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19 de agosto de 2017
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10:30

Ray Charles, gênio incompreendido?

Por
Sul 21
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Ray Charles, gênio incompreendido?
Ray Charles, gênio incompreendido?

zeca azevedo

Não lembro quando ouvi Ray Charles pela primeira vez, mas sei que foi quando eu era criança. Devo ter visto e ouvido o cantor e músico pela TV, pois não tínhamos aparelho de som e nem rádio em casa. Tão logo tomei conhecimento da existência de Ray Charles, virei fã dele. Em 1978, foi anunciada a vinda do cantor a Porto Alegre para fazer uma apresentação no Gigantinho. Eu tinha dezesseis anos, não trabalhava, portanto não tinha dinheiro para ir ao show. Pedi o dinheiro para a minha mãe e ela disse que me daria (o ingresso não devia ser caro, pois a grana sempre foi curtíssima em casa). Depois disso, fiz ou disse algo que desagradou a minha mãe e ela, como punição, me negou o dinheiro. Fiquei tão deprimido que, quase na hora do show, no dia 22 de novembro de 1978, minha mãe se apiedou de mim e me ofereceu o dinheiro, mas era tarde demais, eu não teria como chegar ao Gigantinho a tempo de ver Ray Charles ao vivo.

O mesmo amor à primeira audição que senti quando ouvi Ray Charles foi experimentado por milhares, até mesmo milhões de pessoas em todo o mundo. Tão logo despontou no cenário da música popular norte-americana em meados dos anos cinquenta, Ray Charles foi reconhecido como “gênio”, qualificativo que acompanhou o cantor pela vida afora. Morto há treze anos, Ray Charles continua a proporcionar alento para os desafortunados, fé para os descrentes, verdade para os cínicos e prazer para os estoicos por meio de seus discos. Infelizmente, parte da vasta fonografia de Ray Charles é negligenciada por conta da interpretação esquemática e dominante da vida e da obra do artista a quem se atribui (corretamente, na minha opinião) a invenção da soul music.

Nascido em 1930 na cidade de Albany, no estado norte-americano da Georgia, no seio de uma família muito pobre, Ray Charles conheceu precocemente a música, a morte e a solidão. O amor pela música revelou-se aos três anos de idade, quando Ray ficou mesmerizado pelo boogie-woogie sincopado que o Senhor Pit, um músico das redondezas, produzia ao piano. A partir deste momento o menino esforçou-se ao máximo para ficar pertinho de pianos e de jukeboxes . Em 1935, o único irmão de Ray Charles, George, de quatro anos de idade, entrou em um tanque de lavar roupas cheio de água para pegar uma moedinha e começou a se afogar. Ao ver os gestos desesperados do irmão que ficava sem ar, Ray, que tinha somente cinco anos de idade, tentou retirá-lo do tanque, mas não teve força suficiente para realizar o salvamento. Quando a mãe chegou para acudir o pequeno George ele já estava morto. Dois anos depois da morte do pequeno George, Ray Charles perdeu totalmente a visão por conta de um glaucoma. A mãe, Aretha, ensinou Ray a ser independente e a não se deixar abater pela deficiência visual. Aos vizinhos que achavam que Aretha impunha uma rotina de trabalho muito severa para o jovem Ray, ela dizia: “Meu filho é cego, mas não é estúpido”.

Depois que Ray Charles perdeu a visão, a mãe dele decidiu mandá-lo para uma escola para deficientes visuais e auditivos na Flórida. Lá, o jovem aprimorou sua técnica ao piano, aprendeu a tocar outros instrumentos como órgão e trompete, a ler e a escrever partituras em Braille e a fazer arranjos para pequenos e grandes conjuntos musicais. Ray permaneceu na escola até osquinze anos de idade. Nessa época, em 1945, a mãe e o pai de Ray já estavam mortos. Sem uma família para dar a ele suporte afetivo e material, o adolescente botou a perna no mundo disposto a ganhar a vida como músico. Em seus primeiros anos na estrada, Ray viveu de bicos, tocando piano com algumas bandas aqui, fazendo arranjos para outras bandas acolá. Muitas vezes o jovem não tinha o que comer.

