Colunas>zeca azevedo
|
30 de setembro de 2017
|
11:30

Sobre Caetano Veloso

Por
Sul 21
[email protected]
Sobre Caetano Veloso
Sobre Caetano Veloso
Mesmo quem se atreve a discordar de forma intensa de Caetano ou dos seguidores dele precisa reconhecer o talento artístico do filho mais famoso da pequena cidade de Santo Amaro da Purificação e também a imensa contribuição dele para a cultura nacional e internacional e até mesmo para o pensamento que procura desvelar as vocações históricas, as possibilidades de desenvolvimento (ou de subdesenvolvimento) e os mistérios da “ilha Brasil”.

zeca azevedo

Em agosto de 2017, alguns textos foram publicados na imprensa e nas redes sociais por conta do septuagésimo quinto aniversário de Caetano Veloso. De todos os textos a que tive acesso, dois me chamaram atenção: o de Celso Loureiro Chaves veiculado em Zero Hora e o de André Forastieri divulgado pelo blog deste jornalista. Ambos os textos vieram à luz no dia do aniversário de Caetano, sete de agosto, e ambos compartilham a percepção de que o antigo compositor baiano não é — “nestes tempos em que as virtudes privadas têm que se tomar como causa dos malefícios públicos” (palavras extraídas da autobiografia do cantor, o livro Verdade tropical, publicado em 1997) — o artista criativo e relevante que já foi. Falarei sobre isso adiante, mas antes quero registrar algumas opiniões que tenho sobre a história e sobre a obra de Caetano.

“Toda unanimidade é burra” é uma das máximas mais conhecidas e reproduzidas de Nelson Rodrigues e, como toda boa máxima, contém um traço de verdade. A exaltação unânime da obra e da figura de um artista muitas vezes desconsidera aspectos polêmicos ou sombrios da personalidade e da obra dele. Embora não tenha sido e não seja uma unanimidade por conta do seu jeito de corpo próprio e muitas vezes em desacordo com segmentos específicos da sociedade, Caetano tem espaço privilegiadíssimo na cultura brasileira há mais de cinco décadas e tem também um grande, influente e fidelíssimo conjunto de fãs. Mesmo quem se atreve a discordar de forma intensa de Caetano ou dos seguidores dele precisa reconhecer o talento artístico do filho mais famoso da pequena cidade de Santo Amaro da Purificação e também a imensa contribuição dele para a cultura nacional e internacional e até mesmo para o pensamento que procura desvelar as vocações históricas, as possibilidades de desenvolvimento (ou de subdesenvolvimento) e os mistérios da “ilha Brasil” (termo que Caetano usa para se referir ao país em trecho de Verdade tropical). O compromisso com um projeto de nação é marca da obra e da vida de Caetano e de muitos artistas populares da geração dele.

Algumas das melhores mentes da geração de Caetano Veloso decidiram investir na cultura de massa, especialmente na música popular, como instrumento liberador de consciências e como veículo privilegiado de projetos existenciais e políticos, mesmo sabendo que teriam que enfrentar o esquema burocrático-mercantilista que organiza e distribui objetos artísticos como produtos industriais. Chico Buarque, Caetano Veloso e outros cancionistas nascidos nos anos 1940 que mudaram, com suas obras e seus posicionamentos, o curso da música e da vida dos brasileiros, podiam ter escolhido outros caminhos no mundo, podiam ter sido escritores, professores universitários, arquitetos ou cientistas, mas, por adesão a um só tempo consciente e inconsciente, talvez fomentada pelo fato de que cresceram sob a influência do rádio como veículo dominante de mídia, eles preferiram fazer música popular para expressar os próprios anseios e temores e também para dar voz à sua geração. As melhores mentes jovens de hoje buscam seu lugar no mundo no campo do desenvolvimento da tecnologia informacional, mas este já é outro assunto.

