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28 de setembro de 2017
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16:27

Elton Brum, presente! Agora e sempre!

Por
Sul 21
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Elton Brum, presente! Agora e sempre!
Elton Brum, presente! Agora e sempre!
Portanto, a quinta-feira, 21 de setembro de 2017, nos fazia recordar que como latino-americanos nossas veias seguem abertas, seja pela violência policial ou diretamente pelas ações das milícias privadas dos fazendeiros que continuam exterminando as gentes da nossa terra para entregar nossas riquezas ao capital transnacional. Foto: Guilherme Santos/Sul21

Emiliano Maldonado

O penúltimo dia do inverno na capital gaúcha marcava os 8 anos e um mês do assassinato pelas costas do trabalhador rural Elton Brum da Silva. O ambiente pesado do prédio I do Foro Central de Porto Alegre estava diferente. Logo na entrada um conjunto de militantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) coloria de vermelho o acinzentado local. Flores, velas e bandeiras recordavam a memória do companheiro morto pelo calibre 12 de um policial militar, no dia 21 de agosto de 2009. O homicídio ocorreu durante a execução do mandado de reintegração de posse da Fazenda Southall, localizada no distrito Bragança, do município de São Gabriel, o qual foi palco de acirrados conflitos rurais naquele período. Hoje temos certeza que aquelas lutas estavam certas, pois aquele latifúndio de mais de 7 mil hectares foi considerado improdutivo pelo estado brasileiro e teve parte das suas terras destinadas à Reforma Agrária, abrigando 225 famílias no Assentamento Conquista de Caiboaté, que se dedicam à agricultura familiar na região.

Portanto, a quinta-feira, 21 de setembro de 2017, nos fazia recordar que como latino-americanos nossas veias seguem abertas, seja pela violência policial ou diretamente pelas ações das milícias privadas dos fazendeiros que continuam exterminando as gentes da nossa terra para entregar nossas riquezas ao capital transnacional. Prova disto é o recente informe do Comitê Brasileiro de Defensoras e Defensores de Direitos Humanos demonstrando que, durante os primeiros oito meses de 2017, pelo menos 62 defensores de direitos humanos foram assassinados no Brasil, muitos deles por meio de chacinas perpetradas por agentes do estado como, por exemplo, o massacre de Pau D’arco, no Pará, de autoria de policiais militares e civis. 

Não se trata de um dado isolado. Somente no ano passado os dados do Caderno dos Conflitos do Campo, produzido pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), aponta que 66 pessoas foram mortas enquanto lutavam por direitos. Outros estudos internacionais (Global Winess, 2016) também colocam o Brasil como o país mais perigoso para os defensores de questões ligadas à terra e à natureza.

Esta triste liderança refere-se ao número de assassinatos relacionados com conflitos socioambientais, os quais em sua grande maioria estão se acirrando na chamada Amazônia legal pelo avanço desenfreado da fronteira do agronegócio, que a cada dia segue desmatando a floresta e matando os que nela vivem.

O acirramento desses conflitos expõe uma chaga que nos acompanha há séculos, mas que nos últimos anos só se agrava, pois o desmonte do pouco de políticas públicas direcionadas ao incentivo da agricultura camponesa, acompanhado do processo de neoliberalização do agronegócio, incentivou que as velhas formas de extermínio e criminalização dos povos indígenas e dos agricultores pobres se revigorasse. Ainda assim, o modo de vida campesino recria as suas formas de (r)existência e busca maneiras de garantir a sua permanência no campo.

É neste cenário que, na última semana, foi levado a júri popular o policial militar Alexandre Curto do Santos, autor do disparo que ceifou a vida do Elton Brum naquela manhã violenta de agosto de 2009. À época, com 44 anos de idade, pai da pequena Ivete e casado com a dona Maria, ele lutava pelo seu direito fundamental à terra. Apenas queria ter um pedaço de terra para plantar e poder dar continuidade aos ensinamentos que seu pai Jaime (hoje com 86 anos) lhe passara durante a lida na roça, onde foi criado na região de Canguçu.

Ele jamais imaginara que um agente do Estado utilizaria munição letal durante a reintegração daquelas pobres famílias, quem dirá atirar pelas costas. Quando lembro daquele dia sempre me pergunto, afinal, o que vale mais: o direito à propriedade ou o direito à vida? Talvez por ser negro, pobre e sem-terra…

Ora, não podemos aceitar esse tipo de ação da polícia. O caso do Elton não foi e não é um caso isolado. Segundo dados recentes do Atlas da Violência do IPEA (2017) a polícia brasileira é a que mais mata e mais morre no mundo (mais que em países formalmente em guerra). São dados assustadores, fruto do modelo de “guerra às drogas” que se tornou rotina em nosso país. Somente em 2015 ocorreram 3.320 mortes decorrentes de intervenções policiais. O número de mortos pela polícia é superior aos casos de latrocínios (um dos tipos penais mais graves do nosso sistema punitivo) e estão tão naturalizados que a grande maioria sequer é investigada, quem dirá ir a julgamento. 