Nessa época, Ray Charles deixava à mostra suas principais influências musicais: o som elegante, romântico e polido de Nat”King” Cole e o blues lancinante e boêmio de Charles Brown. Em 1949, Ray gravou uma composição de sua autoria, “Confession Blues”, pelo pequeno selo Down Beat de Los Angeles. Creditado ao grupo The Maxin Trio, o compacto de “Confession Blues” chegou ao top ten da parada de sucessos de rhythm and blues. Sob o seu próprio nome, Ray Charles lançou cerca de vinte singles pelo selo Down Beat de 1949 a 1952, mas a porta da esperança só se abriu para o cantor, compositor e arranjador em 1952, quando ele assinou contrato com a Atlantic Records, gravadora de Nova Iorque especializada (naquela época) em música negra urbana.

O ambiente acolhedor que Ray Charles encontrou na gravadora Atlantic permitiu que ele construísse sua própria identidade como artista. Neste processo, Ray percebeu que a música das Igrejas Batistas que conhecia desde criança era parte indissociável de sua vida e de seu modo de cantar e tocar e decidiu transportar os estilemas do gospel negro para a sua arte. Para escândalo da comunidade religiosa afro-americana, Ray começou a fazer adaptações mundanas dos hinos espirituais cantados nos cultos. A rigidez moral dos cristãos afro-americanos não permitia nenhum tipo de intersecção entre o repertório gospel e o dos cantores de blues e de rhythm and blues. Lançada em compacto no finalzinho de 1954 pela Atlantic, “I Got aWoman”, canção ousada cujo personagem é uma espécie de gigolô, é quase uma cópia de “It Must Be Jesus”, composição gospel escrita por Bob King, cantada por ele e pelo conjunto vocal Southern Tones e lançada em disco em meados de 1954. Por seu turno, “It Must Be Jesus” pode ter sido inspirada por outra canção gospel, “There’s a Man Going Round Taking Names”, ou seja, a autoria neste caso parecer ser mesmo fluida.

“I Got a Woman” foi um sucesso imediato e não só estabeleceu o nome de Ray Charles como astro da música popular norte americana, mas também marcou o início da história da soul music. No livro Sweet Soul Music — Rhythm and Blues and the Southern Dream of Freedom, publicado pela primeira vez em 1986, Peter Guralnick fala sobre “I Got a Woman” (tradução livre): “Para quem ouve “I Got a Woman” hoje, é difícil imaginar o impacto que a canção teve para negros e brancos, para o jovem Elvis Presley, para Sam Cooke e para quase todos os cantores, compositores e produtores que entrevistei para esse livro. O estratagema de adaptar uma canção de gospel tradicional, colocando nela uma letra secular e interpretando-a com aintensidade própria de um culto pentecostal foi surpreendente; foi como um flash de luz intensa que anunciasse, de modo repentino e imprevisto, a chegada do Milênio (segundo a Bíblia, os mil anos em que Jesus governará a Terra)”.

Ray Charles foi o catalisador, mas a soul music logo ganhou pernas próprias e se subdividiu em duas correntes principais. A primeira, mais urbana, elegante e suave, teve Sam Cooke como principal proponente e encontrou forma definitiva no som da Motown dos anos sessenta — que, por sua vez, deu origem ao som da Philadelphia, ao soft soul e à disco music. A segunda vereda da soul music foi aberta à facão por James Brown e leva ao som agressivamente rítmico e carnal do funk, que deu à luz o hip hop e, claro, o funk carioca.