Na autobiografia Verdade tropical Caetano diz que a música brasileira “é a mais eficiente arma de afirmação da língua portuguesa no mundo, tantos insuspeitados amantes esta tem conquistado por meio da magia sonora da palavra cantada à moda brasileira”. A escolha da palavra “arma” por Caetano não é gratuita: o desenvolvimento dos meios de comunicação de massa transnacionais criou um ambiente de guerra cultural entre países, no qual as nações mais poderosas conquistam territórios e dobram vontades individuais em todo o mundo sem precisar deslocar forças militares. No front da comunicação de massas, diz Caetano, em observação cuja correção pode ser observada empiricamente, o Brasil se destaca no cenário internacional por meio de sua música popular, que perde em termos de penetração e de influência somente para a música produzida nos Estados Unidos, na Inglaterra e nos países que falam espanhol.

A partir dos anos 1940, a música popular brasileira começou a ganhar destaque internacional pelo sucesso de Carmen Miranda e de algumas composições de Ary Barroso nos Estados Unidos. Na segunda metade dos anos 1950 surgiu a bossa nova, uma proposta de fusão do samba com o jazz e com o pop tradicional norte-americano que se tornou a expressão musical mais bem acabada do projeto desenvolvimentista do Presidente Juscelino Kubitschek, cujo mandado se estendeu de 1956 a 1961. Músicos norte-americanos como Charlie Byrd e Stan Getz abraçaram entusiasticamente a bossa nova, que se espargiu como vírus pelos Estados Unidos e pelo mundo na década de sessenta.

O (fabricado) otimismo político e econômico que possibilitou o surgimento e a expansão da bossa nova no Brasil dissipou-se depois do mandato de Juscelino. Intensos conflitos internos, derivados da brutal concentração de renda por uma minoria, da consequente pobreza a que estava (ainda está) submetida a maioria da população brasileira, da expansão veloz das empresas e da cultura norte-americanas no país e da instabilidade das instituições democráticas, afundaram os barquinhos e chutaram os banquinhos da bossa nova em nome de um cancioneiro mais engajado, mais próximo do sofrimento da maior parte do nosso povo. O golpe que instaurou a ditadura civil-militar em 1964 instou muitos músicos identificados com a democracia e com a esquerda a fazerem canções “de protesto”. Ao mesmo tempo, o pop rock brasileiro, por meio da jovem guarda, tornava-se esteio dos veículos de comunicação populares da época, deixando os nacionalistas preocupados com a crescente americanização da música nacional. Neste ambiente cultural e político cindido surgiu Caetano Veloso.

No início da década de 1960, a cidade de Salvador abrigou um grupo único de artistas e de intelectuais que logo desceriam ao “sul maravilha” para fazer história. Faziam parte dessa cena nomes como Gilberto Gil, Tom Zé, Glauber Rocha, Helena Ignez, Gal Costa e Antonio Pitanga.  Em 1963, Caetano foi ao Rio de Janeiro para acompanhar a irmã Maria Bethânia, que havia sido convidada para substituir Nara Leão no impactante e bem-sucedido espetáculo teatral Opinião. Com sua presença de palco poderosa e sua voz única, Bethânia fez sucesso rapidamente. Caetano aclimatou-se ao Rio de Janeiro e ali deu prosseguimento à carreira de cantor e compositor que começara na Bahia.

A influência da bossa nova marcou as primeiras gravações de Caetano, mas isso logo mudaria. Parcialmente insatisfeito com as correntes dominantes da cultura daquele tempo, Gilberto Gil, que abandonara um emprego de executivo para dedicar-se totalmente à vida artística, deu início a uma ação estética que tinha como propósito entrar e sair de (quase) todas as estruturas da música popular brasileira para questioná-la e modernizá-la. Caetano abraçou entusiasticamente a proposta e, com Gil, tornou-se a figura de proa da intervenção na cena artística brasileira rotulada por intelectuais e pela imprensa como Tropicália ou Tropicalismo.

