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16 de setembro de 2017
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14:00

Kraftwerk: um projeto estético de 360 graus

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Sul 21
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Kraftwerk: um projeto estético de 360 graus
Kraftwerk: um projeto estético de 360 graus
Os mais razoáveis (ou menos pessimistas) dirão que o desenvolvimento tecnológico tem aspectos positivos também. É nesse grupo que se encaixam os proponentes da música eletrônica popular, entre eles os integrantes da instituição artística que conhecemos pelo nome de Kraftwerk.

zeca azevedo

Alguns pesquisadores relacionam o surgimento das distopias literárias com o primeiro período da Revolução Industrial, no qual as pessoas, submetidas ao poder das máquinas no seu ambiente profissional, tinham condições de trabalho precaríssimas, salários indignos, jornadas abusivas e nenhum tipo de defesa jurídica ou política. É um ambiente de terror que o neoliberalismo traz de volta à realidade no Brasil de hoje, com as ações do governo golpista que acabam com direitos trabalhistas conquistados com derramamento de muito sangue. O mundo dos privilégios de uma classe social sobre as demais é essencialmente corrupto e injusto e, por isso, traz em si o germe que o destruirá. Os otimistas acreditam que a destruição desse sistema social e econômico será sucedida pela instituição de um sistema mais justo, mas eu, como bom apocalíptico, prefiro endossar os mitos de fim de mundo que existem em todos os agrupamentos humanos conhecidos pela História. A mesma realidade brutal que inspirou as distopias de Aldous Huxley, George Orwell e de outros autores empurrará a todos nós para o fundo do abismo do sofrimento eterno. Isso não significa que devemos aceitar a tirania como um mero fato da vida: devemos lutar contra ela até o fim. Temos que lutar em favor da vida, mesmo que tudo indique que a luta é vã e que o final não será favorável a ninguém.

Histórias de terror que se tornaram hegemônicas no século vinte também tiveram origem no período de implantação da Revolução Industrial na Inglaterra e na Europa. Bram Stoker escreveu Drácula neste período e é bem possível que o vampiro seja uma representação do burguês que sugava até a última gota de sangue e de suor dos trabalhadores que explorava (e ainda explora). O certo é que a utilização de máquinas a vapor e elétricas na produção de bens e de serviços gerou um cenário de pesadelo marcado por mutilações, mortes, guerras mundiais, loucura em grande escala, destruição irrefletida de recursos naturais e processos sociais opressivos que buscam a anulação da individualidade e do pensamento livre.

O fascínio pelas máquinas e a reflexão sobre o impacto delas na existência de todos os seres vivos da Terra gerou a cultura da ficção científica, que, assim como a Revolução Industrial, floresceu no século dezenove. Frankenstein, de Mary Shelley, foi publicado em 1818 e ainda é obra exemplar de ficção científica distópica, pois denuncia os horrores que a pesquisa científica descolada de valores morais e éticos pode produzir.

A tecnologia tem papel central no processo de destruição de sonhos de liberdade e de coisas belas que experimentamos no século vinte e hoje. Há quem acredite que a crescente sofisticação das máquinas tem como contrapartida a melhoria da experiência humana, incluindo aí a conquista de algum grau de liberdade individual, mas o século passado e o atual estão crivados de fatos que provam que a visão positivista de progresso tecnológico é um mito que serve a interesses sociais e econômicos bem específicos. Os mais razoáveis (ou menos pessimistas) dirão que o desenvolvimento tecnológico tem aspectos positivos também. É nesse grupo que se encaixam os proponentes da música eletrônica popular, entre eles os integrantes da instituição artística que conhecemos pelo nome de Kraftwerk.

Em 1966, foi publicado o LP The In Sound from Way Out! — Electronic Pop Music of the Future created by Perrey and Kingsley, um dos primeiros discos pop a utilizar instrumentos eletrônicos (acompanhados de percussão acústica). O texto de contracapa do LP realizado pelo francês Jean-Jacques Perrey e pelo alemão Gershon Kingsley é uma peça de otimismo histórico. Diz o texto (tradução livre): “Aqui temos uma dúzia de gravações pop eletrônicas. Elas são a eletrizante e alegre música da era que se aproxima, a música para dançar plugada que em breve será a moda. Aqui é apresentado o “Au Go Go” eletrônico que poderá ser ouvido em breve em jukeboxes de estações interplanetárias, nas quais as naves espaciais pararão para reabastecer… O futuro está ao nosso alcance e é divertido”. A música leve que Perrey e Kingsley produziram no referido LP é manifestação sonora da visão otimista do futuro, em especial da utilização positiva da tecnologia, que era defendida por muitos no século XX.