No período em que esteve sob contrato com a Atlantic Records, de 1952 a 1959, Ray Charles não realizou somente gravações arquetípicas de rhythm and blues e da incipiente soul music como “Talkin”bout You”, “Night Time Is the Right Time” e “What’d I Say” (essa última consagrou na música pop negra dos EUA o estilo vocal de chamada e resposta entre solista e coro praticadoamplamente pelo gospel negro), mas também publicou álbuns de jazz. Os discos da fase Atlantic de Ray Charles são apontados por especialistas e por fãs como os melhores de toda a carreira dele, sobretudo porque estão circunscritos ao universo da música negra urbana dos EUA (por essa razão, são percebidos como mais “autênticos” do que as digressões posteriores que ocantor fez por outros gêneros musicais como o pop tradicional e a country music). Foram os discos da Atlantic que garantiram a Ray o epíteto de “gênio” que passou a figurar nos títulos dos LPs dele a partir de 1959. (Sobre o epíteto, Ray disse: “Art Tatum — ele era um gênio. Einstein também. Não eu”. Podemos inferir a partir dessa fala de Ray Charles que ele não tinha a palavra final na escolha dos títulos dos seus álbuns, pelo menos nos primeiros anos de carreira.)

Ainda em 1959, atraído por uma proposta muito vantajosa oferecida pela gravadora ABC/Paramount, Ray Charles deixou a Atlantic Records. O enfoque da Atlantic enquanto casa fonográfica estava na música negra calcada no blues e no jazz, mas a ABC/Paramount trabalhava com escopo musical mais amplo, abraçando o pop tradicional. Ray percebeu na troca de gravadoras a oportunidade de levar sua voz carregada de emoção a outros rincões musicais. A adoção de seções de cordas e de coros expandidos nas gravações de Ray Charles para a ABC/Paramount angariou a desconfiança e até o desprezo dos “especialistas” em jazz e blues, árbitros do “bom gosto” que acreditam que têm o direito de determinar o que os músicos populares negros devem ou não fazer com sua arte. Os críticos de jazz e de música popular que atuam em veículos de comunicação são em geral homens brancos e de meia-idade que acreditam que artistas negros devem produzir apenas música “de raiz”.

Um desses “senhores brancos” é Peter Shapiro. No livro The Rough Guide to Soul and R&B, publicado em 2006 na Inglaterra, Shapiro diz de modo pejorativo que as gravações de Ray Charles dos anos sessenta são “lixo ao estilo dos Swingle Singers” (grupo vocal muito popular que se dedicava ao repertório “ligeiro”) e que usam arranjos de cordas “ao estilo de Mantovani” (famoso arranjador e regente de easy listening). O tipo de crítica que classifica como inautênticos os músicos negros que incorporam elementos “brancos” ao seu som contém, na minha opinião, traços de racismo, pois determina um campo deatuação reduzido para esses artistas. As gravações de pop tradicional feitas por Ray Charles para o selo ABC/Paramount e durante o resto da carreira dele são muitas vezes intensas e comoventes e não merecem ser jogadas no lixo por puro preconceito estético.

Atenção: não estou dizendo que não existem gravações “regulares” ou mesmo “fracas” de Ray Charles, estou apenas observando que generalizações como as que são feitas sobre a obra musical do cantor, compositor e arranjador costumam, com o perdão da expressão, jogar o bebê fora com a água da bacia. Ray disse uma vez: “Meu trabalho é mais adulto, mais carregado de desespero do que qualquer coisa associada ao rock’n’roll”. Mesmo nas gravações mais “comportadas” ou “cafonas” (o uso desse último qualificativo fica por sua conta, leitor) de Ray Charles podemos ouvir a emoção bruta que sai da garganta e das pontas dos dedos do músico. Ray podia transformar o canto de uma bula de remédio em experiência transcendente.

Em desafio aos críticos que queriam atá-lo a um campo artístico limitado, Ray Charles lançou em 1962 o LP Modern Sounds In Country & Western Music. Ao adotar o repertório da música country, Ray fez mais do que romper barreiras estéticas: ele desafiou estereótipos raciais. O gesto mostrou ao mundo a autodeterminação de Ray Charles e resultou em um álbummagnífico, cujo poder não pode ser negado nem mesmo por aqueles que acreditavam e ainda acreditam que artistas afro-americanos devem atuar dentro dos limites de gêneros musicais de origem negra. O LP Modern Sounds In Country & Western Music foi um blockbuster que dominou as paradas de sucessos, vendeu milhões de cópias, abriu de vez a porteira da country music para artistas negros e promoveu uma fusão sonora cujo impacto pode ser sentido até hoje. Ray Charles apontou o caminho para  outros artistas e empreendedores negros que decidiram, de forma corajosa e pioneira, apossar-se do mainstream musical norte-americano e mundial.