Há muitas definições de Tropicalismo espalhadas em livros. Optei pela que está em Polifonia tropical — experimentalismo e engajamento na música popular (Brasil e Cuba, 1967-1972), de Mariana Martins Villaça, estudo publicado em 2004 pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Diz a autora: “Quando hoje falamos em Tropicalismo, genericamente, estamos nos referindo ao nome atribuído a um conjunto de manifestações que ocorreram em diferentes meios, dentre eles o musical, que teve especial destaque. São considerados paradigmas do Tropicalismo as seguintes obras: no teatro, a ousada montagem da peça O Rei da Vela do Grupo Oficina; nas artes plásticas, as obras de Hélio Oiticica e, em menor escala, as de Lígia Clark e Rubens Gerchmann; no cinema, o filme Terra em Transe, de Glauber Rocha, considerado geralmente a matriz estética do movimento e, finalmente, no meio musical, a produção coletiva do grupo composto por Gilberto Gil, Caetano Veloso, Tom Zé, Capinam, Torquato Neto, Gal Costa, Nara Leão e o conjunto Os Mutantes — a saber, o disco Tropicália ou Panis et Circensis, de 1968 e também os discos gravados individualmente por Gil, Caetano, Gal, Nara Leão, Tom Zé e Os Mutantes entre 1967 e 1970… O termo (Tropicália) foi usado por Oiticica na tentativa de traduzir, através de uma obra-ambiência, contradições da sociedade e da cultura brasileiras. O cineasta Luís Carlos Barreto, ao ver afinidades entre uma canção recém-criada por Caetano Veloso e a instalação de Oiticica, sugeriu o mesmo nome ao músico baiano”.

A definição de Tropicalismo que reproduzi acima é satisfatória não só para os propósitos deste artigo, mas também em geral, mas eu gostaria de fazer uma ressalva. Nara Leão participou efetivamente de Tropicália ou Panis et Circensis e lançou um (magnífico) LP em 1968 que pode ser tranquilamente enquadrado no “movimento”, mas os álbuns seguintes da cantora, publicados em 1969 e 1971, afastaram-se do Tropicalismo. Logo, a adesão de Nara Leão ao Tropicalismo foi pontual. Gostaria também de mencionar alguns nomes que contribuíram enormemente para o desenvolvimento da proposta tropicalista, mas que não são citados no trecho que extraí do livro de Mariana Martins Villaça: os de Rogério Duprat, Júlio Medaglia e Damiano Cozzella, maestros comprometidos com a renovação da linguagem musical tanto no campo erudito quanto no popular.

Resumindo de modo grosseiro a estética tropicalista, digo que ela se caracteriza pela exposição ao mesmo tempo crítica e embevecida das contradições do Brasil. Escrita por Gil e Torquato Neto, a canção “Geléia Geral” sintetiza essas contradições no verso “Formiplac e céu de anil”, que justapõe produto industrial e natureza, urbanidade e ruralidade, artificialidade e originalidade. O processo de industrialização nacional iniciado na primeira metade do século vinte e intensificado durante o governo de JK (que incentivou a entrada de empresas multinacionais no país para a fabricação de bens de consumo) acentuou o conflito entre o Brasil “desenvolvido”, que procurava replicar os esquemas econômicos, políticos e culturais dos países mais ricos e poderosos, e o Brasil subdesenvolvido, marcado pela miséria e pelo atraso tecnológico. Essa incongruência foi a pedra de toque tropicalista.

Antes de tudo, o Tropicalismo foi uma tentativa de fazer um upgrade na cultura nacional como aquele promovido pela Semana de 22. O Tropicalismo foi um gesto juscelinista do tipo “50 anos em 5”. Caetano e Gil tinham como objetivo colocar a produção da cultura industrial brasileira em sintonia com a dos países capitalistas desenvolvidos por meio de procedimentos “antropofágicos” de apropriação e de ressignificação das informações artísticas recebidas pelos meios de comunicação de massa. No artigo “Sem Patente”, escrito em 1992 e incluído na compilação O mundo não é chato publicada pela Companhia das Letras, Caetano afirma: “Tropicalismo foi o apelido que ganhou o resultado de nossa ambição, em 1967, de mudar a atitude em relação à estética, à política e ao mercado de música popular no Brasil. Queríamos nos libertar da mesquinharia e dos preconceitos”. Em outras palavras, Caetano, Gil e os tropicalistas queriam repaginar a música popular nacional, incluindo nessa intervenção a contaminação pelo pop internacional. Por essa razão, a compreensão e a celebração do Tropicalismo por intelectuais e artistas norte-americanos e europeus foi mais fácil do que a assimilação de outros momentos ou gêneros da música popular brasileira por esses mesmos agentes culturais.

