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2 de setembro de 2017
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10:30

Feliz aniversário, Aldir Blanc

Por
Sul 21
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zeca azevedo

Hoje, dois de setembro de 2017, Aldir Blanc completa setenta e um anos de idade. Escritor e letrista notável, Aldir Blanc é o Garrincha das palavras, o homem cujos dribles verbais tonteiam o leitor/ouvinte ao mesmo tempo que o convidam para dançar. Mais carioca que o Rio de Janeiro de hoje, Aldir Blanc começou a carreira musical nos anos sessenta como baterista, fato que explica porque ele é um autêntico ritmista das palavras.

Os textos de Aldir são puro ritmo sem nenhuma perda de significado, misturam poesia lírica, coloquialismo, fatos históricos, causos e personagens da vida urbana para registrar a visão de mundo de um homem experiente, culto, safo, irônico, corrosivo, mas também capaz de amor e generosidade. E, claro, as letras de Aldir têm destacado senso crítico, denunciam as injustiças do Brasil e defendem com dentes e unhas afiados a cultura do país contra as injunções impostas pela indústria cultural transnacional. Diz a letra de “Baião de Lacan”: “Eu fui pro Limoeiro/E encontrei o Paul Simon lá/Tentando se proclamá gerente do maufá…/Se os peão não chiá/O Boi Bumba vai virar vaca”. Na letra de “Canibaile”, Aldir mostra o cartão vermelho para outro brasilianista pop: “Derramaro o gai do candiêro/Nesse entrevero, uso o coco e fico firme/Pode vir David Byrne/Porque o canibal sou eu:/No pau, descasco e como o tal rei momo/Que cagou no que é meu”.

1970 foi o ano em que o talento de Aldir Blanc começou a ganhar espaço no cenário da música popular do Brasil. Naquele ano, o MPB-4 lançou “Amigo É pra Essas Coisas”, canção cuja letra registra a conversa de dois amigos em uma mesa de bar. O tom coloquial de “Amigo É pra Essas Coisas”, que se tornou um clássico do repertório do MPB-4, revelou o lado cronista de Aldir Blanc, que documenta com argúcia as experiências dos brasileiros que vivem ao rés do chão. A extraordinária habilidade com as palavras de Aldir Blanc foi logo percebida por Elis Regina. Antena da raça, Elis escolhia repertório de forma escrupulosa. “Ela”, faixa-título do LP lançado pela cantora em 1971, foi a primeira de muitas canções coescritas por Aldir que Elis gravou. Em vídeo publicado no YouTube pelo Canal Elis Regina, Aldir Blanc fala sobre o carinho que a cantora sempre dedicou a ele, não só comocompositor, mas como pessoa.

Ao longo da carreira, Aldir Blanc associou-se a muitos compositores para escrever canções, mas a mais conhecida e celebrada parceria do letrista carioca é a que desenvolveu com João Bosco. Os dois se conheceram em 1971 e em 1972 já tinham produzido algumas composições, entre elas “Agnus Sei”, que foi publicada naquele ano em um compacto financiado pelo jornal O Pasquim. A primeira gravação de uma composição de João Bosco e Aldir Blanc foi selecionada para o lado B do compacto Disco de Bolso, que trazia no lado A o primeiro registro fonográfico de “Águas de Março”, de Tom Jobim. Sobre os surpreendentes desdobramentos da letra de “Agnus Sei”, que inauguram as múltiplas possibilidades de leitura dos textos de Aldir Blanc, Affonso Romano de Sant’Anna diz, no livro Música Popular e Moderna Poesia Brasileira, publicado em 1976: “Já no título (“Agnus Sei”) introduz-se aquilo que os formalistas russos chamavam de “estranhamento”: a expressão soa como conhecida, mas tem um outro sentido, apresenta um desvio determinado, que faz com que a leitura seja ambígua. Em vez de “Agnus Dei” temos “Agnus Sei”, que revela a consciência do indivíduo assumindo a pele de cordeiro sacrificado pelos interesses da sociedade”.