Enquanto Perrey e Kingsley e outros pioneiros criavam uma linguagem específica para a música popular eletrônica, grupos de rock passaram a utilizar teclados eletrônicos em suas gravações, em especial o Moog. A era do rock, que deixou para trás a simplicidade formal e temática do rock’n’roll, caracterizou-se pela incorporação de novos instrumentos, novas sonoridades, novas referências culturais e políticas ao gênero. O emprego de teclados eletrônicos pelos artistas de rock abriu novas possibilidades de expressão, aproveitadas pelo rock psicodélico e pelo rock progressivo.

Foi na fervente cena do rock experimental alemão do final dos anos sessenta e do início dos anos setenta que surgiu o Kraftwerk, mais precisamente em 1969, na cidade de Düsseldorf, localizada na Alemanha Ocidental. O primeiro álbum do grupo, chamado simplesmente Kraftwerk, foi lançado em 1970 e contou com a participação da dupla de músicos Ralf Hütter e Florian Schneider e de dois bateristas. Nos álbuns seguintes, Kraftwerk 2, de 1972, Ralf und Florian, de 1973, e Autobahn, de 1974, a presença de instrumentos musicais “convencionais” foi perdendo espaço para os eletrônicos. A faixa-título de Autobahn, a primeira do grupo a conter letra (que fala das estradas asfaltadas da Alemanha e do poder do automóvel), tornou-se o primeiro sucesso internacional do grupo depois que teve sua duração reduzida para caber em um compacto. A capa da edição alemã de Autobahn registra, por meio de um desenho, o ponto de vista de um motorista que dirige seu automóvel em uma rodovia, mostrando a máquina a serviço do homem e o homem dentro da máquina, engolido por ela.

“Nós afirmamos que a magnificência do mundo se enriqueceu de uma beleza nova: a beleza da velocidade. Um automóvel de corrida com o seu cofre enfeitado com tubos grossos, semelhantes a serpentes de hálito explosivo… um automóvel rugidor, que parece correr sobre a metralha, é mais bonito que a Vitória de Samotrácia”, diz o Manifesto Futurista redigido pelo escritor italiano Fillipo Marinetti e publicado pelo jornal francês Le Figaro em 1909. Dez anos depois de produzir o Manifesto Futurista, Marinetti filiou-se ao Partido Fascista. O Manifesto antecipou a guinada à extrema direita de Marinetti: “Queremos glorificar a guerra – única higiene do mundo –, o militarismo, o patriotismo, o gesto destruidor dos libertários, as belas ideias pelas quais se morre e o desprezo pela mulher”.

Defensores das máquinas sempre estiveram perigosamente próximos do fascismo.  Ao publicar Autobahn, o Kraftwerk foi acusado de exaltar obras nazistas como as rodovias alemãs e o Fusca. A história e a imagem pública do Kraftwerk alimentaram as suspeitas de que os membros do grupo tinham alguma simpatia pelo nazismo. Organisation é o nome da banda a que Ralf Hütter e Florian Schneider pertenceram antes de fundar o Kraftwerk e é também o nome do grupo nazista de engenharia civil e militar que expandiu enormemente a malha rodoviária alemã, obra que facilitou as ações militares agressivas de Hitler contra países vizinhos. A impessoalidade da imagem dos integrantes do Kraftwerk, que usavam (ainda usam) cabelos curtíssimos e trajes formais que não permitiam a identificação imediata dos membros do grupo, também contribuiu para as imputações de simpatias nazistas. Tais acusações, que ainda persistem, embora com menos frequência, vieram do medo e da culpa que os alemães sentiam (ainda sentem) pelo horror que infligiram ao mundo durante o período nazista. A geração de Ralf Hütter e Florian Schneider, que nasceu pouco depois do fim da Segunda Guerra Mundial, decidiu enfrentar a paralisia cultural do país e buscar sua própria identidade, nem que, para isso, tivesse que lidar com temas e fatos desconfortáveis para aqueles que não só viveram sob o jugo nazista, mas apoiaram as ações genocidas de Hitler. O propósito dos jovens alemães da época era deixar para trás o passado vergonhoso e olhar diretamente para o futuro em busca de novas possibilidades existenciais e artísticas.

Em uma análise superficial, a música mecânica do Kraftwerk parece celebrar um mundo de individualidades sufocadas e o fetichismo pela tecnologia. Ouvidos com mais cuidado, os discos do Kraftwerk revelam a relação ambígua do grupo com a aplicação da tecnologia no campo da política, da economia e das relações humanas. Enquanto enaltecem os benefícios que computadores e outros aparelhos eletrônicos podem proporcionar aos indivíduos, Ralf Hütter e Florian Schneider, ideólogos do Kraftwerk, não se eximem de mostrar também alguns aspectos negativos dessa intromissão tecnológica nas vidas de todos nós. A faixa “Autobahn” é um exemplo disso, pois revela ao mesmo tempo o conforto e o tédio do motorista que dirige pela autoestrada limpa e segura.