O Tropicalismo não foi revolucionário, foi reformista. O Tropicalismo não promoveu o apocalipse artístico, a ruptura com as maquinações da indústria cultural, mas sim a integração entre arte e comércio. O Tropicalismo não foi socialista ou comunista, foi capitalista. Por conta disso, sofreu críticas pesadas da esquerda. Em maio de 1968, enquanto as ruas de Paris eram tomadas por jovens que protestavam contra o establishment e que partiam para o confronto com as forças policiais, o diretor de teatro Augusto Boal, responsável pela criação do Teatro do Oprimido, redigiu e divulgou um manifesto antitropicalista no qual afirmava que o Tropicalismo atacava somente as aparências da sociedade, agredindo “o predicado e não o sujeito”. Diz o manifesto de Boal: “O Tropicalismo é homeopático — pretende destruir a cafonice endossando a cafonice, pretende criticar Chacrinha participando de seus programas de auditório… O Tropicalismo é inarticulado – justamente porque ataca as aparências e não a essência da sociedade, e, justamente porque essas aparências são efêmeras e transitórias, o Tropicalismo não se consegue coordenar em nenhum sistema – apenas xinga a cor do camaleão”.

O desacordo entre a proposta estética encabeçada por Caetano e Gil e a visão política e cultural da esquerda tomou a forma de conflito aberto no dia 15 de setembro de 1968, no palco da terceira edição do Festival Internacional da Canção. Ali, em um misto de desabafo e de happening artístico, Caetano reagiu furiosamente aos jovens que vaiavam a composição “É Proibido Proibir” usando este slogan da juventude rebelde de Paris para criticar o dogmatismo esquerdista. “Vocês estão querendo policiar a música brasileira”, disse Caetano aos nacionalistas que reprovavam a influência do pop norte-americano e inglês na música popular nacional. Exaltado, Caetano chegou a comparar a patrulha que sofria dos jovens de esquerda com o espancamento dos atores da peça Roda Viva por integrantes do Comando de Caça aos Comunistas, ocorrido em julho de 1968: “Mas que juventude é essa? Que juventude é essa? Vocês são iguais sabem a quem? São iguais sabem a quem? Tem som no microfone? Vocês são iguais sabem a quem? Àqueles que foram na Roda Viva e espancaram os atores! Vocês não diferem em nada deles, vocês não diferem em nada!”.

Apesar do “desrespeito (dos tropicalistas) aos princípios do projeto estético das esquerdas, dito nacional-popular” (palavras retiradas do livro Verdade tropical), a ditadura civil-militar viu subversão na ação artística de Caetano e de Gil e prendeu os dois cantores e compositores baianos, ação que demonstrou mais uma vez a ignorância e a truculência das forças de exceção que comandavam o país naquele momento. Caetano faz um relato detalhado dos meses em que ficou na prisão em Verdade tropical. Em 1969, Caetano e Gil foram obrigados pela ditadura a sair do país. Os dois escolheram ficar em Londres. O primeiro álbum que Caetano gravou no exílio londrino, chamado simplesmente Caetano Veloso, foi lançado em 1971 e registra o artista em momento de grande fragilidade emocional. Afastado à força do país em que nasceu e que amava “a ponto de quase não ser capaz de viver longe dele”, Caetano caiu em depressão. A crítica especializada e os fãs costumam dizer que Transa, o segundo álbum que Caetano produziu no exílio, é superior ao LP de 1971 (tem quem diga que Transa é o melhor item de toda a discografia do baiano), mas a tristeza profunda do cantor e compositor impressa nos sulcos de Caetano Veloso é mais do que comovente, é reveladora. Raras vezes Caetano ficou tão exposto emocionalmente em disco. A gravação de “Asa Branca” que fecha o LP de 1971 é tão carregada de tristeza e de dor que fez Luiz Gonzaga chorar quando a ouviu pela primeira vez. “Asa Branca” é momento sublime da discografia de Caetano. (Sobre o LP de 1971, Caetano diz em Verdade tropical: “Até hoje esse disco me desagrada por lembrar-me demais minha depressão e minhas limitações pessoais”.)

