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5 de julho de 2020
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17:13

As colunas de fogo e os vis liberais amigos do fascismo

Por
Sul 21
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As colunas de fogo e os vis liberais amigos do fascismo
As colunas de fogo e os vis liberais amigos do fascismo
Ditador fascista italiano Benito Mussolini (Reprodução)

Tarso Genro (*)  

Em 19 de julho de 1922 quando Benito Mussolini fala no Parlamento, reforçado pelo terror das suas forças irregulares, os “Fasci de Combattimento” estão organizados e em plena ação criminosa nas ruas e nos campos italianos. São ex-soldados e oficiais, que lutaram na Primeira Guerra – marginais aventureiros sem rumo – desempregados famintos e sociopatas de todas as origens de classe. Estas forças arremeteram, já armadas, contra os camponeses, os sindicatos, os intelectuais e as organizações políticas democráticas da sociedade.

Venceram pelo medo e pela morte. Foi como se o povo fosse vítima de uma pandemia de liquidação das subjetividades e de de diluição da dignidade cívica, necessárias à vigência de qualquer regime político que seja fiador da segurança pública. E a insegurança, hoje, é a centralidade da política e suas asas desajustadas percorrem -como uma sombra sufocante- os territórios do capitalismo do desastre. Neles, as pessoas deverão se acostumar a lutar -umas contra as outras- até anular as mínimas relações de solidariedade que formaram a espécie humana.

O “Duce” que fala no Parlamento, então,  já está amparado na adesão forçada, obtida pela sangrenta coerção miliciana, contra os setores mais sofridos do povo italiano. E pode discursar com arrogância: “se porventura surgisse desta crise um governo de violenta reação antifascista (…) nós responderemos com a insurreição (…) espero que o fascismo chegue a participar da vida do Estado, por meio de uma preparação à conquista legal”.

Uma semana depois, no seu escritório de Milão, ele observa os movimentos de Felippo Turati -o “patriarca do socialismo italiano”- que se prepara para conversar com o Rei. O tema era a hipótese de participação no Gabinete liberal, visando bloquear o ascenso fascista. O drama da democracia liberal representativa é, então, ou absorver os socialistas para tentar bloquear o fascismo ou absorver o fascismo e arriscar a vigência permanente do terror de Estado.

A história registra a escolha: entre 1922 e 1924 Mussolini integra o Governo -não Turati- e governa de forma conciliatória. Em 1924, em meio “a espancamentos, prisões e fraudes, os fascistas e seus aliados conseguem 23 das cadeiras do Parlamento”, após uma reforma política que estimula -de forma inequívoca- as alianças com a extrema direita. Italo Balbo, dirigente fascista e assassino reconhecido, anota no seu diário: ‘temos de criar no adversário a sensação de terror!”.

Às vezes a História não se repete, nem como farsa, nem como tragédia. Repete-se como alegoria, com desfechos construídos por sujeitos esquecidos, ocultos no presente imediato. Em pleno Regime Militar, o General Silvio Frota, que articulava um golpe contra Geisel, é demitido do Ministério do Exército pelo então Presidente Geisel (12 de outubro de 1977), sendo substituído pelo General Bethlem. Ele comandava o III Exército e sua ascensão foi feita sem submeter o “golpista dentro dentro do golpe” (Frota) às instâncias da Justiça Militar. A omissão reforçaria um consistente pacto corporativo, dentro do Exército Nacional, que permitia o convívio entre divergentes explícitos.

É o pacto ainda que hoje mantém Bolsonaro no poder, até hoje, no qual convivem -em relativa harmonia- militares constitucionalistas e golpistas de extrema direita. Os  que ainda vivem na época da Guerra Fria e os que mandariam Petain para a prisão. De Gaulle mandou Petain -traidor da República, que apoiou a ocupação nazista- para prisão perpétua na Ilha de Yeu, mas Geisel mandou Frota para a boa reserva remunerada. É o pacto, selado numa História não lembrada, que constantemente ameaça a Constituição da República e o convívio político numa democracia estável, fundada na Lei e na Ordem da Constituição legítima.

Bolsonaro testou ao limite as instituições do país, pregando abertamente um golpe de Estado, desafiando a ciência e o mínimo bom-senso no enfrentamento da pandemia. Aumentou brutalmente o número de mortos pela catástrofe sanitária e protegeu -de forma direta e inequívoca- as possíveis atividades fora-da-lei, de cada um de seus filhos. Nenhum Presidente ficaria no poder com um currículo de primeiro ano de Governo como este construído por Bolsonaro. Ele humilhou constantemente o Itamaraty, a inteligência científica e acadêmica do país e o próprio STF, que revelou -neste contexto- uma coragem extraordinária.

Bolsonaro simula, agora já apoiado pela Globo, por FHC – resvalando para uma “tolerância” indigna com a extrema direita- que está “fazendo as pazes” com a democracia. E o faz simplesmente pela contenção dos seus impulsos psicóticos, para conquistar, não somente uma boa relação com o STF como também para estabilizar o “centrão” como comando de Governo: simula uma garantia de retorno à ordem constitucional de 88, que ele sempre desprezou e tentou, por todos os meios, lícitos e ilícitos, destruir.

As “colunas de fogo e de fumaça” de que falava Italo Balbo em 30 de julho de 1922, foram substituídas -na alegoria demencial do avanço fascista bolsonárico- pela forma que ele desafiou o mundo e as instituições, com seu comportamento genocida em relação à Pandemia. O preço que o seu pacto necrófilo pelas reformas -apoiadas massivamente pelas elites burguesas rentistas do país- cobrará do país, terá um resultado brutal para os mais pobres, até o final do presente ano.

A forma e o conteúdo programático com que as oposições democráticas -junto com esquerda política- enfrentarão o desastre anunciado, dirá se o fascismo poderá ser derrotado ou se Bolsonaro, já liberto das travas do seu isolamento, voltará ao lugar mais simbólico do seu desastrado Governo: em  frente do STF, de onde ele  pretende domar a nossa República e mostrar que ela é, no fundo, uma alegoria da modernidade decadente.

Derrotar Bolsonaro em todos os seus movimentos -simulados ou verdadeiros- é o único antídoto antifascista que nos resta. Se a esquerda não promover esta derrota, dentro de uma ampla frente republicana e democrática, ninguém a promoverá. As nossas classes “superiores” já trocaram, desde a deposição de Dilma, a alma da democracia, liberal pela economia cruel das reformas ultraliberais. Mas isso é só uma parte da tragédia que, quem sabe, ainda pode ser vencida,

(*) Tarso Genro foi governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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