Em The Rough Guide to Soul and R&B, Peter Shapiro diz que a faixa “I Don’t Need No Doctor”, lançada em compacto em 1966, é “o último momento de gênio do gênio”. A afirmação tola do autor inglês está de acordo com a interpretação padrão da obra e da vida de Ray Charles, registrada em documentários, artigos e até na cinebiografia Ray, de 2004.  Essa compreensão padrão sustenta que Ray Charles deixou de ser uma força criativa a partir de meados dos anos sessenta para viver confortavelmente nacondição de instituição cultural norte-americana pelas décadas seguintes. Felizmente, essa interpretação não encontra correspondência nos fatos. Os álbuns que Ray Charles lançou durante os anos setenta provam que a capacidade criativa do músico permanecia firme e forte, e mais, provam também que ele nunca foi completamente domesticado.  Ray era o que os norte-americanos chamam de maverick, pessoa arrojada que não abre mão do controle sobre a própria vida.

Hora de interromper o fluxo de pensamento para comentar a cinebiografia Ray. Dirigida por Taylor Hackford e estrelada por Jamie Foxx (que ganhou com justiça o Oscar de Melhor Ator por sua performance no longa-metragem), Ray repete alguns lugares comuns dos filmes deste tipo, mas tem um diferencial. De modo sutil, o filme sugere que o músico transformou hinos dos cultos religiosos afro-americanos em canções maliciosas para rebelar-se contra Deus, que permitiu a morte por afogamento do pequeno George e a cegueira do pequeno Ray. É uma interpretação dos fatos que pode ser contestada por muitas pessoas, mas que não pode ser desconsiderada. De resto, Ray corrobora a leitura “oficial” da vida e da obra do cantor ao conduzir a narrativa até o momento em que Ray Charles decide combater o vício em heroína, ainda nos anos sessenta. O longa-metragem sugere que a vida profissional de Ray Charles depois do rehab bem-sucedido foi apenas uma longa sucessão de exitosas apresentações ao vivo e de homenagens ao cantor por sua contribuição para a história da música popular norte-americana e mundial. Esse recorte da vida e da obra de Ray Charles reforça a noção equivocada de que a produção musical do cantor e compositor posterior a dos anos cinquenta e sessenta é irrelevante.

Na década de setenta, a música popular negra dos EUA sofreu muitas transformações. Stevie Wonder alcançou aclamação quase universal com uma série de álbuns que lançou pela Motown de 1972 a 1976. Não, eu não estou citando Stevie Wonder porque ele é deficiente visual como Ray Charles, estou apontando o fato incontornável de que, nos anos setenta, o autor de “Superstition” realmente estabeleceu novos padrões musicais, sonoros e políticos no campo da música pop, padrões que influenciaram músicos contemporâneos dele e também artistas de épocas posteriores à dele. Outros músicos também contribuíram de modo decisivo para a reengenharia da black music nos anos setenta. Em Memphis, Willie Mitchell e Al Greensofisticaram o som “de raiz” da soul music sulista ao aplicar nele um estilo vocal e instrumental mais suave e urbano. Na Philadelphia, Gamble & Huff, compositores e produtores fonográficos, prepararam o terreno para o surgimento da disco music com suas faixas dançantes, marcadas pela utilização de expandidas seções de cordas e sopros, pela batida four-on-the-floor e pelo som sibilante do chimbau da bateria. Em Detroit, George Clinton e um bando de talentosos lunáticos tramaram o funkcósmico dos grupos Funkadelic e Parliament. Como sói ocorrer em época de grandes mudanças, fabrica-se a indiferença e até mesmo o desprezo por pessoas e fatos identificados com o período imediatamente anterior.

