrevivência dos músicos, inclusive daqueles que se davam ao luxo de ficar muitos anos longe dos palcos porque arrecadavam muito dinheiro com a venda de discos. É por isso que ingressos para shows custam os olhos da cara hoje. Quando encontro em casa ingressos de shows que assisti há vinte ou mesmo há quinze anos, sempre me divirto com o preço impresso neles. Em 1995, compareci ao show de Stevie Wonder e Gilberto Gil no Gigantinho, em Porto Alegre. O preço do ingresso? Trinta reais. Hoje, até o preço dos setores da plateia em que a visualização do palco é mais difícil e a acomodação é menos confortável é elevado.

A era do CD pode ter acabado, mas isso não significa que o formato desapareceu. Empiricamente, percebo que ainda existem colecionadores de discos que compram CDs. Eu, por exemplo, tenho mais CDs em casa do que LPs e continuo a prestigiar o formato. Alguns títulos em CD são mais caros em sites como Discogs e Ebay do que seus correspondentes em LP. Os Estados Unidos e na Inglaterra ainda lançam e relançam muitos títulos em CD. No Japão, esse formato de áudio ainda é consumido em larga escala. Edições brasileiras em CD de álbuns nacionais e internacionais estão cada vez mais escassas e têm tiragens cada vez menores, é fato, mas ainda acontecem. Há pouco, a gravadora Discobertas deu início à série de relançamentos em CD de álbuns históricos de música brasileira do acervo da Som Livre e da RGE que ainda não tinham sido publicados no formato. Cada título da série da Discobertas (que recolocou no mercado dez CDs nessa primeira leva, entre eles o lindo álbum de Guilherme Lamounier lançado em 1978) possui tiragem de quinhentas cópias (os discos também podem ser ouvidos pelo Spotify).

É possível que aconteça uma “volta do CD” tal e qual a “volta do vinil” que ocorre agora. De todo modo, só no futuro saberemos se os CDs ainda vão continuar a ser produzidos, ainda que em pequena escala e para um tipo específico de consumidor (o colecionador).

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zeca azevedo é produtor cultural e colecionador de discos.

 


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