No combate à censura e à alienação política e cultural patrocinada pela ditadura civil-militar, a dupla Bosco/Blanc foi insopitável e criou dezenas de obras-primas em feitio de canção. Elis Regina incluiu composições da dupla nos álbuns que lançou de 1972 a 1979, entre elas clássicos como “Bala com Bala”, “Cabaré”, “O Mestre-Sala dos Mares”, “Transversal do Tempo” e “O Bêbado e a Equilibrista”, que se tornou o hino da anistia e da “abertura política” no final dos anos setenta. Aldir Blanc diz no já citado vídeo do YouTube que ele e João Bosco eram “apaixonados” por Elis e que compunham canções especialmente para ela.

Além de fornecer material para Elis e para outros intérpretes, Aldir Blanc escrevia com João Bosco as canções que iam para os LPs do cantor e violonista mineiro. De 1973 até 1982, João e Aldir, com eventual ajuda do compositor Paulo Emílio, foram responsáveis por uma fileira de álbuns antológicos, verdadeiras obras-primas da canção popular brasileira. Os LPs João Bosco (1973), Caça à Raposa(1975), Galos de Briga (1976), Tiro de Misericórdia (1977), Linha de Passe (1979), Bandalhismo(1980) e Essa É Sua Vida (1981), todos publicados pela RCA, mais o álbum Comissão de Frente (1982), editado pela Ariola, são itens indispensáveis para fãs de música em geral e marcam o auge da união musical estável de Aldir Blanc com João Bosco.

Enumerar os clássicos do songbook de João Bosco e Aldir Blanc é tarefa que demanda grande esforço, pois são muitas as composições memoráveis feitas pelos dois. A imagem do “band-aid no calcanhar” de “Dois pra Lá, Dois pra Cá” é detalhe que não escapa à visão aguda e irônica de Aldir, que fala de amor de forma realista e crua. O mesmo vale para a cicatriz adquirida “numa queda de patins em Paquetá” de “Latin Lover”, canção que ironiza o mito do macho latino. Uma das composições mais inteligentes e divertidas da dupla Bosco/Blanc é “Profissionalismo É Isso Aí”, que narra a história de uma família que cansa de viver na miséria e decide virar uma organização criminosa. No final da narrativa, a organização criminosa se dá muito bem, como é de praxe no Brasil: “Hoje tenho status, mordomo, contatos/Pertenço à situação/Mas não esqueço os velhos tempos:/Domingo numa solenidade/Uma otoridade me abraçou/Bati-lhe a carteira, nem notou,/Levou meu relógio e eu nem vi/- já não há mais lugar pra amador!”. “Profissionalismo É Isso Aí”, que retrata de forma fidelíssima e debochada a banda podre da política que manda no Brasil desde sempre, foi gravada primeiro pelo cantor e violonista mineiro no LP Bandalhismo, de 1980, e regravada pela Banda Black Rio também em 1980.

Durante os anos oitenta, a parceria de Aldir com João Bosco começou a minguar não no quesito qualidade, mas no quesito quantidade. João Bosco começou a procurar outros parceiros musicais e a explorar vocais onomatopaicos, que prescindiam de palavras. Aldir Blanc também encontrou outros amigos músicos, como Moacyr Luz e Cristóvão Bastos, e com eles prosseguiu no ofício de cancionista. Aldir associou-se também a Maurício Tapajós, com quem publicou um LP independente em 1984, chamado Rio, Ruas e Risos, no qual o letrista revelou-se  cantor mais do que competente.

Na década de noventa, Aldir Blanc firmou parceria com um compositor ainda mais talentoso que João Bosco. Tive o privilégio de conhecer Guinga pessoalmente há muitos anos. Embora nosso contato tenha sido fugaz, foi suficiente para que eu saiba que Guinga, um homem incrivelmente generoso, divertido e modesto, não concordaria com a afirmação que fiz sobre ele no início deste parágrafo. Carioca como Aldir Blanc, Guinga acrescentou melodias intrincadas às letras do parceiro. Simples e Absurdo, o primeiro CD de Guinga, foi lançado pela gravadora Velas em 1991 e revelou ao Brasil a força das canções tramadas por Guinga e Aldir. Simples e Absurdo é um disco repleto de convidados especiais, entre eles Chico Buarque (que revelou-se fã de Guinga em texto que escreveu para o encarte do CD), Ivan Lins, Zé Renato, Leila Pinheiro e a excelente cantora gaúcha Lúcia Helena, injustamente desconhecida do grande público.