Ray Charles era grande demais para merecer desdém e era muito respeitado pela posição que havia conquistado no show business, mas os compactos e os álbuns que lançou durante os anos setenta foram recebidos com pouca fanfarra ou mesmo com desinteresse. Neste período, o nome de Ray Charles deixou de marcar presença nos postos mais altos do hit parade  e os discos dele foram tratados pelos críticos como “rotineiros”, como meros exercícios de um estilo que o artista criara mais de uma década antes. Na verdade, os LPs de Ray Charles deste período não continham inovações formais, eram mesmo exercícios de estilo, só que os críticos não se deram ao trabalho de perceber a depuração do estilo que os discos registravam. Ray tinhacontrole total sobre suas produções fonográficas nessa época: os discos eram gravados no estúdio RPM, de propriedade do cantor, e ele consumia muito tempo e esforço nos processos de gravação e de mixagem.

Felizmente, não estou sozinho na apreciação da obra fonográfica setentista de Ray Charles. Michael Lydon, autor da biografiaRay Charles — Man and Music, publicada em 1999 na Inglaterra, define os álbuns Volcanic Action of My Soul, de 1971, e A Message from the People, de 1972, como “duas obras-primas”. Os dois álbuns revelam o domínio pleno do estúdio de gravaçãoque Ray tinha à época e o ajuste fino da arte do cantor, compositor e arranjador. Ray Charles passou a tirar proveito dos recursos que o estúdio de gravação oferecia, fazendo overdubs da própria voz com o propósito de ampliar a dinâmica e o impacto dramático da performance vocal. Volcanic Action of My Soul oferece ao ouvinte belas versões de “Wichita Lineman” (de Glen Campbell), “The Long and Winding Road” e “Something” (dos Beatles), além de “The Three Bells”, perfeita fusão de soul music e country que resume a história de vida de um aldeão chamado “little Jimmy Brown” por meio de três badaladas dos sinos da igreja (a primeira, relativa ao nascimento do personagem; a segunda, relativa ao casamento dele; a terceira, à morte).

A Message from the People é item único na discografia de Ray Charles, pois deixa de lado as canções românticas para falar de temas sociais como racismo e pobreza. A capa do LP estampa os rostos de Abraham Lincoln, Martin Luther King, John F. Kennedy e Robert Kennedy, homens identificados com a luta contra o preconceito racial nos EUA que foram assassinados (Lincoln e John F. Kennedy foram mortos enquanto exerciam seus mandatos presidenciais). Como não poderia deixar de ser, o álbum inclui a canção “Abraham, Martin, and John”, que relembra o martírio dessas figuras históricas. A primeira faixa do LP é “Lift Every Voice and Sing”, o “hino nacional dos negros norte-americanos”, canção que expressa o desejo de liberdade do povoafro-americano dos EUA. Em agosto de 1972, em um estádio na cidade de Los Angeles, aconteceu o mega concerto beneficente Wattstax, que reuniu quase todo o cast da gravadora Stax de Memphis para marcar o sétimo aniversário da sublevação da população do gueto negro de Watts que ocorreu em 1965, que teve como causa imediata a brutalidade policial contra os afro-americanos, e para celebrar o orgulho negro. Na abertura do evento, o hino nacional norte-americano foi recebido com frieza e indiferença pelo público afro-americano que lotava o estádio. O mesmo não aconteceu com “Lift Every Voice and Sing”, que fez o povo de Wattstax levantar e saudar a canção entusiasticamente.

Ciente do espírito do tempo que corria e disposto não a enfrentá-lo totalmente, mas a ajustá-lo de acordo com suas convicções, Ray Charles fez um álbum político que se coloca ao lado das lutas do povo negro norte-americano, mas que não consegue abdicar de uma noção conservadora de patriotismo. Isso fica evidente na gravação que encerra o LP, “America theBeautiful”, canção de domínio público que se tornou um standard do repertório de Ray Charles. Para o artista, nenhuma injustiça sofrida pela população negra justificava o sentimento antiamericano. Ensanduichados entre o hino negro e a canção patriótica estão a diatribe contra os políticos profissionais de “Hey Mister” e o apelo pela intervenção divina de “Heaven Help Us All”.

