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14 de março de 2020
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23:18

Ousar revogar a insanidade pela união nacional antifascista (de Saramago a Fiori)

Por
Sul 21
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Ousar revogar a insanidade pela união nacional antifascista (de Saramago a Fiori)
Ousar revogar a insanidade pela união nacional antifascista (de Saramago a Fiori)
Foto: Isac Nóbrega/PR

Tarso Genro (*)

Se é verdade que a História tem um sentido, no momento em que ela perde aquele sentido ficamos de mãos dadas com a irracionalidade do inconsciente, com o pesadelo e a insanidade transformados em poder real. É quando sentimos o vazio das narrativas históricas perfeitas e as interpretações mais racionais se esvaem: a compreensão do cotidiano fica suspensa num vácuo de imaginação e deparamos -não mais com sombras- mas com espectros. E o próprio ser humano que “faz a história” -em condições que não escolheu- fica aturdido no inferno que são os outros. Vindos dos túmulos abertos da hipnose fascista. Pela memória, recordamos que o corvo de Poe dizia “Nunca Mais”, mas agora constatamos que viver, conscientemente, dentro do pesadelo -que se tornou real- é a superação de todos os pesadelos.

Em 8 de outubro de 98 José Saramago recebe a notícia de que ganhara o Prêmio Nobel de Literatura
e no “imenso corredor de um Aeroporto” viu-se solitário. O choque: uma solidão agressiva -como narra o excelente livro de Ricardo Veil (“Um país levantado em alegria”)-  como solidão de quem não pode, no momento, abraçar ninguém, mas que terá junto de si uma nação inteira. Com as parcas exceções dos fascistas doentios celebrará este evento definitivo para um  comunista convicto, que soube, na sua literatura, ser “a mão esquerda de Deus”.

No livro que celebra os 20 anos desta vitória nacional, criadora do “mito” Saramago -tão humano quanto qualquer um do povo- sua mulher Pilar del Rio revê as palavras do seu companheiro de vida, depois de narrar a criação -em Lanzarote- do seu discurso antológico: “o que mais há na terra é a paisagem (…) ou além da conversa das mulheres, os sonhos que seguram o mundo na sua órbita.”  Os sonhos que seguram o mundo na sua órbita estão na grande literatura, que é tão importante como a filosofia para compreender o mundo.

Sempre recorro à literatura para interpretar momentos inesperados de dominação da loucura, inclusive para reinterpretar a política e suas crises. Penso que não ocorre em Portugal o que ocorre em nosso país -apesar da sucessão no país luso de governos de esquerda e direita- pelo que está expresso em dois acontecimentos magnos recentes, a partir das Revolução dos Cravos: a própria Revolução, na qual os militares varreram o fascismo apoiados na população, de uma parte, e, de outra, o reconhecimento mundial da vida e da obra deste comunista, cuja arte foi reverenciada pela nação inteira e ajudou a fundar um mínimo de diversidade, necessária para a civilidade democrática que a nação frui até hoje.

Lá, tiveram em abril de 74 os militares ao lado do povo, expelindo o fascismo, mas aqui -em março de 64- as Forças Armadas fecharam o regime de liberdades e forjaram na ditadura um sistema político de fachada; lá, tivemos em 88 a unanimidade democrática em torno de Saramago, aqui, temos hoje uma construção “mítica” para instrumentalizar a Justiça e retirar Lula do páreo para colocar um discípulo de Olavo de Carvalho no Ministério da Educação. Lá, ganharam os sonhos que seguram o mundo em sua órbita, aqui venceram os pesadelos que nos transportam ao inferno.

Dois fundamentos, na minha opinião, recomendam a mudança do comportamento político dos nossos líderes que tem condições convocatórias: primeiro,  não é a pandemia que gerou o desastre econômico e estatal que nos submete, mas é a pandemia que, no Brasil, vai bem mais além da tragédia em curso na saúde pública, porque a crise foi conscientemente urdida para provocar a recessão, desmontar o financiamento do SUS e mobilizar ataques rasteiros à credibilidade das instituições.

Ao contrário da poesia que, como diz o querido Armindo Trevisan, quer “ordenar emoções não as ações”, a política quer ordenar  as ações através da razão e da emoção. Com o atual Governo isso é impossível, pois nele falta tanto política como poesia, tanto ciência como literatura, tanto sentido da História como sonhos organizadores da utopia para enfrentar os pesadelos. Não há saída para a crise com este Governo de maldades bizarras que nos assolam.

