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9 de novembro de 2019
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16:42

Carta a Lula Livre e a Mourão preso (em seus labirintos)

Por
Sul 21
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Carta a Lula Livre e a Mourão preso (em seus labirintos)
Carta a Lula Livre e a Mourão preso (em seus labirintos)
General Hamilton Mourão e Jair Bolsonaro | Foto: Alessandro Dantas/Fotos Públicas

Tarso Genro (*)

Lula disse que o maior legado que recebeu da sua mãe, “que nasceu como morreu, analfabeta, foi o caráter”. O caráter de quem sai de casa com os sete filhos para protegê-los e alimentá-los; de quem encaminha Lula para um Curso Técnico do Senai – para que tivesse uma profissão de futuro -; e sobretudo o caráter que lhe ensinou a “teimar” para enfrentar as adversidades e a humilhação infligida aos pobres, num país de desiguais em tudo.

Lula aprendeu com Dona Lindu a vencer os limites da humilhação reservada a todos os pobres no país injusto. E a não esquecer aquele presente pobre que -no futuro- seria o seu “outro lado”, o da sua origem, o do aprendizado, o lado dos que passaram pela fome e a venceram. E assim fez Lula, que já distante das suas condições sociais de origem, sempre soube -a seu modo peculiar- onde estava o seu verdadeiro
“lado”: o dos excluídos, das mulheres, dos famintos, dos pobres, dos trabalhadores, que estavam no seu olhar e na sua esperança de redenção. A metáfora do “outro lado” é sempre uma metáfora da vida inteira, sob diversas luzes, erros, emoções e lágrimas.

A vida real, “a árvore verde da vida”, é sempre mais rica e mais variada do que a melhor das teorias. No Deserto dos Tártaros” (1963), Dino Buzzati trata deste “outro lado” de cada um. O Tenente Drago, no Forte de um deserto remoto espera a vida inteira pelo ataque dos inimigos Tártaros, que estão num lugar distante quase invisível. Eles mal se movem como figuras esmaecidas num horizonte inóspito, mas eram o ponto partida de uma vida heroica para Drago -por décadas de espera- como. ficção de um presente sem futuro. Os Tártaros provavelmente era uma miragem e a vida do Tenente Drago jamais se mostraria real, pois cada dia seria “uma outra página gasta (…) uma porção de vida que se foi”, o jamais alcançado,
o nunca ter sido: “a metáfora da incompletude humana”.

Todos temos uma relação simbólica com o “outro lado”, pois ele dá sentido às contradições e às curiosidades sobre mundo real, sob as raízes ambíguas da memória. O Inferno e o Paraíso, a vida e a morte, o amor e ódio e suas fronteiras radicais. Eu me lembro do verão de 1952, em que o rio Uruguai na minha São Borja era um líquido prateado que balançava as canoas de pesca, batidas no cais como porongos vazios.

Esta imagem me recorda sempre uma foto de Cartier-Bresson, em que uma criança carrega a baguete
projetada como a sombra de um gato na calçada nua. O cimento do cais era quente e eu de pé-no-chão: o pai me coloca debaixo do seu braço direito na posição em que eu via atrás, minha sombra- também projetada na terra como um pequenino animal que esperneava com alegria debochada.

Quando subíamos na canoa de pesca -recordo-  eu pedia que o meu pai me mostrasse o “outro lado”: San Tomé, na Argentina, o ponto de referência do “outro lado” do rio majestoso. Se nos perdêssemos não ficaríamos invisíveis nos redemoinhos infinitos do rio e veríamos o “outro lado”, o “depois”, como lugar definido em segurança.

Lula conhece o “outro lado” e sabe quem está do “outro lado” do Brasil fictício de Guedes-Bolsonaro. E sabe quais as experiências das suas vidas para interpretar suas esperanças, se não a dos lugares ideais, os espaços mais generosos e mais democráticos, que bloqueiem a Hidra do fascismo e suas mil cabeças pós modernas: a “desclassificação” da sociedade pelo desemprego, a miséria pela precariedade, a pobreza combinada com renda concentrada, misoginia, homofobia, racismo, sexismo e “exceção”.

Lula sabe que democracia e vida cotidiana, com pão, respeito, transporte, saúde e segurança, são as demandas reais do Brasil desmantelado com o apoio ou o silêncio das suas próprias vítimas.Essa que deve ser a fala de Lula para o país, como respostas que tragam significado concreto à democracia política, mais além das grandes abstrações iluministas do Estado de Direito do Século passado.

Através delas é que as abstrações que definem a liberdade moderna, podem voltar a ter significado libertador. Não esqueçamos que o fascismo é o passaporte falsificado -ainda com validade- para que o país atravesse para um liberalismo que odeia o homem livre e que extingue a ideia de paz pela Justiça Social e a ideia de nação republicana, livre do jugo do capital.

Ao contrário do que diz o General Mourão, no seu artigo no Estadão, no Brasil de hoje o terreno da democracia vem sendo minado -não pelo socialismo ou pela social-democracia- mas pelo fascismo, pela desigualdade e pelas milícias. Segundo seus próprios aliados, General, há uma sombra cinzenta de suspeita sobre o esquema familiar de poder do Presidente, este o verdadeiro labirinto através do qual a extrema direita, que aparelha o Estado brasileiro, modela um Governo que presenteia o mundo com
a declaração insana de um sociopata por dia.

