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8 de julho de 2014
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11:14

Cabeças de grileiro (I)

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Cabeças de grileiro (I)
Cabeças de grileiro (I)

“Justiça, não esbulhando mais os índios das terras que ainda lhes restam e de que são legítimos senhores.” (José Bonifácio, diretriz historicamente derrotada do patriarca da independência à Assembleia Nacional Constituinte do Brasil. Apontamentos para a civilização dos índios bravos do Império do Brasil. 1º de junho de 1823.)

Imagine a seguinte situação: você sempre viveu com todos os seus parentes em um prédio legitimamente de sua família. Depois de incontáveis gerações, bandos começam a cercá-lo, tentam invadi-lo, matam seus familiares, estabelecem um bloqueio e, por fim, impõem uma condição: Todos devem ficar confinados em um só andar.

Os demais são loteados para outros moradores.

Como se está em um Estado-nação, lavra-se escritura de que aquele andar é “legalmente” da União e você pode tão-somente usá-lo.

Passam os anos e os invasores decidem que um andar é demais e reduzem novamente o espaço. Aqueles seus parentes resistentes, não amanhecem, são mortos ou transladados para lugares distantes ou largados a esmo. Do processo participam lideranças políticas, antigos invasores, seus parentes e aliados, além de um movimento articulado do colonato. Durante décadas, três governadores são aclamados e liberam o despejo violento à Brigada Militar, bugreiros e assassinos.

O Congresso Nacional acha uma demasia e abre uma CPI. Por você não ter nenhum parente na magna casa, o silêncio continua habitando a sua alma, a sua dor, indignação, e o país em que você vive permanece mudo, apenas alguns resmungos representam sua tragédia. Maculado o país com a chancela da barbárie contra a sua família, envergonhado pela cumplicidade do Estado-nação, depois de viver uma ditadura militar que o dilacera, resolve amenizar alguns problemas.

Convoca uma Constituinte e escreve uma nova Constituição. Nela, reconhece a sua tragédia, mas permite que você só pode retornar para o andar de confinamento. O restante do prédio, construído por incontáveis gerações de sua família já não lhe pertence. Os demais locais, cemitérios, lavouras, etc., você pode reivindicar apenas sob determinadas condições altamente comprobatórias. Mas como a sua família tradicional registra sua existência pelas memórias, pelos documentos materiais de seus artefatos nos territórios, sua probabilidade de sucesso é pequena.

Mas você acreditou que como o país chegou ao Estado de Direito a reocupação do andar do prédio era líquido e certo. Ledo engano.

Tomemos o processo acima como chave de entendimento. Como você se sentiria?

Agora pegue o seu sentimento e imagine, saia da esfera da suposição e entre no mundo real. E coloque no seu lugar um índio.

Troque o prédio por um território.

Substitua os apartamentos do andar de confinamento por reservas indígenas.

Constate que os apartamentos ou peças perdidas neste andar são reservas usurpadas ou reduzidas. Mais surpreendentemente, parentes que acreditava exterminados emergem das matas, sobreviventes e/ou alguns de seus descendentes retornam de longínquos lugares para onde foram removidos.

E imagine que você e seus parentes andam desesperadamente em busca de seu direito, já não mais com a escritura de um prédio, substituída pela de um andar. Porém os outros “condôminos” também estão com escrituras chanceladas por governantes que ilegal e unilateralmente não respeitaram as decisões legítimas do Estado, em seus níveis federal e estadual.

A única saída que você tem para não se indignar, para não vomitar de asco, é imaginar que você não é mais humano, ou você é um subumano; que você não pertence mais a civilização.

Quando a alteridade deixa de fazer parte da sua vida é assim que você pensa, age e, o pior, fala, propagandeia. O mundo é você e a sua mente. Os outros não existem, ou estão em cotação condenável, regida pelos seus paradigmas. Você é o modelo para toda a terra. Dogmaticamente, o mundo é a sua perspectiva.

Conforme neurocientistas, a mente é o cérebro funcionando. No Rio Grande do Sul – e em muitas regiões do Brasil -, na questão indígena, o ódio é o combustível que move esta engrenagem. O capitalismo grileiro, produtivista e agroexportador, conquistou a mente da maioria da população. Na região colonial, norte e noroeste do estado, seu imaginário abjeto possui ainda componentes racistas. Empedrado em um conceito produtivista, aos indígenas, como sobreviventes, vítimas de etnicídios, não se atribui nenhum direito à história; agigantam-se contra eles as forças que negam-lhes a possibilidade de futuro; aos mais destroçados, impedem que possam juntar os pedaços e reinventarem-se como povos.

Tau Golin é jornalista e historiador.


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