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7 de setembro de 2019
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16:22

A morte de José Pio e os cães que mataram Lorca

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Sul 21
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A morte de José Pio e os cães que mataram Lorca
A morte de José Pio e os cães que mataram Lorca
José Pio, de 45 anos, foi morto durante operação da Polícia Militar na Vila Kennedy, no Rio de Janeiro. (Foto: Reprodução)

Tarso Genro (*)

O Brasil hoje é o país das armas, do ódio, da intolerância, do ridículo internacional, cujo Governo pretende forçar um conceito ético de Pátria que só pode ser absorvido por quem a quer construída para quem concorda com a atual “palavra autorizada”. Esta, no fascismo, é aquela que semeia a morte e quer conduzir como gado – ao matadouro moral e físico – os que rejeitam sua visão doentia de nação e discordam daquela “palavra autorizada”. Quem a “autorizou”?  Eis a questão-chave da disputa sobre os rumos da nossa democracia em crise.

A palavra autorizada, na verdade, foi aquela aceita como “natural” pela grande mídia – respondendo as demandas de “empreendedores” como o “Véio da Havan” e as agências de risco porque, como partido
novo-tipo da decadência republicana, foi ela – a mídia – quem proporcionou legitimidade ao Governo de milicianos. Foi para evitar “o mal maior”, dizem os “moderados” do regime: evitar o PT e a democracia plena que o gerou! Para fazer isso a grande mídia viabilizou que a loucura chegasse ao poder de Estado e a insanidade se tornasse o nosso cartão de crédito, com saldo negativo, no mundo globalizado.

Bolsonaro, todavia, quer hoje matar seus principais criadores na órbita da mídia, porque sabe – como seu aliado contingente – que o apoio a ele foi apenas um instrumento de período. Esta compreensão ele já verbalizara, na resposta a uma entrevista de TV, através de algo como “se eu não dissesse isso que eu digo, vocês me trariam aqui?” Um perverso sem auditório é apenas um caso de prisão ou de tratamento psiquiátrico, mas um perverso patrocinado é uma possibilidade de liderança do mal em momentos de crise.

Vejamos agora o particular: “Saiu de casa prometendo trazer o jantar”, diz a manchete da matéria de Felipe Grinberg  do “Globo”, dia 3 de setembro. A notícia precisa – direta e profundamente comovente – trata do assassinato do Pedreiro José Pio de 45 anos, morador da Vila Kennedy no Rio de Janeiro. Ela poderia ter outro título: “saiu de casa no entardecer e foi visto caminhando entre fuzis por uma rua pobre…”. Seria, nesta forma, mais próxima da trágica poética do fuzilamento de Garcia Lorca, erguida pelo poema de Machado, quando este cantou tristemente: “foi visto caminhando entre fuzis por uma rua larga, saiu ao campo frio ainda com estrelas da madrugada.”

Lorca levava nos seus olhos a surpresa da poesia em direção à morte. O pedreiro José Pio “carregava pregos usados na obra”, em que prestava seus serviços de operário. Ambos levaram para o inexplicável as suas inteiras vidas, poesia e trabalho no reino deste mundo. Os seres humanos – poetas ou pedreiros – levam para a morte o suor do seu trabalho, os restos de felicidade que lhe sobram e a poesia, que lhes permitiu contratar com a vida alguns momentos de luz e lucidez. Dias em que o mundo se arma em mil cubos de vidro, iluminados pela manhã ébria de sol.

José Pio saiu disponível para ser morto pelos fuzis de Witzel. Lorca foi levado pelos cães fascistas para que entendesse o seu destino. Os tiros contra Lorca acordaram os céus da República. A filha de José Pio foi acordada quando alguém lhe disse que seu pai tinha sido morto, como na morte de Lorca. Sem sinal e sem defesa. José Pio vai desaparecer, como nome da nossa história trágica, mas estará comungando com Lorca em algum lugar improvável da memória do mundo.