Por isto, nós da Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares (RENAP) do Rio Grande do Sul, consideramos importante representar como assistentes da acusação os interesses do MST e da família do Elton durante o júri popular. Mesmo conscientes dos limites e contradições do sistema punitivo do Estado (algo que constantemente criticamos e combatemos) entendemos que este caso era paradigmático e não poderia cair no esquecimento ou ficar impune. 

O Júri teve início pontualmente às 9h30 da manhã. Foram mais de 15 horas de julgamento, conduzido de forma republicana pelo Dr. Orlando Faccini. O júri garantiu o direito de ampla defesa do acusado, que foi assistido por dois reconhecidos advogados de Passo Fundo, os quais diante da difícil tarefa de defender o indefensável, infelizmente, resgataram velhos discursos e acusações contra o MST e expuseram o que pensam as elites do nosso país, sobretudo, as oligarquias rurais. Destaca-se, também, que o réu contou com duas importantes testemunhas de defesa: uma promotora da comarca da São Gabriel e o ex-comandante geral da Brigada Militar do governo Yeda Crusius, Coronel Mendes. Ambos à época representavam instituições do estado gaúcho e, mesmo involuntariamente, acabaram por confirmar a fragilidade da tese defensiva da troca involuntária de munições. Foram ouvidas também duas testemunhas da acusação: o Procurador do Estado Carlos Cesar D’Elia e a atual Ouvidora da Defensoria Pública Patrícia Lucy Machado Couto. Ambos expuseram aos jurados as inúmeras violações de direitos humanos sofridas pelas famílias sem-terra naquela reintegração, bem como as diversas medidas arbitrárias e desumanas adotadas naquele dia.    

Ademais, devemos mencionar o importante papel assumido pelo Promotor Eugenio Amorim no transcorrer do julgamento, pois demonstrou a isenção que se espera dos membros do Ministério Público em tempo de polarização ideológica do sistema judiciário. Reconhecido adversário das bandeiras e pautas de esquerda e dos direitos humanos, o promotor frisou reiteradas vezes que se tratava do assassinato pelas costas de um ser humano, o qual como todo cidadão brasileiro tem o direito à vida assegurado pela nossa Constituição Federal. 

Junto a ele, na assistência da acusação, o histórico defensor de direitos humanos Leandro Gaspar Scalabrin, que deu uma aula sobre as inconsistências das teses defensivas e, sobretudo, sobre a necessidade de superarmos esse modelo policial que temos no país. As manifestações, greves e ocupações são conflitos sociais inerentes às sociedades capitalistas e dependentes como a brasileira, razão pela qual não se pode mais tolerar que a polícia utilize armamento letal e trate os militantes dos movimentos populares como criminosos. Em verdade, eles são os semeadores de um mundo novo que está em construção.  

Atualmente, o Brasil voltou ao mapa da fome e da miséria. Segundo o Relatório de Desenvolvimento Humano do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), o Brasil é o 10º país mais desigual do mundo, num ranking de mais de 140 países. Como se não bastasse, o relatório recente da OXFAM (2017), menciona que somos o país do mundo que mais concentra riqueza no 1% mais rico. Os seis brasileiros mais ricos, possuem o mesmo que a metade mais pobre da nossa população, isto é, os 100 milhões de brasileiros mais pobres. Esta proporção só poderá ser alterada se mudarmos a estrutura agrária do país e permitirmos que os mais pobres usufruam dos meios de produção e sejam os sujeitos de sua história. 

É por isto que, após as 15 horas de júri popular, quando os jurados reconheceram a responsabilidade do réu pelo homicídio qualificado de Elton Brum, não festejamos a pena de 12 anos de reclusão e a perda do cargo aplicada ao policial, mas sim porque na madrugada em que se completavam os 40 anos de impunidade do assassinato do nosso grande Eugênio Lyra, o povo do Rio Grande deu uma aula de justiça e disse: basta, não queremos esse tipo de polícia!

Sabemos que o processo não terminou, há uma longa jornada pela frente, recursos e pleitos defensivos nos esperam no judiciário, sem falar da saga da família para poder receber a indenização devida pelo Estado a título de precatório. Contudo, o fim do inverno nos trouxe os ares da primavera e com ela a esperança de que: cambia, todo cambia… 

***

Emiliano Maldonado é advogado popular da Via Campesina e doutorando em Direito, Política e Sociedade no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina. Mestre em Teoria, Filosofia e História do Direito pelo PPGD/UFSC. Bacharel em Ciências Jurídicas y Sociais pela Universidade do Vale do Rio do Sinos (UNISINOS-RS). Integrante do Núcleo de Estudos e Práticas Emancipatórias (NEPE/UFSC) e do Instituto de Pesquisa em Direitos e Movimentos Sociais – IPDMS, onde coordena o Grupo Temático Pensamento Crítico e Pesquisa Militante na América Latina. Membro da Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares (RENAP).


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