Exposta ao repertório de altíssimo nível de Guinga e Aldir, Leila Pinheiro decidiu dedicar um álbum inteiro às criações da dupla. Lançado em CD em 1996, Catavento e Girassol é o melhor item da extensa discografia de Leila Pinheiro e um dos grandes discos de música brasileira da década de noventa. Apesar disso, confesso: toda vez que escuto Catavento e Girassol começo a imaginar como ficariam as mesmas canções na voz de Elis Regina. Nada contra Leila Pinheiro, que tem bom gosto musical e é cantora de grande valor, mas se Elis tivesse interpretado o mesmo repertório, o CD Catavento e Girassol, que já é ótimo, certamente alcançaria o status de obra-prima. Infelizmente, Elis partiu cedo demais.

Ainda em 1996, Aldir Blanc decidiu comemorar seus cinquenta anos de idade em grade estilo, publicando o CD 50 Anos pelo selo independente Alma. A faixa de abertura de 50 Anos registra uma fala de Dorival Caymmi sobre Aldir Blanc. Diz o mestre baiano: “[Aldir] É aquele que sabe retratar como ninguém o fato e o sonho. Traduz a malícia, a graça e a malandragem… Estamos falando do ourives do palavreado”. Tais elogios, vindos daquele que foi o melhor compositor popular brasileiro do século XX (Tom Jobim concordaria com tal afirmação), um artista que lapidava canções por anos a fio, confirmam o prestígio que Aldir Blanc tem junto aos seus colegas músicos. O CD 50 Anos conta com a participação de cantores como Edu Lobo, Ed Motta, Fátima Guedes, Leila Pinheiro e Emílio Santiago. Um dos destaques do álbum é a bela performance vocal de Aldir em “Moonlight Serenade”, de Glenn Miller (vertida para o português pelo próprio artista).

Outro álbum que celebra a arte de Aldir Blanc é Novos Traços, da cantora Clarisse (sobre ela, Ruy Castro diz, em frase registrada na contracapa do CD: “Clarisse é uma das últimas cantoras puras do Brasil”). Lançado em 1998, o CD é produzido por Rildo Hora e reúne quatorze canções escritas por Aldir com Cristóvão Bastos. Assim como 50 Anos e outros álbuns fundamentais para a compreensão da extensa obra lírica de Aldir Blanc, Novos Traços teve tiragem acanhada e está fora de catálogo. As canções de Aldir Blanc produzidas nas últimas três décadas foram injustamente empurradas para as franjas da indústria cultural brasileira. É mais um episódio que revela o modo perverso como a nossa “mãe gentil” trata alguns dos seus filhos mais talentosos.

Em 2005, Aldir publicou o primeiro e, até agora, único disco no qual canta em todas as faixas. Vida Noturna conta, por meio de gravações delicadas e belas, histórias das madrugadas cariocas. O CD reuniu Aldir com o velho parceiro João Bosco, que participou das faixas “Vida Noturna” e “Me Dá a Penúltima” cantando e tocando violão. O reencontro rendeu novas composições, que apareceram no CD Não Vou Pro Céu, Mas Já Não Vivo No Chão, de João Bosco, lançado em 2009: “Navalha”, “Mentiras da Verdade”, “Plural Singular” e “Sonho de Caramujo”. Infelizmente, nenhuma dessas composições circulou pelo país como os antigos sucessos de João e Aldir.

Em julho de 2013, aconteceu o lançamento do livro Aldir Blanc – Resposta Ao Tempo. Escrito por Luiz Fernando Vianna, jornalista, pesquisador e fã de Aldir Blanc, o volume é um misto de biografia, análise da obra e compilação de letras do compositor carioca. O livro reúne quatrocentas e cinquenta letras de Aldir Blanc. Passar os olhos sobre as páginas do livro, em particular sobre os poéticos e satíricos textos de Aldir Blanc, faz do leitor um bêbado com chapéu-coco que faz irreverências mil para as noites e para os dias turbulentos do Brasil. A um dos melhores porta-vozes da alma brasileira desejo feliz aniversário, muita saúde e muitos anos de atividade artística.

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zeca azevedo é produtor cultural e colecionador de discos.

 


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