Em 1972, depois de passarem dois anos no exílio, Caetano e Gil voltaram para casa. Encontraram o país ainda sob a sola suja da bota da ditadura, mas decidiram não se intimidar por conta disso. Caetano abraçou a androginia e o experimentalismo musical logo após a volta ao Brasil. Araçá Azul, o primeiro LP que Caetano lançou depois do exílio, é uma declaração estética radical que revela o desejo do cantor e compositor de romper momentaneamente com as convenções musicais e com as injunções de mercado. É fato notório que Araçá Azul foi um fracasso comercial: muitos consumidores devolveram o LP às lojas depois de ouvi-lo. Daí por diante, Caetano controlou a pulsão experimentalista e passou a fazer música mais acessível. Na década de setenta, enquanto Maria Bethânia transformava-se na cantora romântica que vendia milhões de discos, Gil abraçava o pop e fazia sucesso nas rádios e Gal Costa abandonava a imagem hippie, refinava seu canto e tornava-se uma diva popular, Caetano, livre do programa estético do tropicalismo, produziu canções muito ligadas aos seus afetos, às suas experiências e às suas obsessões pessoais e com sonoridade despojada. Nesse período, escreveu uma quantidade impressionante de canções antológicas que embalaram a vida de milhões de brasileiros, ainda que o compositor não fosse um grande vendedor de discos como a irmã Bethânia ou o “irmão” Gil. A antropofagia tropicalista, marcada pela justaposição de estilos ou de ideias contraditórias em uma mesma canção, deu lugar a uma postura musical mais convencional, mas altamente inclusiva. Depois da fase tropicalista, Caetano dedicou-se ao exercício de inúmeros gêneros musicais, transitando livremente por eles, adaptando suas composições aos mais diferentes ritmos: samba, bossa nova, reggae, tango, bolero, rock, axé, sertanejo, disco music, música romântica popular, hip hop e outros.

A partir dos anos 1980, Caetano passou a lançar gravações mais polidas e a emplacar sucessos populares. O primeiro LP de Caetano a vender mais de cem mil cópias e a ganhar disco de ouro (por causa do sucesso da canção “Lua e Estrela”, escrita por Vinícius Cantuária) foi Outras Palavras, de 1981. Sobre Outras Palavras e Luar (A Gente Precisa Ver o Luar), LP de Gilberto Gil lançado  também em 1981, o jornal Correio do Povo publicou à época um texto que criticava a sonoridade pop e o consequente apelo comercial dos dois álbuns. A adesão a padrões sonoros do pop internacional por Caetano e Gil não só não estava em desacordo com as diretrizes tropicalistas como foi consequência natural delas. Mesmo fazendo discos mais acessíveis, Caetano não virou um campeão de vendas consistente, pois permaneceu desafiando pontualmente a acomodação estética e existencial do brasileiro “médio”, mas continuou a escrever sucessos para outros cantores e a lotar casas de espetáculos durante suas turnês. E mais, a incomparável habilidade com as palavras (no campo da música popular), a capacidade de manter-se sintonizado com as novas tendências, a aptidão para analisar e interpretar as conjunturas micro e macroestruturais de forma rápida e eficiente e a disposição permanente para dialogar com diferentes correntes culturais e políticas permitiram a Caetano que ele virasse um totem.