Segundo fundamento: a História não tem sentido para o Governo atual, porque o sentido que ele quer dar à História não pode aparecer como razão (econômica), tanto porque os seus fins devem ser obscurecidos pela teatralização do poder, como porque eles não sabem governar na normalidade da política.Eles mesmos, os nossos governantes já sabem que -como disseram Fiori e Nozack-
(“Frente ao colapso: uma tentação perigosa), “hoje, a única dúvida que existe é se o desastre à frente assumirá a forma de uma estagnação prolongada, acompanhada da destruição da indústria e do seu mercado de trabalho, ou a forma pura e simples de um colapso” (…) de consequências dramáticas e imprevisíveis.

Socorro-me de propósito -nesta reflexão- de poetas e economistas, porque a dura realidade do ora vivido não pode ser compreendida pelos mecanismos tradicionais da narrativa histórica, na qual os protagonistas ou as suas “facções” políticas ou criminosas, já fugiram ou foram deslocadas dos seus papéis e passaram  a viver num caos universal. Os partidos -tradicionais ou não- reduzem fortemente o seu protagonismo, os líderes mais importantes de cada posição falam pouco entre si, a população está sendo instada a recolher-se -quem os tem- aos seus lares, as ruas tendem a ficar vazias, o desemprego e a exclusão, vão explodir e a pandemia bate a nossa porta.

O que impede que as lideranças  democráticas e humanistas do país, que tenham poder convocatório, façam -unidas- um chamamento  em torno de alguns pontos-chave, para responder -através de um Governo Democrático de União antifascista, aos resultados mais agudos e emergenciais da tragédia?

Lembremo-nos, aliás, que o insano que aí está pode, num ato de loucura histórica já experimentado no país -de uma hora para outra- renunciar e nos pegar de surpresa ou mesmo ser  ‘impichado” com a colaboração reversa da sua própria base parlamentar..

Qual seria o sentido desta unidade:   1. a retomada do crescimento induzido e subsidiado pelo Estado, particularmente nos setores de resposta rápida -agricultura para alimentos, construção civil privada, obras públicas de infraestrutura- para criar emprego e renda;  2. a retomada do prestigiamento dos poderes legítimos da União para o fortalecimento do Estado democrático de Direito;  3. a retomada de uma relação fecunda com a globalização, através do exercício pleno da soberania, selecionando relações internacionais de interesse político e econômico da nação;   4. a reestruturação da dívida externa do país, de modo a nos permitir respirar dentro da crise, para enfrentarmos tanto as mazelas econômicas do atual Governo como também o assalto do Coronavirus. Suponho sim, que tudo isso é muito difícil, mas o mais brutal será a falta de iniciativa das nossas lideranças democráticas, que tratam do calendário eleitoral, como se bastasse a lei para garanti-lo.

As pessoas poderão me dizer, “mas para isso é preciso impicharBolsonaro”, ao que é possível responder serenamente que, por  muito menos que isso, Dilma foi golpeada pelos responsáveis por este caos; poderão dizer, ainda, que é impossível uma unidade tão vasta, porque “a nossa grande burguesia está comprada pelo fascismo, através do preço pago pelas reformas”, ao que é possível responder serenamente -que é verdade- mas que na história da razão e da emoção os projetos tanto podem ser utópicos, como realistas, quando visam enfrentar o que pode vir de pior.

Conformar-se, porém, em viver no pesadelo -que vem se agravando e pode se tornar o caos generalizado com a situação da saúde pública- pode significar o suicídio de várias gerações. A omissão fragmentada em grupos segregados, por razões que pensam ser estratégicas, pode ser o prenúncio do fascismo institucionalizado, mas não o de democracia revivida pela tragédia.

Todas as estratégias desenvolvidas até agora, todas as táticas desenhadas na luta política, todos os programas imediatos dos grupos reformistas -fortes ou fracos- toda a mística revolucionária projetada hoje, como movimentos com força política, deveriam ceder perante um fato histórico irrefutável e monstruoso: o Governo que está aí vem liquidando o Estado Nacional e -pela recessão imposta- liquidando a arrecadação e aumentando a dívida nacional. Com ele só afundaremos na crise e no desastre.

O mal, que já é uma banalidade conciliada com o senso comum, pelo trabalho maioria da grande mídia,
será substituído pela morte como pesadelo em vida: devemos esperar 2022? Ou pelo menos tentar o uso dos mecanismos constitucionais para retomar o pacto democrático de 88, num plano superior?  Se não ousarmos, não disputaremos o sentido da História e ficaremos submetidos às soluções da crise, numa daquelas direções apontadas por Fiori. Jamais se negar a fazer propostas concretas para o imediato, como acabar com o teto de gastos, mas ousar derrotar o pesadelo frio dos caminhos do fascismo, que foram moldado para um destino -como disse Pound-  que “prescinde de adivinhos”.

(*) Tarso Genro foi governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.

 


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