Mais do que um grupo musical, o Kraftwerk é um coletivo artístico que desenvolveu um projeto estético de 360 graus.

A partir de 1975, ano de lançamento do álbum Radioactivity, Ralf e Florian assumiram de vez o controle das gravações do grupo, despachando o produtor Conny Plank, que havia trabalhado com eles nos álbuns anteriores (e ajudado os dois a depurar sua proposta estética). Ralf e Florian passaram também a desenvolver os próprios instrumentos eletrônicos, entre eles sintetizadores e baterias, fazendo das gravações do Kraftwerk um manancial de novos timbres sintéticos. A música do grupo encontrou sua forma (ou fórmula, como quiserem) definitiva a partir de 1975, marcada pela repetição e pela simetria de padrões sonoros e por ritmos mecânicos que dão suporte a melodias facilmente cantáveis. São as melodias que conferem um toque de calor e de sentimento às composições cerebrais do Kraftwerk, tornando-as irresistíveis aos ouvintes médios, menos afeitos a conceitos e projetos estéticos e mais interessados na satisfação auditiva imediata. As letras do grupo são sintéticas e aparentemente simples. Para acompanhar a música robótica e futurista, os conceitualistas do Kraftwerk criaram um arsenal de imagens marcado pela economia de signos e pela simetria visual. A “arte total” do Kraftwerk influenciou fortemente artistas populares contemporâneos ao grupo como David Bowie e os das gerações seguintes, como New Order e Daft Punk.

A influência exercida pelo Kraftwerk sobre a música e a cultura pop é um dos temas favoritos dos que se dedicam a falar sobre o grupo alemão. Quase todas as análises caem na armadilha do enaltecimento dessa influência, que é realmente imensurável, criando um discurso uniforme e quase fanático que ativa a suspensão de descrença e trata Ralf, Florian e seus colaboradores como totens culturais. Não há como negar que o Kraftwerk deu régua e compasso à música eletrônica popular e, no processo, foi responsável ou corresponsável pelo surgimento de gêneros musicais como o hip hop e a EDM, mas é bom seguir o exemplo epistemológico dos ideólogos do grupo e cultivar a ambiguidade. A visão “heroica” das conquistas estéticas do Kraftwerk está sintonizada com a euforia dos fetichistas tecnológicos, que acreditam que o aumento da presença dos computadores em nossas vidas é caminho para o progresso individual e coletivo. Maculados pela mitomania, o livro Kraftwerk Publikation – A Biografia, de David Buckley, e o documentário Kraftwerk: Pop Art dedicam-se mais a elogiar do que a analisar de forma isenta a obra e a história do grupo alemão. Falta aos fãs travestidos de pensadores da cultura o apuro intelectual de Ralf e Florian, que preserva parte do senso crítico e descarta o fetichismo em nome de uma visão completa (ou tão completa quanto possível) dos efeitos da tecnologia sobre o mundo.

Apesar da existência dos álbuns de 1970, 1972 e 1973, o Kraftwerk reescreveu sua história e definiu como marco zero de seu projeto estético o LP Autobahn, de 1974. A prova disso são as duas caixas de CDs The Catalogue, publicadas pelo selo Kling Klang em parceria com a Parlophone, que chamam de “catálogo” do grupo todos os discos lançados a partir de Autobahn.  Kling Klang é também o nome do estúdio em que o grupo alemão registrou todos os seus álbuns. Cada item da discografia do Kraftwerk a partir de 1974 tem um tema geral que se reporta à relação (às vezes harmônica, às vezes conflituosa) entre seres humanos e máquinas. Autobahn fala de transportes rodoviários; Radioactivity trata de radioatividade e de radiodifusão; Trans-Europe Express, de 1977, disserta sobre a malha ferroviária que liga vários países da Europa; The Man-Machine, de 1978, discorre sobre robôs, ciborgues, metrópoles e estações espaciais; Computer World, de 1980, promove reflexão sobre o impacto dos computadores na sociedade; Electric Café, de 1986, aborda a interferência da tecnologia na vida íntima das pessoas; Tour de France, de 2003, refere-se à aplicação da tecnologia à extensão das capacidades físicas do corpo humano.