Na morte de Lorca, Machado já lera nos olhos do poeta a surpresa: “a morte é sempre desagradável,
mas antes morrer ciente do que viver enganado.” José Pio nem soube que morreria enganado, pois não intuíra, como Lorca intuíra num poema, que  no entorno da sua vida – na poesia “Romance da Guarda Civil” –  já aparecia “uma vaga astronomia de pistolas inconcretas”, que lhe acompanharia até o martírio.

Lorca foi assassinado aos 38 anos, em 18 de agosto de 1936, trinta dias após o início da Guerra Civil Espanhola. Embora fosse um simpatizante da esquerda republicana, o poeta não era um militante político e os seus biógrafos registraram, inclusive, que ele tinha relações de amizade com José Primo de Rivera, fundador da Falange, organização  da direita nacionalista que apoiou a ditadura franquista e a sanguinária repressão promovida por esta.

José Pio não será lembrado como Lorca. Não deixou uma obra literária, mas para nós  – humanistas antifascistas, socialistas ou não – a vida humana de um poeta e de um pedreiro tem o mesmo valor. A intolerância do tiro seco de um fuzil de Witzel – ou uma sequência aguda dos latidos dos monstros das SA de Hitler –  tem, da nossa parte, o mesmo repúdio que as armas de um pelotão franquista na sanguinária Guerra Civil da Espanha.

O professor Roberto Romano (“Pg .22”, 28 de março de 2013) mostra de forma simples, para os tempos que correm, as relações de interdependência entre moral e ética, numa entrevista lapidar. A ética
– diz Romano – é “social”, é comportamento “coletivo” – não existe ética individual -, mas a “moral exige mais coragem e lucidez do indivíduo”. No seu tempo o indivíduo pode decidir se aceita, ou não, a ética
dominante numa dada sociedade. Com esta aceitação ou repulsa, então, ele se posiciona moralmente como indivíduo.

Sair às ruas dizendo “Viva Hitler” na Alemanha Nazista não exigia nenhuma coragem, pois bastava seguir o rebanho. A fala estaria de acordo com a ética (social) dominante, resguardada nas leis arbitrárias de Hitler, que qualificavam judeus, negros, ciganos, homossexuais, como seres inferiores. O que seria “moral”, todavia – mostra Romano – seria insurgir-se contra Hitler.  Para exemplificar ele cita o exemplo de Gandhi, na Índia Colonial, na qual os nativos eram proibidos de “tocar no sal”.

Seu gesto foi expresso – moralmente – com a frase “eu não aceito esta ordem legal”, repetida muitas vezes. Assim Gandhi orientava uma nova moralidade, para milhões de indivíduos que formariam uma nova maioria política contra a dominação despótica da ética colonial “inglesa”.

“Tocar no sal”, nos dias que correm, é defender um conceito de pátria inclusiva, solidária e generosa, onde também os  adversários possam se olhar nos olhos, – ligados entre si – para rejeitar a necrofilia política do fascismo em andamento. O “tocar no sal” interrompeu a circulação do veneno do conformismo com o mal e com a dominação, que bloqueava a moralidade para formar indivíduos que nasceram para ser livres.

Façamos isso – toquemos no sal – antes que eles consigam aparelhar todo o Judiciário, submeter todo o Ministério Público, dominar toda a burocracia do Estado e até mesmo fazer um novo “acordo” tácito com o oligopólio da mídia, que inclusive pode ser piorado pelo domínio das religiões do dinheiro.

Façamos isso antes que -lembrando as intuições de Lorca também no seu poema “Rixa”-

“O Juiz, com a Guarda chegue pelos olivais (quando já) o Sangue derramado geme a muda cação de serpente.

Quando então tudo será tarde, pois o veneno da serpente já terá percorrido as veias da nação e petrificado os corações do mundo.

(*) Tarso Genro foi Governador do Estado do Rio Grande do Sul, Prefeito de Porto Alegre, Ministro da Justiça, Ministro da Educação e Ministro das Relações Institucionais do Brasil.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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