A despeito da qualidade de A Message from the People, o álbum teve pequeno impacto comercial (ele ficou encalacrado na posição de número 52 da parada pop). Talvez por essa razão Ray tenha voltado a lançar LPs com canções românticas como Through the Eyes of Love, de 1972, e Come Live with Me, de 1974, dois discos consistentes que foram ignorados pelo público e espinafrados pelos poucos críticos que se dignaram a escrever sobre eles. Em 1975, em uma tentativa de alcançar o público mais jovem de R&B, Ray Charles gravou “Living For the City”, de Stevie Wonder. A versão de Ray Charles é poderosa, faz jus à canção e rendeu ao cantor o Grammy de Melhor Performance Vocal Masculina de R&B. “Living For the City” é o grandedestaque de Renaissance, LP de 1975 que também inclui versão antológica de “Sail Away”, de Randy Newman. O resto do álbum é bom de ouvir, mas não chega perto desses dois momentos.

No meio de todos esses LPs, Ray Charles publicou três discos instrumentais de jazz que também foram pouco ouvidos (e que são bem difíceis de achar). Em 1976, Ray Charles foi convidado pelo legendário produtor de discos Norman Granz para participar de um ambicioso projeto de gravação de Porgy and Bess. Ray aceitou o convite e sugeriu o nome de Gladys Knight para interpretar as canções femininas da ópera de George Gershwin, mas por razões contratuais a cantora não pode participar do projeto. Granz contratou então a contralto inglesa Cleo Laine, que Ray Charles admirava como cantora, mas com quem não tinha muita intimidade. Porgy and Bess teve direção musical de Frank DeVol e foi publicado em LP duplo, inclusive no Brasil.Embora não seja listado entre as gravações essenciais da obra de Gershwin pelos críticos mais prestigiados, Porgy and Bess com Ray Charles e Cleo Laine merece atenção, sobretudo pela performance sanguínea do cantor.

Assim como os outros álbuns de Ray Charles da década de setenta, Porgy and Bess passou batido pelos consumidores. O fracasso na venda de discos fez com que Ray ficasse sem gravadora pela primeira vez em mais de vinte anos. Em entrevista para a revista de jazz Downbeat, ele disse em tom indignado: “O que você sabe é que você põe tudo o que tem no seu trabalho. Enquanto você fizer isso, se você for realmente honesto consigo mesmo… eu não dou a mínima para o que acontece. Você não pode fazer mais do que isso!”. Esse trecho de entrevista está no já citado livro Ray Charles — Man and Music, que chama a segunda metade da década de setenta de “os anos invisíveis” de Ray Charles. Por conta da associação gloriosa que teve com agravadora Atlantic nos anos cinquenta, Ray conseguiu convencer Ahmet Ertegun a assinar contrato com ele. A volta à antiga empresa não rolou em clima de paz e amor: Ertegun queria que Ray trabalhasse com produtores como Curtis Mayfield ou Gamble & Huff, mas o cantor foi irredutível: ele queria ter o controle total do produto final. A firmeza de Ray Charles pode ter agido contra a viabilidade comercial dos discos dele, mas garantiu a ele a autonomia que queria como artista e como pessoa.

Em 1977, Ray Charles entregou a Ertegun o primeiro álbum do novo contrato com a Atlantic. Ertegun ouviu e achou a sonoridade do disco “ultrapassada”, mas o lançou assim mesmo. Sorte a nossa, pois True to Life é o melhor álbum de Ray Charles dos anos setenta. Da versão em manhoso ritmo discothèque de “I Can See Clearly Now” que abre o lado A até a interpretação que goteja fervor gospel de “Let It Be” que fecha o lado B, True to Life resplandece. Ray Charles roubou a balada”The Jealous Kind” do seu pupilo Joe Cocker, que registrara a canção um ano antes. Os metais em brasa conferem nova energia a “Oh What a Beautiful Morning”, do musical Oklahoma, de 1943. A leitura bluesy de “How Long Has This Been Going On?”, escrita por George e Ira Gershwin em 1928, arranca o coração molhado de sangue do peito da canção e o oferece ao ouvinte. O crítico do site Allmusic diz que o lado B de True to Life é ruim, mas não dê ouvidos ao bobalhão. “Be My Love” e “Heavenly Music” formam uma dupla bonita e elegante de baladas. “Anonymous Love” tem suingue contagiante e “Game Number Nine”, uma das minhas favoritas do disco, é pura malícia funky.

