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1 de novembro de 2020
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11:00

Lula, Ciro: o vazamento benigno lembra Mattelart em Porto Alegre

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Sul 21
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Lula, Ciro: o vazamento benigno lembra Mattelart em Porto Alegre
Lula, Ciro: o vazamento benigno lembra Mattelart em Porto Alegre
Ciro Gomes e Lula (Foto: Ricardo Stuckert/Instituto Lula)

Tarso Genro (*)

A conversa entre líderes, o contato pessoal, o diálogo público e inclusive a controvérsia radical entre personalidades ideologicamente opostas, que integram o modo de fazer política na democracia, fazem a superioridade – em termos políticos – da democracia liberal em relação aos regimes de partido único e às ditaduras e totalitarismos em geral. Quando a democracia é assaltada nos seus fundamentos, seja pela perversão da informação, pela violência ou pelos oligopólios midiáticos – pela força do dinheiro instalada no modo de fazer política – a democracia resseca: as instituições são assaltados pelo medo ou pelo oportunismo e os partidos podem tornar-se amorfos e passar de uma fase de inércia para uma fase de decadência ou irrelevância.

Quando este fenômeno se instala é a hora das reservas morais acumuladas na esfera da política, dos homens e mulheres que -mais além dos curtos espaços da conjuntura- encarnam o espírito das épocas futuras, superam as suas adversidades, concertam acordos e consensos para derrotar, o mal maior: a hidra do fascismo, no nosso  caso concreto, aliada da ignorância, da má fé, do negacionismo da ciência, da razão e autor da semeadura da política necrófila. Por isso a conversa de Lula e Ciro, dois dos grandes líderes democráticos do país, benignamente vazada por alguma alma inteligente, pode fazer história no país.

Na sua “História da Utopia Planetária” (Sulina, P.Alegre 2002), Armand Mattelart – numa parte do seu livro em que fala da “democracia telegráfica ou do nascimento de uma utopia”- escreve o seguinte: “não
há democracia possível ‘além do alcance da voz’, acreditava Jean-Jaques Rousseau”. Esta posição é “contestada por Alexandre Theóphile-Vandermond (1735-1796) que, em março de 1795, se apóia em outra língua, a de de sinais do código telegráfico”, para  tentar desmentir Rousseau, já que o alcance da voz fora superado pelo som da linguagem cifrada.

Independentemente do sentido que Mattelart empresta ao seu raciocínio, é claro que Rousseau, o filósofo, e  Teóphile-Vandermond, o matemático-músico e químico, se confrontam no espaço da razão. Sobre o debate, prossegue o autor, “Barrére também se empolgou” (dizendo que o telégrafo é) um meio  que tende a consolidar a unidade da República, pela ligação, íntima e súbita, que ele dá a todas as suas partes…”.

Neste livro, reiterando o que já tinham expressado Castoriadis, Mário Soares, Boaventura Souza Santos, Eduardo Galeano, Ettore Scola, Mássimo Dalema, Álvaro Cunhal, Chico Buarque e muitas outras personalidades das artes, da ciência e da política, Mattelart escreveu na sua contracapa: “Sinto-me especialmente feliz por ver este livro publicado em Porto Alegre (…) porque ao organizar o I Fórum Social Mundial, em janeiro de 2001, a cidade tornou-se um símbolo universal: o da crença de que um outro mundo é possível”.

Mattelart acrescenta um dado curioso: “o templo da religião da humanidade, na capital gaúcha, e as estátuas de alguns de seus governantes não são testemunhos da influência durável, deixada aí pela utopia contista? No fim das contas, não é por acaso que esta história da utopia planetária seja lançada em Porto Alegre! A fluidez na informação do mundo, que revolucionou a distância entre as pessoas, a partir dali, reforçou a “ligação, íntima e súbita” entre os humanos.

A reflexão de Mattelart, carregada do orgulho que temos – milhares de nós – pela construção desta experiência, choca-se com o tempo vivido deste pesadelo de obscurantismo e ódio de classe, que prepararam a  política necrófila e genocida que nos sufoca. Ela se firmou com a patética empulhação dos “dois extremos”, apoiada nas classes dominantes, que agora se olham no espelho e vêem, nele, o rictus doentio do seu ídolo oco de ideias e lotado de impulsos assassinos. A estratégia da falsidade que jogou com o medo dos extremos leva-os ao abismo e saltar sobre ele exige acasos conjugados, perseverança e sobretudo recuperar o que Mattelart apontou como necessidade de renegar o aprofundamento do abismo e  das “dissociações entre os mundos sociais”.

A subjetividade política aí conquistada pode ordenar o “mapa caótico de fragmentações”, para fazer surgir os “bolsões de resistência”: os acasos, às vezes, chegam nas horas certas, a perseverança e a capacidade política -de liderar e propor- sempre são recuperadas juntando os pedaços daquele mapa fragmentado, com a voz unitária dos líderes, através de um programa mínimo de unidade imediata, para superarmos o pior das três crises: a econômica, a sanitária e a ambiental.

Chego no ponto que me interessa na atual conjuntura: o “vazamento benigno” do encontro de Lula com Ciro é um acaso que, se for regado pela ação consciente de ambos os líderes, pode restaurar a vontade democrática da nação e jogar a extrema direita fascistóide e seus asseclas ultraliberais no lugar da História que eles merecem: o das tristes lembranças do lixo autoritário. Flávio Dino, Requião, Freixo, Boulos, Haddad, Juliano Medeiros, Lupi, Marina, dirigentes do PSB e dos pequenos partidos de esquerda, sabem que nas circunstâncias atuais só a ampla unidade contra o fascismo é o antídoto histórico para recuperar o espaço político de lutas que foi empestado pelo fascismo.

(*) Tarso Genro foi governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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