Lançado em 1986, o disco ao vivo Totalmente Demais é um divisor de águas na carreira de Caetano porque vendeu mais de duzentas e cinquenta mil cópias. A partir do êxito desse álbum, Caetano dedicou-se a projetos fonográficos especiais com mais regularidade e passou a lançar menos trabalhos autorais. Aqui voltamos ao topo deste artigo, onde citei os textos de Celso Loureiro Chaves e de André Forastieri sobre a decadência (ou perda de relevância) artística do compositor baiano. O artigo “Caetano 75” de Celso Loureiro Chaves diz: “O meu Caetano Veloso é o que vai da Tropicália, em 1968, até Circuladô, de 1991. Depois e não sei por quê, a partir do Fina Estampa, de 1994, fui perdendo o interesse. Como no caso de amigos que se deixa de encontrar a todo momento numa esquina da vida, perdi o contato e segui o meu caminho, sem que Caetano continuasse comigo com a centralidade que teve para mim durante uns bons 20 anos”. A perda de interesse na produção musical de Caetano por Celso Loureiro Chaves coincide com o período em que os álbuns autorais do baiano se tornaram mais escassos, enquanto projetos de intérprete e discos ao vivo foram lançados em profusão. Façamos as contas: de 1991, ano do lançamento de Circuladô, até 2017, Caetano publicou somente oito álbuns de estúdio com maioria de canções inéditas (dois deles têm autoria dividida com outros artistas: Tropicália 2, de 1993, é fruto de parceria com Gil e Eu Não Peço Desculpa, de 2002, foi feito com Jorge Mautner). Nos últimos vinte e seis anos, Caetano lançou discos autorais a cada três anos. Em compensação, o artista publicou no mesmo período dois álbuns de covers (Fina Estampa, de 1994, e A Foreign Sound, de 2004), treze discos ao vivo (cinco deles feitos com outros cantores: Roberto Carlos, Maria Gadú, David Byrne, Ivete Sangalo e Gilberto Gil) e algumas trilhas sonoras. Aí está, quero crer, a principal razão por que Celso Loureiro Chaves perdeu o interesse pela produção musical de Caetano feita depois de 1991.

Enquanto Celso Loureiro Chaves foi elegante ao apontar o declínio criativo de Caetano Veloso no texto que escreveu para o jornal Zero Hora, o jornalista André Forastieri sentiu-se à vontade para soltar as patas no compositor baiano pela mesma razão. A provocação de Forastieri começa pelo título do artigo que publicou em seu blog: “Quem ainda se importa com Caetano Veloso?”. Nas primeiras linhas do texto, Forastieri ataca: “Caetano Veloso completou 75 anos. Quando fez 70, a imprensa empinou ensaiadinha o rabicó, coreografia previsível, estilo abertura das Olimpíadas. Submissão abjeta à autoridade e ao consenso que compensa”. De fato, a despeito de suas históricas e longas brigas com a imprensa, Caetano Veloso dispõe há muito de uma ativa e azeitada máquina de propaganda que outros artistas da música brasileira não tiveram, não têm e não terão nunca. Os tropicalistas sempre foram hábeis na manipulação da mídia. Sem pensarmos bem, “manipulação da mídia” sempre foi um dos objetivos do projeto tropicalista. Há muitos anos circulam boatos de que Caetano foi responsável pela demissão de alguns jornalistas que publicaram informações que desagradaram ao compositor. Ainda que sejam apenas boatos, eles mostram que a relação de Caetano com a imprensa pode ser agressiva, ainda que essa agressividade seja pontual. André Forastieri alinha-se com os críticos mais agressivos de Caetano ao encerrar o primeiro parágrafo do seu texto com a seguinte afirmação: “Caetano não importa há mais de três décadas”.

Forastieri reconhece que Caetano é uma figura poderosa, que tem ascendência sobre muitas pessoas, e acredita que a influência que ele exerce é “nefasta”. O jornalista também dirige críticas aos fãs de Caetano, que, segundo ele, não são capazes de perceber a decadência criativa do ídolo. “O problema não é Caetano, é gente como vocês, que continuam babando por ele, batendo palmas sem pensar, quando ele não faz um disco que preste há muitos anos… Caetano tem vários discos com pelo menos três canções de sua autoria inquestionavelmente decentes. São todos dos anos 70. Não é nem de longe suficiente para beatificação”. Embora ache a opinião de Forastieri totalmente arbitrária, sem nenhum outro fundamento que não o gosto pessoal do jornalista, reconheço que os trabalhos autorais mais recentes de Caetano não penetraram no inconsciente coletivo como os que ele lançou dos anos 1960 ao início dos 1990. Exceto por Noites do Norte, de 2000, disco subestimado no qual Caetano lança mão de texto de Joaquim Nabuco para falar da relação da escravidão com a permanente desigualdade social brasileira, os álbuns autorais do cantor e compositor lançados depois de 1991 não fulguram ao som do mar e à luz do céu profundo da nação. Não são discos ruins per se, alguns deles ainda conseguem “violentar o gosto contemporâneo” e revelam que Caetano continua a depurar sua arte, mas apesar disso não resistem à comparação, em termos de impacto social e cultural, com os discos publicados até o início dos anos 1990. A culpa, creio, é do próprio Caetano, que reduziu consideravelmente sua produção autoral nas últimas décadas, como já foi indicado aqui.

