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20 de janeiro de 2017
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09:00

O Chimango da Serra

Por
Luís Gomes
[email protected]

Por Tau Golin

Os hábitos de dois pássaros são execrados pelos rio-grandenses: o “chimango” e o “anu”. O primeiro chamado desprezivelmente de “vira-bosta”. De tão inútil em prover seu sustento cisca no esterco fresco dos outros animais, em especial do gado vacum e cavalar, para se alimentar daquilo que passou sem ser consumido pelo estômago alheio. Em comum, os dois têm o hábito oportunista de se apossar dos ninhos dos demais.

Por causa de tais predicados, o político e escritor Ramiro Barcelos, com o pseudônimo de Amaro Juvenal, escolheu os atributos do primeiro para caracterizar desafeto Borges de Medeiros no poemeto campestre Antônio Chimango, publicado em 1915. A figuração comparativa foi tão incisiva no imaginário sulino, que “chimango” passou a denominar a facção borgista do Partido Republicano Rio-Grandense (PRR).

A genialidade de Barcelos detectava dois tipos políticos em afirmação com métodos particulares na jovem República brasileira, invariavelmente encontráveis no cenário rio-grandense com costumes regionais folclóricos. A tipicidade de suas carreiras se sustentavam pelo apadrinhamento e pelo uso do Estado na perspectiva pessoal, sem considerá-lo um bem público. Tais políticos fornecem farto material para o folclore e para o humor – os caricaturistas deitam e rolam.

No caso de Barcelos, o seu narrador é o mulato trovador Lautério, tropeiro biógrafo “de um tal Antônio / Chimango – por sobrenome, / magro como lobisome, / Mesquinho como o demônio”. Mesmo sendo um sotreta, de tanto que o seu padrinho protetor (Júlio de Castilhos) lhe deu marmelada, “Co’aquele doce nos queixos / Acudiu logo o mosquedo.” Então, “foi aprendendo bem cedo / que, quem tem doce pra dar, / Fica logo popular…”

Tratando-se de uma metáfora política, aquele que usa as guloseimas do Estado para empandilhar a sustentação do cargo.

E o apadrinhamento, no presente, por óbvio, não tem mais somente aquele poder fisiológico ungido pelo caudilho, ou pela corporação, que Lautério chama de matilha. O apadrinhamento simbólico-midiático continua governando os obedientes, como se a cada pleito o coronel Prates/Júlio de Castilhos chamasse o Antônio Chimango/Borges de Medeiros para determinar a sua vontade e escolha:

Um dia chamou o Chimango
E disse: – “Escuta, rapaz,
Vais ser o meu capataz;
Mas tem uma condição:
As rédeas na minha mão,
Governando por detrás.”

“Sei que é maturrango,
Porém dou-te preferência.
Nisto esta minha ciência,
Escolhendo-te entre os outros;
Eles sabem domar potros,
Mas tu tens a obediência.”

Participa da imaginação de Barcelos até uma cigana que prevê os desdobramentos daquela escolha: “Virabosta é preguiçoso, / Mas velhaco passarinho; / Pra não fazer o seu ninho / Se apossa do ninho alheio; / Este há de, segundo creio, / Seguir o mesmo caminho.” Nomeado capataz pelo padrinho e dono da estância, seguiu seus preceitos de governar: “Quando vires um peão, / Mesmo o melhor no serviço / […] Bota pra fora da Estância, / Mas sem fazer rebuliço”. A gestão “é cabresto curto”.

E, assim, quando patrão morreu (o que se pode comparar à ausência de estadistas ilustrados), o Chimango, “Como capataz que era / Tinha a sua camarilha, / Que escorava de forquilha / Seus projetos de ambição; / A quem tem poder na mão / Nunca lhe falta a matilha”. Por consequência, os medíocres fazem carreira com estes enredos, a exemplo do Chimango astuto, que “foi juntando torresmo”, “tomou tudo e até a inhapa.”

A peonada de lei, que somente cuidava da lida, quando se deu conta da trama “armada pelo Chimango”, ficou impressionada, pois “sabia que aquele frango / esporas mesmo não tinha; / Não aguentava uma rinha, / Nem sustentava um fandango.” Mas era tudo verdade. “O Chimango no poleiro / E sem mais ouvir conselho, / Foi levando tudo a relho / Sem resistência e folheiro.” Por ser campeiro sotreta, matungo sem pendor, atropelou sua ira contra “Tudo o que era de valor / Daquela gente campeira / Que tinha feito carreira”, mas que “Não vale nada hoje em dia, / Não passa de bagaceira”, na fúria perversa do impostor.

O poemeto de Ramiro Barcelos parece um libelo sobre o espectro de uma maldição que condena o Rio Grande. O Estado é uma espécie de casa-ninho que seguidamente é ocupada por chimangos e anus. Seus versos da segunda década do século XX parecem poetizar o cenário contemporâneo. O intruso da vez chegou de uma revoada da serra.

Pobre Estância de S. Pedro,
Que tanta fama gozaste!
Como assim te transformaste
Dentro de tão poucos anos!
De destinos tão tiranos
Não há ninguém que te afaste!

Na mão do triste Chimango
O arvoredo está no mato;
O gado… é só carrapato;
O campo… cheio de praga,
Tudo depressa se estraga,
No poder de um insensato.

Os açudes arrombados,
As invernadas abertas;
As vargens estão desertas,
Onde o gado andava em pontas;
E ali só se fazem contas
Por debaixo das cobertas.

Basta o Chimango querer
E não há mais embaraço;
Quem resmunga vai pra o laço,
Pois a regra é obedecer.

E ansim tudo na Estância
Vai mermando devagar,
Tudo de pernas pra o ar,
Nem tem mais vergonha a gente;
Mas o Chimango… contente
Que é coisa de admirar!

Vai morrendo, pouco a pouco,
Rolando para um abismo.

Rolando para um abismo.

.oOo.

Tau Golin é jornalista e historiador.


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