O saída de Lula da prisão nos faz lembrar da travessia que temos que enfrentar, para chegarmos ao “outro lado” da liberdade real. Mas o artigo do General Mourão -recuperando o anti-comunismo da Guerra Fria- todavia nos refresca para algumas perguntas que ainda assolam os historiadores do mundo: sem Stálin, o nazismo seria derrotado? o nazismo era pior do que o stalinismo? a Revolução Russa
redundou numa passagem atípica para a revolução liberal-burguesa tardia, do período pós-Gorbachev?

É possível replicar que depende de quem responde, porque as respostas sobre o passado nos colocam num tempo histórico que é pura memória -impossível de ser vivido de novo- e tem a ver -para quem as responde- sobre como as pessoas gostariam de viver no presente.

Parto do pressuposto que a ampla maioria dos brasileiros gostariam de viver um presente de superação da radicalização política e da intolerância em todos os níveis e que o “outro lado” que temos que buscar -daqui para diante- não é a localização de um “culpado” pela devastação política o social do país e pela venda da nossa soberania, pois quanto a isso certamente não teremos acordo. O que temos que perseguir de forma plural, dentro da Constituição -cada lado com suas alianças- é como resgatar o apreço pela democracia combatendo o desemprego, a fome, a precariedade, o desmantelamento da cultura e da educação, a proteção social e ambiental.

General Mourão, o Presidente que o sr. defende não soube se comportar como vencedor dentro numa república democrática e -ao contrário do que fez sempre o Presidente Lula-  não se preocupou em criar um clima de legitimação do seu mandato, mas tratou de deslegitimar e humilhar todos os seus adversários: os reais e os imaginários, inclusive os que surgiram dentro do seu campo político, porque ele carecia de uma identidade programática mínima e também estava preso -não ao regime de 64 como tal-
mas aos seus porões mais espúrios, cuja recuperação seriam premissas de uma nova ordem.

Volto às perguntas que o seu artigo inspira: se a pergunta sobre “se o nazismo seria derrotado sem Stálin?” fosse feita para os Generais americanos e para a Resistência Francesa, os generais e os resistentes que ainda vivem diriam que “não”. Se a pergunta sobre, “se o nazismo foi pior que o stalinismo?” fosse feita para os milhões de judeus, que foram encerrados nos campos da morte e libertados pelas tropas soviéticas, eles -os sobreviventes- responderiam que o nazismo era “muito pior!”. Se a pergunta referente à Revolução Russa -“se ela foi socialista ou não?”- fosse feita para um socialdemocrata e para um comunista de tradição soviética, as respostas de ambos seriam completamente diferentes.

Faço estas comparações porque, quem discute ou polemiza com sinceridade democrática, não pode enquadrar -no seu Juízo- todos os interlocutores num mesmo bloco, como o sr. fez no seu artigo, que
reservou a verdade absoluta para o seu Presidente acidental. Não só porque os coloca – autoritariamente – numa mesma e falsa identidade, mas também (e principalmente) porque propõe uma divisão artificial e arbitrária da sociedade, apenas para defender posições políticas imediatas, instaurando desta forma, uma dialética de “guerra civil” não declarada.

Dou um exemplo: o sr. colocando na mesma cesta a esquerda e FHC, Lula e e o PSDB -tudo “antes” era esquerda no seu artigo!- o sr. nos coloca no mesmo lugar daqueles que aceitam serem chamados de corruptos e mesmo assim são servis o suficiente para apoiar as reformas e as “vendas” criminosas que o seu governo real, não uma miragem – como os Tártaros de Buzatti – estão fazendo contra a nossa soberania.

O sr., General, está adotando métodos de uma guerra fria interna, cujo ponto de partida é a dialética do “amigo” e do “inimigo”, como fazia Hitler, através da sua falsa representação pessoal do Estado, da Nação e do Povo Alemão. De um lado estava ele -Hitler- Estado, Nação e Povo Alemão; e de outro,  estavam judeus, socialistas, comunistas, católicos democratas, democratas de todas as origens, ciganos
e  povos “inferiores”.

O General Mourão -Vice-Presidente da República- olha o “outro lado”, classifica-os, incrimina-os de maneira definitiva, mas não olha o seu lado. Diz, no seu artigo, que “atuando em desfavor da democracia (a esquerda) continuará perdida em seu labirinto” defendendo o “corrupto Lula”.  Nas circunstâncias atuais esta diferenciação -vejam o grau de deterioração democrática do país!- passa a ter especial importância, porque o General Mourão é um político originário do Exército Nacional, que pertence a todos brasileiros e que acabou -como Vice-Presidente- sendo presumido sucessor de um Capitão saído do Exército por desequilíbrios psicológicos e admirador de milícias e milicianos.

Saia do seu labirinto General, Lula vai propor o que precisamos fazer para para salvar vidas da miséria  e da pobreza marginal. Diga se o senhor vai radicalizar uma guerra fria contra inimigos fictícios -criados
pela sua ira sem projeto- ou vai defender o povo concreto do nosso Brasil real. Saia do seu labirinto General, talvez seus inimigos verdadeiros morem num Condomínio sobre o qual o sr. -como Vice-Presidente- já deve ter mais informações do que todos nós.

(*) Tarso Genro foi governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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