“Caetano sobrevive da admiração acrítica de fãs bestas, da condescendência da imprensa e principalmente de suas relações… Caetano e os tropicalistas, e seus discípulos e apaniguados, são sempre Contracultura a favor. Estão perfeitamente integrados à veia principal da cultura e da política brasileiras,  fundamentadas na busca de benesses e na proximidade dos cofres públicos”, diz Forastieri. Enquanto Chico Buarque, artista identificado com a esquerda, é atacado nas redes sociais e até nas ruas pelos cães raivosos da direita que ousam, sem sucesso, diminuir a importância da obra e da presença dele no cenário nacional (e responde aos ataques com um álbum magnífico, Caravanas), Caetano balança na corda bamba de sombrinha, declarando-se contra a censura aqui, mas apoiando ali o movimento Procure Saber, que tinha como propósito impedir a publicação de biografias não autorizadas no país (o primeiro livro deste tipo que aborda a vida do compositor, Caetano: uma biografia, escrito por Carlos Eduardo Drummond e Marcio Nolasco, entrega sua “submissão abjeta à autoridade e ao consenso que compensa” no subtítulo: “A vida de Caetano Veloso, o mais doce bárbaro dos trópicos”).

Fiel à postura de “pajé doce” que lhe atribuiu Paulo Francis, Caetano tem recebido em sua casa figuras de destaque da cena política atual para encontrar um caminho que se sobreponha ao intenso embate ideológico entre esquerda e direita que polariza o país. Ao convidar o procurador Deltan Dallagnol (que, ironicamente, nasceu em uma cidade chamada Pato Branco), símbolo do conservadorismo e da perseguição aos petistas empreendida pelo judiciário, em especial a Lula, para uma conversa íntima, Caetano mostrou uma vez mais que não está alinhado com a esquerda “tradicional”. O compositor baiano continua a buscar a “superação mitopoética dos antagonismos na forma de uma urgente presentificação” (palavras extraídas dos livro Folha explica Caetano Veloso, de Guilherme Wisnik, publicado em 2005) que marcou sua obra e sua vida. Nesse sentido, ele está de acordo com o que disse na letra de “Fora da Ordem”, canção de 1991: “Eu não espero pelo dia em que todos os homens concordem/Apenas sei de diversas harmonias bonitas possíveis sem juízo final”.

Do alto de sua experiência e de sua posição social privilegiada, Caetano pode acreditar que “harmonias bonitas” entre pessoas em conflito são possíveis, mas os fatos recentes ocorridos no Brasil e no mundo parecem validar a postura dos apocalípticos e não a dos integrados. De todo modo, Caetano continua devotado ao seu compromisso original com o Brasil, ou melhor, com o seu projeto de nação. O cantor e compositor ainda está na ativa e, por isso, pode voltar a surpreender, lançando um conjunto novo de canções que vá além da rotina que ele estabeleceu para si mesmo há algumas décadas. Diz a letra de “Branquinha”, canção que integra o álbum Estrangeiro, de 1989, e que replica a mensagem de “Alegria, Alegria”, de 1967: “Eu sou apenas um velho baiano/Um fulano, um Caetano, um mano qualquer/Vou contra a via, canto contra a melodia/Nado contra a maré”. Espero que Caetano vá mesmo contra as vias, inclusive contra aquelas que ele mesmo construiu.

***

zeca azevedo é produtor cultural e colecionador de discos.


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora