Colunas>Tomás Pinheiro Fiori
|
30 de agosto de 2017
|
10:00

O Rio Grande do Sul ainda não entendeu o jogo federativo

Por
Sul 21
[email protected]
O Rio Grande do Sul ainda não entendeu o jogo federativo
O Rio Grande do Sul ainda não entendeu o jogo federativo

Tomás Pinheiro Fiori

O discurso anti-populista e toda a retórica que sustentou a deposição de Dilma Rousseff vem promovendo uma falsa dicotomia na opinião pública: entre a “responsabilidade fiscal” e sua negação, assumida, naturalmente, como ato de irresponsabilidade. O apelo ao senso comum faz crer que a fronteira entre ambas é clara e que vale a máxima de que ninguém responsável gasta mais do que recebe. É um equívoco grave e que nasce da confusão (intencional) criada entre o que de fato consta na Lei Complementar nº 101, de 2000, conhecida como Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), e a noção popular de responsabilidade financeira.

Foto: Joana Berwanger / Sul21

Nenhum economista, em sã consciência, defenderia a “irresponsabilidade”, embora possam questionar alguns parâmetros legais estabelecidos pela LRF. O que está em disputa é que, para alguns, promover o ajuste das contas públicas a qualquer custo é, isso sim, na acepção popular do termo, uma atitude irresponsável, ainda que busque eliminar déficits orçamentários. Isto porque um ajuste fiscal capaz de comprometer investimentos tão fundamentais como em educação e pesquisa, além de recessivo no curto prazo, corrói as bases de uma sociedade produtiva e, consequentemente, da expansão futura da própria arrecadação tributária.

O labirinto fiscalista em que nos metemos, sobretudo após a Constituição de 1988 e o padrão de organização federativa estabelecido no país, tem uma pesada mão dos economistas. Nosso discurso dominante encampou o debate federalista e vem difundindo a ilusão de que a administração pública responsável se resume à gestão fiscal que promova, em escalas administrativas “ótimas”, a provisão eficiente de bens públicos e a coordenação de externalidades interfederativas – que são os problemas de cooperação que sugerem a necessidade de rever o “pacto federativo” brasileiro.

O cientista político William Riker, precursor do tema, ensinou que o arranjo institucional federativo nasce como um mecanismo de pacificação e unificação de forças políticas internas contra ameaças externas, como na união das 13 colônias norte-americanas pela independência no final do século XVIII e na unificação alemã sob Bismarck, ao final das guerras franco-prussianas. O mesmo ocorreu no Brasil, durante a Primeira República, que inaugurou uma fase de grande descentralização de poder após décadas de resistência imperial aos levantes regionais no país, dando uma autonomia que cumpriu importante papel na consolidação econômica do Rio Grande do Sul como uma das regiões mais desenvolvidas do país, no início do século XX.

Ao longo das décadas seguintes, o Brasil experimentou sucessivos ciclos de centralização e descentralização, sempre associados às grandes inflexões políticas. A própria formatação do federalismo brasileiro no processo constituinte foi permeada pela tensão entre as lideranças regionais e as alianças nacionais em torno de José Sarney e dos interesses de transição do antigo Regime, resultando em um sistema confuso e de grandes sobreposições nos planos político, administrativo e fiscal.

Esse panorama tem o objetivo de chamar a atenção para um fato elementar: o jogo federalista nunca foi um jogo cooperativo de solidariedade inter-regional. Elegantes arrazoados econômicos não servirão para sustentar um “pacto” mais harmônico, assim como “fazer o dever de casa”, na expectativa de que a União nos reconheça, só fez agravar a situação do Rio Grande do Sul, como no Governo Antônio Britto, quando se reforçaram os mecanismos de desoneração fiscal do Fundopem, apoiou-se amplamente a criação da Lei Kandir (LC nº 87, de 1996) e foi firmado o acordo de renegociação da dívida do Estado com a União. Estas três frentes, hoje, juntamente com a previdência, são os grandes enxugadores da capacidade fiscal e administrativa, já limitada, que os Estados conquistaram em 1988.

Pouco ou nada pode fazer, em termos de gestão fiscal, um estado que vive sob tais amarras do jogo federativo. Cerca de 90% da arrecadação tributária que compete ao Rio Grande do Sul é oriunda do ICMS, cujas renúncias sobre o potencial de arrecadação, via créditos presumidos, para fins de atração de investimentos em um contexto de “guerra fiscal”, chegaram a R$2,5 bilhões, em 2016. Em desonerações de exportações, o montante alcançava R$8 bilhões, em 2015, cuja compensação legalmente prevista, pela União, não chegou a 10% desse valor. Vale lembrar que o déficit aprovado na LOA de 2017 é de quase R$3 bilhões.

Aos estados foi delegada, na Constituição, a responsabilidade de administrar boa parte dos principais serviços diretos à população, ao mesmo tempo em que os colocou em permanente disputa por uma fatia de apenas de 25% do “bolo tributário” nacional (dados de 2015). Enquanto nossos governantes não entenderem que o jogo é político, conflituoso e no plano federal e continuarem desmantelando inutilmente nossas estruturas administrativas em troca de migalhas orçamentárias, comprometeremos cada vez mais a nossa capacidade de pensar no futuro e conquistar espaços na arena nacional.

.oOo.

Tomás Pinheiro Fiori é Professor Adjunto da Escola de Negócios da PUCRS, Coordenador do Núcleo de Desenvolvimento Regional (NDR) da Fundação de Economia e Estatística Siegfried Emanuel Heuser.


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora