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6 de dezembro de 2016
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10:00

A difícil proporção as coisas

Por
Sul 21
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Por Tau Golin

A tragédia da Chapecoense, em toda a sua radicalidade social e humana, reflete os sentimentos e o que é a sociedade regional/nacional em seus limites. Em situações desta radicalidade são difíceis as proporções das coisas, o equilíbrio, a delicadeza da celebração dos mortos, a dor das perdas e as manifestações de reconhecimentos às vítimas.

A tragédia recebeu uma produção de espetáculo e os sentimentos oscilaram entre a comoção e o nojo, em que nem sempre se respeitou o drama íntimo do luto dos familiares. Comprovou-se, mais uma vez, apesar da dor, que, ao cabo, os vivos pretendem ser mais vivos e se capitalizarem diante de qualquer evento, não perder a oportunidade.

Em todo o processo, desde o acidente, juntamente com as informações e celebrações, a imprensa em geral disputava audiência, seus “profissionais” falavam mais de si, se colocando dentro do fenômeno. Independente do estilo, dramático, amiguinho dos jogadores, dirigentes ou colegas, o rodo era acumular referências, se colocar na “história”. Jamais a busca de informação oportunizou tanto nojo.

É justificável a impossibilidade absoluta do controle sobre eventos desta magnitude. Por isto deu de tudo. Em determinados momentos, se transformou em festejo, promoções, e se esqueceu inclusive dos mortos…

Todo o povo e cultura tem a sua forma singular de chorar, festejar, ou maneiras distintas de celebrar seus mortos.

Em Chapecó se escolheu o espetáculo midiático. Todavia, com muitos cuidados políticos. Os resíduos da “maldade”, de presenças ofensivas à cidadania foram cuidadosamente blindadas, a exemplo do presidente golpista Temer. Só esse fato já revela a produção calculista. Mas o povo e seu coração bondoso, os deixou em segundo lugar, deu mais uma demonstração de tolerância, e os ignorou, muitos apertando a ofensa no fundo do coração; no máximo, uma pequena observação de alguns pais junto à dor da perda.

Mesmo confusões simbólicas reveladoras de seleções e esforços subjetivos de esquecimentos entraram na cerimônia. A Terra Indígena de Condá é uma espécie de reserva, de confinamento dos Kaingangs, para ocupação do território deste povo originário pelos colonizadores. O cacique Condá* perdeu a vida no enfrentamento dos invasores. Com o passar do tempo, os intrusos foram fazendo seleções “toleráveis” e incorporaram fragmentos emotivos dos indígenas em sua identidade imaginada. Mas os Kaingangs reais, com seus costumes e adaptações aos tempos, na luta desesperada para sobreviver como povo, ainda constituem comunidade expressiva, também são os mestiços do povo da região, estão na formação dos caboclos, legaram quase toda a alimentação que constitui a chamada “comida caseira”, ofertaram o mate, originário de seus ervais ancestrais e a espetada de carne.

Se não fosse o Kaingang, sequer o território do oeste catarinense pertenceria ao Brasil. A relação documental deste povo originário com Portugal e Brasil foi um dos principais argumentos do Barão do Rio Branco para obter ganho de causa no arbitramento internacional julgado pelo presidente Cleveland, dos Estados Unidos, na disputa com a Argentina.

Todavia, apesar do “aceite” dos indígenas pelas palavras, a produção do evento do Estádio Índio Condá depurou as imagens, fato que impede a formação de afetividades, ameniza os ódios e promove os reconhecimentos pela alteridade. Os indiozinhos eram brancos fantasiados de apaches mirins cinematográficos e televisivos. São nos festejos coletivos em que também se matam os índios reais, a exemplo do Kaingang, povo originário do Planalto!

Grandeza dos Kaingangs, à parte, fora do gramado espetaculoso, fizeram um ritual respeitoso, com o significado da transcendentalidade às vítimas do acidente. Segundo o índio Eliel Inácio, 22 anos:

“A gente mora na aldeia Condá, da etnia Kaingang. E aquele ritual significa muito para nós. Passar aquela energia do guerreiro porque eles morreram como guerreiros para nós. Essa homenagem era feita para os guerreiros. Fizemos o ritual em solidariedade às famílias, que, assim como nós, estão sofrendo muito. Não só nós, o Brasil, mas o mundo inteiro está sofrendo muito com essa tragédia. E a gente fez esse ritual para dar força ao espírito do clube, espírito dos familiares, espírito do Brasil. Justamente isso que estamos fazendo no ritual. Para que as almas vão juntas para o céu junto com o Topé, nosso deus, lá no céu. E a gente acredita que eles vão morar no céu. A partir do ritual que a gente fez eles vão em paz.” (Sport TV.com. 01/12/2016)

Concepção muito diferente do cenário do estádio. Quando a vida se transforma em espetáculo, a “realidade” depende das escolhas do poder simbólico da produção! Apesar da dor produzida pelos mortos da tragédia, por derradeiro, o que está no campo de jogo é o interesse dos vivos.

*O cacique Vitorino Condá fez diversos protestos e reivindicações ao governo brasileiro para garantir terras aos Kaingangs, que estavam sendo usurpadas pelos intrusos. De sua luta na metade do século XIX originou-se a garantia de um território indígena mínimo, enquanto o espaço ancestral Kaingang era usurpado. Entretanto, geopoliticamente, o Itamaraty ainda usou a história Kaingang para garantir o oeste de Santa Catarina e Paraná para o Brasil no arbitramento internacional em disputa com a Argentina.

Índios kaingang fazem ritual para vítimas do acidente (Foto: Reprodução/SporTV)
Índios kaingang fazem ritual para vítimas do acidente (Foto: Reprodução/SporTV)

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Tau Golin é jornalista e historiador.


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