De todos os álbuns listados acima, Computer World se destaca por sintetizar de modo preciso os aspectos positivos e negativos do emprego de computadores por instituições e por indivíduos.

A faixa-título do álbum descreve de forma telegráfica o uso dos computadores como instrumento de controle social por instituições policiais e financeiras (“Interpol and Deutsche Bank/FBI and Scotland Yard”). Governos e grandes corporações armazenam dados sobre nossa ideologia, nossos hábitos de consumo e até sobre nossas preferências sexuais em benefício próprio. Espalhados pelas ruas, pelos edifícios e pelas casas, olhos eletrônicos registram cada passo que damos. É a tecnologia a serviço do poder.

Em contrapartida, Computer World fala também da apropriação da tecnologia pelo indivíduo. “I’m the operator/With my pocket calculator” diz a faixa “Pocket Calculator”. Forçando um pouco a barra, podemos afirmar que “Pocket Calculator” prevê os computadores de bolso de hoje, os smartphones. “Home Computer” também mostra o indivíduo utilizando a tecnologia a seu favor (“I program my home computer/Beam myself into the future”). Em 1981, ano de lançamento do álbum Computer World, as possibilidades de aplicação de computadores para o desenvolvimento pessoal pareciam imensas. Hoje sabemos que o desenvolvimento pessoal que os computadores propiciam quase nunca vem acompanhado de liberdade para quem está na base da pirâmide social. Os computadores ampliaram a assimetria da relação entre dominadores e dominados. Mesmo quando usados pelos indivíduos para o atendimento de seus interesses mais íntimos, os computadores servem aos aparelhos de controle social.

Depois de Computer World, o grupo de Ralf Hütter e Florian Schneider lançou somente dois discos com material inédito, o álbum Electric Café e o EP Tour de France, que têm virtudes, mas não se equiparam em termos de qualidade e de invenção musical aos títulos que o Kraftwerk publicou de 1974 a 1981. Presos a um esquema paralisante de rigor conceitual e de perfeccionismo, os membros do Kraftwerk foram superados no mercado musical pelos artistas que influenciaram.

Em 2017, foi publicada em várias configurações a caixa 3-D The Catalogue, na qual o Kraftwerk (agora sem Florian Schneider, que deixou o grupo em 2006) regravou oito álbuns de sua discografia. Os áudios dos discos foram tirados de performances ao vivo do grupo (as palmas da plateia foram suprimidas). Poucas diferenças entre os registros originais e as regravações merecem destaque. A gravação de 1975 de “Radioactivity” fala sobre a radioatividade que está “no ar, para mim e para você”, mas a versão da composição apresentada em shows do Kraftwerk é mais incisiva ao nomear episódios de devastação radioativa como os de Hiroshima e de Chernobil. Além disso, a ordem das faixas de Computer World foi alterada na versão ao vivo do álbum. “Numbers”, tema com forte percussão eletrônica que as primeiras gerações de b-boys e de artistas de hip hop apropriaram con mucho gusto, foi deslocado para a abertura do álbum por razões narrativas e o efeito é ótimo.

De resto, as mudanças não ocorrem em quantidade suficiente para que possamos chamar as regravações de releituras. Podemos invocar o remake de Psicose feito por Gus Van Sant, que praticamente duplica o filme clássico de Hitchcock, para levantar a questão: cópias fiéis de obras de arte relevantes são necessárias? No caso do Kraftwerk, a resposta é: para os fãs do grupo, sim, para os demais, nem tanto. Sem considerar as motivações financeiras por trás do projeto 3-D The Catalogue, podemos dizer que as regravações, redundantes do ponto de vista artístico, são uma inequívoca declaração de posse do legado artístico do Kraftwerk feita por Ralf Hütter, que agora é o único dono do grupo.

O projeto revisionista de Ralf Hütter é lindamente executado, mas revela que o Kraftwerk de hoje vive mais do passado do que do futuro. Ex-integrante do grupo em sua fase mais criativa, Wolfgang Flür chamou, em declarações reproduzidas no livro Kraftwerk Publikation – A Biografia, os novos e indistintos membros do Kraftwerk de “robôs contratados” e disse: “Não havia mais nada para inventar, para renovar e sobre o que falar. Talvez desse para deixar tudo maior, fazer telas maiores e o som mais digital. Isso é fácil de fazer, sabe?… O Kraftwerk está morto”. Talvez o Kraftwerk de hoje seja mesmo uma banda tributo, mas ele segue fazendo shows que atraem multidões em todo o mundo e que geram críticas positivas. O Kraftwerk de hoje é um doppelgänger, um duplo. Como diz a letra de “Hall of Mirrors”: “Even the greatest stars live their lives in the looking glass”.


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