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25 de agosto de 2019
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12:57

Bolsonaro sai da animalidade e entra na História

Por
Sul 21
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Bolsonaro sai da animalidade e entra na História
Bolsonaro sai da animalidade e entra na História
Protesto contra Bolsonaro em Buenos Aires. (Reprodução)

Tardo Genro (*)  

Matéria publicada pelo UOL relata que um grupo de moradoras de João Pessoa procurou a vereadora Helena Holanda (Partido Progressista), solicitando que a edil as ajudasse numa causa comunitária. Esta “causa” seria a de bloquear o programa “acesso cidadão”, que tinha viabilizado o uso — por de pessoas portadoras de deficiência — da Praia de Cabo Branco, onde as damas residiam. Ali, onde “moravam pessoas ilustres” — segundo as sensíveis senhoras –, aqueles seres humanos estariam “incomodando e tirando a beleza natural do lugar.” É horripilante, mas é sinal dos tempos que vivemos. Neles, os ogros do fascismo celebram a morte e as vezes até dançam com ela na frente dos cadáveres insepultos.

Estas senhoras sempre existiram e existirão. Mas elas só se consideram autorizadas a aparecer quando há um ambiente social e político para isso ou adquirem algum grau de certeza que serão compreendidas, “naturalizadas” ou eventualmente consideradas como capazes de “fazer um tipo”. Elas só aparecem de cara aberta quando têm certeza que não serão tidas como o próprio mal em andamento, ou a desumanidade concentrada. Fouché, que seria predecessor na Revolução Francesa — de Himmler e de Béria já no Século XX –, resumia assim a sua atitude perante a humanidade:  “Retire-se de cada cidadão tudo o que não seja necessário”.

Bolsonaro considera que todos os que não pensam como ele são desnecessários, por isso prometeu metralhar adversários, assassinar Fernando Henrique, liberar a Amazônia para depredação do agronegócio e tentar mandar para fora do país o que considera “esquerdalha” não-patriótica. Só pôde ser eleito presidente porque foi “naturalizado” como um político apenas “atípico” (mito), que representaria um polo de disputa entre dois candidatos de “sinais opostos”. Esta falsa e manipulatória polarização na verdade preparava o país para uma nova forma de despotismo, desejada pelas classes dominantes brasileiras, mesmo que tivéssemos que voltar a formas coloniais de exploração e violência social. Era a inauguração da mentira absoluta e da ilusão hipnótica como método de fazer política. Como no nazismo.

Para Tocqueville, um novo despotismo seria produto de uma cidadania de pessoas “industriosas”, mas “politicamente pusilânimes e ausentes da esfera pública, conformando-se ao comando de qualquer senhor, que lhes prometesse a segurança e o usufruto tranquilo de seu bem-estar privado.” Os atuais sentimentos políticos hegemônicos no país — muito bem promovidos pelos meios de comunicação oligopolizados — podem ter tido ajuda de erros graves de políticos de todas as formações ideológicas do passado recente. E assim ajudado na possibilidade de ascensão deste nacionalismo demente e manipulatório, que subordina o Brasil ao macronacionalismo da potência americana e joga o país contra
a Humanidade.

O que parece não estar dando certo, todavia, para a nova aristocracia burguesa do Brasil — saudosista da escravidão e do silêncio da ditadura –, é que o seu novo senhor é um desastre de sordidez ilimitada, cujas mentiras e tacanhez são capazes de irritar também uma parte privilegiada da sociedade. Uma parte que ainda mantém a expectativa de que podemos voltar a um mínimo consenso democrático e um mínimo respeito à humanidade dos outros, mesmo em meio ao desastre econômico que nos encontramos.

O medo nada nos informa sobre o mundo — diz Francis Wolff –, ele nos afeta positiva ou negativamente e nos joga no turbilhão da história através das emoções imediatas, cujo acompanhamento é o sofrimento que pode nos imobilizar para sempre. Ter medo da morte, todavia, não nos leva necessariamente  a ter medo da História. Quando vimos na sexta-feira (23)  as mentiras descaradas de Bolsonaro, com seus olhos esgazeados pelo ódio, e vimos neste sábado a “admiração” solidária dos comentaristas políticos, porque “ele se  assessorou” para falar, podemos concluir que ele estava com medo. Como estavam com medo seus majoritários companheiros do partido da mídia, que apostaram no  seu sucesso para promover as reformas ultraliberais.

Sigo com Wolff, parodiando a morte política: “O homem é, então, animal mortal que, como dizia Hegel, deixa de ser animal quando se lembra que é mortal. É verdade que o animal — como o mito digo eu — tem medo quando se sente em perigo. Talvez ele tenha medo, mais ou menos consciente em relação a sua vida: ele sabe ou sente confusamente que a sua vida está ameaçada, mas não sabe, para ser mais preciso, que pode “morrer”. Ele não sabe então do que sente medo exatamente”.

Bolsonaro ontem teve medo dos incêndios que estimulou e das reações que ocuparam — pelos mais diversos motivos — os políticos mais responsáveis do planeta. Sua fala lida foi completamente antagônica a tudo que ele fez e disse até agora. E esta fala foi o seu atestado que até loucura pode transitar para o medo, no mesmo lugar do tempo em que os mitos são criados e falecem. Bolsonaro não será mais o mesmo, embora possa ser até pior do que foi até hoje e assim apressar a destruição da nossa ideia de nação e de vergonha. Mas abre-se também uma outra possibilidade, pois saindo da animalidade política completa passou a ter medo da História. E é nela que podemos reconstruir a coragem de mudar.

(*) Tarso Genro foi Governador do Estado do Rio Grande do Sul, Prefeito de Porto Alegre, Ministro da Justiça, Ministro da Educação e Ministro das Relações Institucionais do Brasil.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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