True to Life não foi um acidente feliz de percurso, foi resultado da obstinação de Ray Charles em ignorar interferências externas e manter-se fiel à sua arte. No ano seguinte, o cantor publicou o LP Love and Peace. Muita gente disse e ainda diz que o álbum de 1978 sofre por conta da concessão aos modismos musicais da época em que foi produzido, mas a verdade é que canções dançantes como “You 20th Century Fox”, “Riding Thumb” e “No Achievement Showing” são mais R&B do que disco music. Embora não alcance True to Life no quesito qualidade de repertório, Love and Peace tem momentos muito bons como a versão da balada country “We Had It All” e a belíssima “Is There Anybody Out There?”. O ponto fraco do disco é a inclusão da composição machista do polêmico Jimmy Lewis, “Take Off That Dress”. Antes do encerramento da década, Ray publicou mais um LP, o ótimo Ain’t It So, que tem como destaques as releituras dos standards “Some Enchanted Evening” e “Blues in the Night” e a melodia arrebatadora de “Just Because”. Ain’t It So é mais uma instância de comprovação  de que os discos setentistas de Ray Charles merecem reavaliação cuidadosa.

Infelizmente, de todos os álbuns de Ray Charles dos anos setenta, apenas A Message from the People e o projeto Porgy and Bess foram relançados na era do CD, clara indicação do caráter “maldito” desse segmento da produção fonográfica do cantor. Nenhum desses discos está disponível no serviço de streaming Spotify (que oferece tudo o que Ray gravou para a Atlantic nos anos cinquenta e uma parte dos registros que ele fez para a ABC/Paramount na década seguinte), mas alguns deles podem ser encontrados no iTunes. Usuários generosos do YouTube colocaram álbuns completos e faixas avulsas do Ray Charles setentista na plataforma de vídeos. Volcanic Action of My SoulA Message from the PeopleThrough the Eyes of Love, Come Live with Me, RenaissancePorgy and Bess, True to Life, Love and Peace e Ain’t It So foram publicados no Brasil em LP à época de lançamento e podem ser encontrados em sebos e em sites de leilões.

A partir dos anos oitenta os álbuns de Ray Charles passaram a ganhar feições de produtos desenvolvidos pelos setores demarketing das gravadoras. Ainda existem muitas recompensas para os ouvintes nos discos que o cantor editou nas últimas décadas de atividade dele, mas eles não se comparam com a produção musical dos períodos anteriores. De 1982 a 1990, Ray integrou o cast da Columbia Records e publicou discos dedicados exclusivamente à country music ou repletos de convidados especiais. O álbum My World, de 1993, editado pela Warner, deu um upgrade eletrônico no som de Ray Charles e conta com belas interpretações dos clássicos “A Song for You”, de Leon Russell, e “Still Crazy After All These Years”, de Paul Simon.  Depois de My World, Ray lançou Strong Love Affair, de 1996, e o obscuro Thanks for Bringing Love Around Again, de 2002, que teve tiragem pequena e circulação muito restrita. Ray Charles completou o álbum de duetos Genius Loves Company em março de 2004, mas não teve oportunidade de testemunhar o sucesso espetacular do projeto porque morreu no dia 10 de junho daquele ano. Genius Loves Company foi o hit pelo qual Ray ansiou por décadas: vendeu milhões de cópias mundo afora e ganhou oitoGrammys, incluindo o prêmio de Álbum do Ano. O êxito póstumo de Genius Loves Company mostrou que John Lennon estava certo quando escreveu o verso “You don’t know what you gotuntil you lose it” para uma canção do LP Wall and Bridges, de 1974.

Ray Charles voltou a Porto Alegre na década de noventa (acho que foi em 1995), mas não pude assisti-lo porque o preço do ingresso era proibitivo, pelo menos para mim (se minha memória não me trai, o show foi em um clube e incluía jantar). Por duas vezes, perdi a oportunidade de ver e ouvir um dos meus artistas favoritos ao vivo. Felizmente, posso invocar o gênio a qualquer momento por meio dos discos — e ele realizará os meus desejos musicais.


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