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11 de março de 2021
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21:31

No alto do portão estava escrito: “o trabalho liberta!”

Por
Sul 21
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No alto do portão estava escrito: “o trabalho liberta!”
No alto do portão estava escrito: “o trabalho liberta!”
Imagem de Peter Tóth por Pixabay

Tarso Genro (*)          

No dia 13 de maio de 1818 – nos meses da Inquisição – “onde a Corte se encontrava há cerca de uma década”, o Rei D. João VI firmou um decreto através do qual rogava ao Papa a designação de D. José da Cunha Azeredo Coutinho como último inquisidor-geral, a título de recompensa, porque ele não exortara – como fizeram a maioria dos prelados na época – os seus diocesanos a apoiarem os invasores franceses. A posse do novo inquisidor efetuou-se sob a luz trêmula e temível das luminárias da tradição, como ocorria nos antigos rituais do Santo Ofício.

Mas a Europa mudara e a tradição de todas as gerações mortas deixava de oprimir – por um certo tempo- os cérebros dos vivos. Na História da “Inquisição Portuguesa” (G. Marcocci e J.P Paiva, Ed. Esfera dos Livros”) os autores encerram a primeira página do capítulo “As últimas horas do Santo Ofício” (pg. 430), com um período iluminado: “todavia, estas luzes não eclipsariam as sombras em que a Inquisição vinha a ocultar-se e que os ideais de igualdade e liberdade da Revolução Francesa ainda mais se acentuaram”.

Esta lembrança paira sobre nós como um chamado àqueles ideais. Todo o egoísmo nacional vital, que se acelerou com o domínio do capital financeiro sobre os Estados endividados, que vem dividindo a sociedade de forma cada vez mais acelerada – entre pobres-miseráveis e ricos – nos levou a uma situação limite: ou compomos pela força da política uma ordem mundial minimamente solidária ou equânime, face às lições brutais da pandemia, ou teremos um Estado de Guerra permanente que levará à Humanidade ao apocalipse pela peste. O discurso de Lula foi um alerta e uma esperança, que deve ser complementado com uma grande Frente pela vida, contra o fascismo e a sua perversão ultraliberal.

A fala do Presidente Lula ecoou em todo o mundo. O Brasil retornou à cena pública mundial pela voz de um estadista originário do mundo operário, que fez um Governo original, em um país que nem a sofisticação intelectual de FHC – hoje mais Príncipe do que sociólogo – conseguiu projetar como um sujeito respeitado na ordem global. Personalidades políticas de várias posições do campo da democracia liberal olharam para o Brasil como se respirassem   o ar fresco de uma manhã fantástica.

O destino da ordem mundial -no seu “novo” normal- será um velho normal piorado pela redistribuição do pagamento dos custos da tragédia, que os países ricos promoverão arbitrariamente, segundo os seus interesses. Por isso podemos prever – com pouca margem de erro – que derrotados o fascismo e a loucura instalada no poder, a política externa de países como o nosso vão ser determinantes para – a partir de uma relação cooperativa e interdependente com soberania –  nos erguermos da crise melhores do que antes.

FHC não teve o mesmo respeito adquirido por Lula não porque foi incompetente como governante, pois não o era. Mas sim porque mimetizou a política das nações “liberais” ao redor do globo, de forma gratuita e sem recompensas. Tornou o Brasil, com seu desempenho, um país de “baixo custo”, desrespeitado no sistema financeiro dos países ricos e facilitando a vida -não dos seus investidores na produção- mas dos seus especuladores com a dívida dos países que estão dentro do círculo da fome.

A ordem mundial era (e é) assimétrica – como dizia FHC – achando que com essa “baita” descoberta já dispunha de uma justificativa da submissão do seu Governo à visão social democrata em declínio, que passava de uma posição que defendia a proteção do Estado aos mais débeis – economicamente – para a defesa de um destino “tecnológico” em que as ofertas de trabalho no capitalismo teriam, na tração humana dos entregadores, a substituição de um modo de vida sem serviços e trabalhos regulares.

A política externa brasileira tem como voz pública um adepto das ideias mais obscuras e retrógradas da existência da nossa República e ele representa, no cenário exterior, a necrofilia política que orienta o Governo nas suas questões internas, centradas no tripé: armamentismo irrestrito para fortalecer as milícias, negacionismo científico para expandir a morte e tornar a população indiferente à barbárie; e reformas para aniquilar o que nos resta do Estado Social, sem colocar nada no seu lugar.

Trata-se, assim, de destravar os instintos mais baixos e as fantasias mais perversas dos seres humanos, que serão colocados no limite – ao naturalizar a barbárie – entre morrer pela fome ou morrer pela doença e assim despertar a selvagem concorrência entre eles, para sobreviverem entre esmolas e ajudas emergenciais cada vez menores.

Seja quem for que nos governe no próximo período – com a vitória de um candidato do campo progressista e antifascista – temos que pensar rapidamente em um internacionalismo democrático concreto, para enfrentar o terrível quadro da pós-pandemia. Bolsonaro lutou para colocar o país numa “escolha de Sofia”, que no fundo se assentava na opção entre Trump e o seu séquito fascista ou um Golpe de Estado, apoiado nas milícias que ele quer cada vez mais armadas.

O eixo central do antifascismo e da reconstrução produtiva e política do país deve nortear as relações exteriores do Brasil, retirada a direção do Estado das mãos dos insanos. Os cadáveres estão sendo empilhados e o insano maior continua governando. Da sua brutal indiferença sobre a vida humana – porque ele não é “maricas”, nem “coveiro” – brota uma lava de ódio numa sociedade cada vez mais desigual, que se dissemina em forma de uma pirâmide necrófila que se assemelha aos campos de Elsen, Berla, Buckenwals e Auschwitz.

(*) Tarso Genro foi governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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